A última noite de um mergulhador em Fernando de Noronha é sempre um momento de fragilidade. No dia seguinte você vai pegar um avião e sabe que não pode submeter seu corpo à pressão de um mergulho com mais de 10 metros de profundidade poucas horas antes de um vôo. Tudo o que lhe resta é se despedir do mar nadando de snorkel nas praias da ilha. Um consolo para quem já está com saudades.
Era a minha última noite em Noronha, tinha acabado de voltar de um mergulho delicioso nas correntezas do canal da Rata e já estava de banho tomado. Andando pelas bandas do antigo Hotel Esmeralda, onde fica a sede do Ibama e o alojamento dos pesquisadores a trabalho na ilha, encontrei Tatiana Leite e Maria Isabel Paiva, duas biólogas que estudam polvos. Tínhamos combinado por alto de jantarmos juntas naquela noite e de preferência a especialidade delas, que tem fama de ser muito bem preparada na ilha. Nas panelas de lá o polvo não fica com consistência de borracha, me disseram.
A fome que começava a se anunciar levou-me a imaginar uma moqueca de polvo e fiquei contente em encontrá-las. Mas fui surpreendida por um convite. “Quer fazer um mergulho noturno?”, perguntou Tatiana. Sou meio medrosa de mergulhar à noite, mas fiquei balançada porque estava indo embora no dia seguinte. “Vai ser lá na Atalaia, sem garrafa, só de máscara”, completou.
Atalaia é uma praia paradisíaca que não tinha sobrado tempo para conhecer. Arrecifes ergueram um cordão de isolamento entre as ondas e a areia, formando uma piscina de água cristalina, rasa, habitada por milhares de seres marinhos que fazem do lugar um aquário natural. O ecossistema que se formou ali é tão delicado que apenas 30 turistas podem desfrutar de sua beleza diariamente. Mergulho à noite, só com autorização do Ibama.
A proposta era quase irrecusável e aceitei sem pensar muito. Iríamos procurar um tipo de polvo noturno que elas ainda não conseguiram observar no habitat natural e que só foi visto uma vez, e mesmo assim morto, depois de ter sido capturado por um pescador. Com sorte também achariamos uma espécie nova, ainda não catalogada, descrita por Tatiana, principal pesquisadora do projeto Polvos de Fernando de Noronha, em sua tese de mestrado e objeto de estudo da pesquisa de doutorado.
Para chegar até a praia foi necessário encarar uns trinta minutos de trilha. Como havia chovido muito nos últimos dias, fomos obrigadas a enfiar o pé na lama. Torcíamos para que o tempo abrisse ainda mais e surgisse uma lua para iluminar o mergulho, mas logo tivemos que ligar as lanternas porque a noite caiu sem estrelas. Tudo o que se conseguia ver eram pegadas de vaca e sapos pulando assustados.
Na praia fomos recebidas por um rebanho, mas nossa atenção foi logo fisgada pelo barulho das ondas quebrando no cinturão de pedra. Tatiana escolhera aquela noite para caçar polvo porque lhe informaram que a maré estava seca. Não foi o que constatamos. As ondas estavam furando o bloqueio.
Decidimos seguir com nossos planos. Afinal, Atalaia continuava uma piscina. “Vamos ver quem sente frio primeiro”, cutucou Tatiana que, ao contrário de mim e Isabel, estava com roupa de mergulho. Colocamos as máscaras e elas pegaram a parafernália necessária (prancheta, lápis, saco plástico e uma substância que expulsa os polvos das tocas). Adentramos aquele mundo de não mais de um metro de profundidade e cerca de 30 de extensão na ponta dos pés. “Quem encontrar um polvo grita”, combinamos. (foto meninas)
Bastou mergulhar o rosto para eu ser recepcionada por dezenas de agulhinhas que nadam na última lâmina d’água antes da superfície. Você tem quase que olhar para cima para notá-las. Não demorou muito para aparecerem também os peixinhos coloridos e desejei não dar de cara com nenhum cação, que às vezes ultrapassam o arrecife.
Concentrei-me na tarefa de procurar por polvos e fui em direção às pedras. Chegando lá me dei conta da dificuldade da tarefa. Meus olhos não estavam treinados para encontrar um bicho camuflado entre as algas. A não ser que um polvo passasse correndo debaixo de mim, ou se mexesse de forma chamativa, eu dificilmente o notaria.
Dali a pouco fui surpreendida por um estrondo e tudo ficou branco e borbulhante. Era uma onda quebrando em cima da rocha e acabando com a minha visibilidade. Fui procurar um lugar mais calmo.
Um grito. Pelo menos assim me pareceu embaixo d’água. Pus a cabeça para fora e vi Tatiana acenando. Ela tinha encontrado um polvo. Apaguei minha lanterna e nadei em direção ao único foco de luz que se via naquela escuridão.O bicho estava entocado e demorei bastante para conseguir enxergá-lo.
Fiquei encarregada de iluminá-lo para que Tatiana pudesse fotografar o esconderijo. Do meu lado, Isabel estava a postos para espirrar a substância no buraco e obrigar o animal a rastejar para fora. “Vai”. O polvo saiu que nem louco, mas em segundos Tatiana o agarrou pela cabeça, virou-a pelo avesso e tentou enfiá-lo num saco plástico. Não conseguiu. Ele enlaçou o braço dela com os tentáculos e lutou enquanto pôde. No fim, perdeu.
Na prancheta, Tatiana anotou dados sobre a presa e a captura. “É a tal espécie noturna que vocês procuravam?”, perguntei. “Não, é a espécie nova que predomina nas ilhas oceânicas do Nordeste, inclusive Noronha. Este exemplar servirá para a pesquisa do doutorado”.
Apesar de não terem encontrado o que mais queriam achar, as duas estavam visivelmente contentes. Há dias em que encerram o trabalho de campo de mãos vazias. A satisfação compensou até o vento frio e elas decidiram nadar em busca de mais um polvo.
O mar estava cada vez mais mexido e a areia havia se descolado do fundo. A visibilidade diminuía e tudo o que se via eram grãos brilhando que nem purpurina diante da luz da lanterna. Comecei a sentir frio, mas meu desconforto foi interrompido por um novo grito.
Desta vez a toca era bem perto da arrebentação e, portanto, um lugar mais agitado e fundo. Tivemos dificuldade de nos mantermos de pé e era cada vez mais complicado para Maria Isabel acertar o líquido onde o polvo se escondera. Ele sinalizava que ia sair, mas depois se encolhia de uma maneira que Tatiana não tinha como agarrá-lo. Parecia ser maior que o primeiro, o que aumentava a vontade de puxá-lo para fora.
Não deu. A substãncia acabou e ele não saiu. Daquele só levaríamos as fotos. “Vida de biólogo é isso”, ironizou Isabel. Ainda assim, as meninas não desistiram e enfiaram o rosto na água atrás de outros tentáculos. Participei das buscas por mais dez minutos, mas desisti de lutar contra o frio e avisei que as esperaria na areia.
Enquanto nadava para a praia começou a chover. Os pingos foram engrossando e em poucos minutos estávamos sob um temporal. Sentei no fundo, arranquei a máscara e xinguei. Alto! Meu destempero foi seguido de gargalhadas, inclusive minhas. Tatiana, segurando o saco com o polvo capturado, me dava as boas-vindas ao mundo dos biólogos e eu me consolava de pelo menos ter uma história para contar.
Saímos da água em disparada para as nossas mochilas. Enfiei minha capa de chuva sem nem abrir o zíper, Tatiana desistiu de tirar a roupa de mergulho e Isabel calçou a sandália já andando em direção à trilha. Depois de uns cinco minutos de chuva forte, os pingos começaram a escassear e conseguimos patinar com mais cuidado sobre a pasta de lama que encobriu o caminho. Tive que desenterrar o meu chinelo algumas vezes e não consegui me poupar de um escorregão.
“Saí do hotel pensando em comer um polvo e acabei vindo caçar um”, brinquei. “Me vingarei…”. Naquele momento já pensava em expor em O Eco minha aventura inesperada na última noite em Noronha. Claro que este relato não é uma vingança, mas um agradecimento a Tatiana e a Maria Isabel por terem me convidado a experimentar o mundo dos pesquisadores que saem a campo em busca de seus objetos de estudo independentemente das condições do tempo e contando com a sorte.
Para cada pesquisa publicada com novidades sobre a natureza, há histórias escondidas nas entrelinhas sobre expedições que não deram certo, perda de dados e a determinação do pesquisador de descobrir o que ele se propôs. Chova ou faça sol.
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