Reportagens

De porta-voz de capivara a detetive – com Cora Rónai

Cora Rónai falou de gatos, capivaras e lagartos para O Eco. Ela torce para que o Rio seja reocupado pela mata e afirma que o brasileiro despreza a natureza.

Carolina Elia · Lorenzo Aldé · Marcos Sá Corrêa · Manoel Francisco Brito · Sérgio Abranches ·
12 de junho de 2005 · 20 anos atrás

Sorridente, a jornalista Cora Rónai chegou na redação de O Eco com uma câmera digital no bolso e uma série de histórias sobre meio ambiente guardadas na manga. A conversa começou pela Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão-postal carioca que em passado recente abrigou três capivaras. Uma morreu, a outra sumiu e a terceira foi capturada pelos bombeiros e largada, como Cora diz, na Reserva Ecológica de Guapimirim. Nunca mais se soube dela, mas tem gente querendo ir procurá-la para levá-la de volta ao espelho d´água. Cora torce por isso. Defende que o animal ajudou a aproximar os cariocas da natureza que os cerca e escreveu várias colunas no jornal O Globo sobre o tema.

Cora aprecia a natureza desde muito nova, quando corria pelas matas serranas do Rio com sua irmã atrás de cobras e lagartos – literalmente. Conhece os animais pelo nome e não precisa estar longe de um centro urbano para conviver com eles. Em Veneza, já chegou a bater na porta da prefeitura para saber onde estavam os gatos – animal que adora. No Rio, não faz por menos e denuncia o extermínio dos animais de rua que está sendo realizado pela prefeitura. Foram tantos assuntos relatados que O Eco decidiu preservar a conversa praticamente na íntegra e publicá-la em duas partes. Abaixo, segue a primeira delas.

Cadê a capivara?

Cora: Existiam duas capivaras na Lagoa Rodrigo de Freitas e eu tenho fotos dos dois indivíduos distintos. Um macho, uma fêmea. O macho sumiu uns seis meses antes, ninguém soube como nem tinha certeza, porque elas não apareciam sempre. Mas nunca se encontraram, coitadas. Estavam em querências diferentes e eram muito jovens. E agora que iam justamente entrar em idade de reprodução, e estava todo mundo ali sonhando por um encontro amoroso, uma some e a outra vai pra praia… Não digo fugir, porque boa parte dos equívocos desta história vêm do uso do verbo fugir. As pessoas dizem que a capivara fugiu da Lagoa, mas não. Ela é um bicho curioso, como outro qualquer, viu um canal e entrou. Aí aconteceu aquela cena patética dos bombeiros tentando pegá-la de todas as formas erradas possíveis, e o lance dramático da coitada se atirando nas águas. O Rio parou para acompanhar os flashes da GloboNews. Eu estava na redação, convocada a escrever o obituário da capivara, quando a encontraram no Posto 4. Na redação do Globo foi aquela alegria.

O que aconteceu depois?

Cora: Primeiro a levaram para zoológico de Niterói porque os bombeiros ligaram para o Rio-Zôo e lá disseram que não tinham noção do que fazer com o animal. Mas essa capivara, coitada, que passou nove horas estressada, nadando no mar, ficou em observação menos de 12 horas. Não puseram chip ou qualquer identificação nela. Não tentaram descobrir o seu histórico, o que ela representava, nada. E tinha saído notícia no jornal, cheguei a usar o título “Por favor, devolvam a nossa capivara” com a intenção de mostrar que a queríamos de volta. Mas eles a soltaram na calada da madrugada, numa coisa que eles chamam de reserva florestal, reserva ecológica, que a gente sabe que de ecológico não tem nada. Pior ainda: é uma área de caça clandestina. Ainda que haja outras capivaras por lá, o indivíduo adulto não é aceito por grupos. A equipe responsável pela soltura do animal tinha que ter preparado a sua introdução no novo meio, feito com que fosse adotada por outras capivaras. Não sou especialista, mas basta ler um pouco sobre capivaras na Internet para ver que os grupos são familiares e não aceitam estranhos facilmente. Da última vez em que a capivara foi vista, estava andando ao lado dos carros, claramente querendo voltar para casa. Na cabeça dela, carro significa casa.

O Globo chamou a APA de Guapimirim, onde a capivara foi solta, de paraíso ecológico.

Cora: Mas os jornalistas, coitados, são espécimes trancafiados, criados em cativeiro dentro de redações que mal têm janelas! Se você pensar na localização geográfica dos jornalistas, qualquer coisa que tenha folha é um paraíso ecológico. Acho que falta uma educação ecológica à classe, como aliás falta a todo mundo, mas a maioria dos jornalistas é urbana por excelência. Caramba, passa ali pela Reduc, sente o cheiro da refinaria, e vê se aquilo pode ser uma reserva de ecologia! Pelo amor de Deus, é como se o ar não fizesse parte do resto do meio ambiente.

Trata-se do último manguezal da Baía da Guanabara, mas é lugar para capivara?

Cora: Certamente não é para uma capivara que acha o ser humano um animal bacana, bonzinho. Àquela altura, a capivara era um animal comunitário. Não era domesticada, mas comunitária.

Se for convidada para o churrasco dela, ela vai?

Cora: Vai docilmente, pobrezinha, porque está vendo pessoas, e confia em pessoas…

O Rio de Janeiro vem sendo degradado desde o primeiro dia da ocupação.

Cora: Tem toda a razão. O lugar é maravilhoso, mas a cidade deixou de ser há tempos. As pessoas não prestam atenção à natureza como deveriam. O fato de ainda termos bastante verde por aqui dá-lhes a falsa noção de que a natureza carioca vai muito bem, obrigada: ecologia é na Amazônia. O barato da capivara é que ela despertou o interesse das pessoas para o seu ambiente, talvez até pelo próprio tamanho. Cansei de ver gente andando com máquina fotográfica na Lagoa naquela expectativa de flagrá-la. Mas nisso as pessoas começam a fotografar também os pássaros, começam a ver que tem caranguejo, começam a observar as plantas, a ver os tipos de peixe que vivem lá. Enquanto as capivaras estavam na Lagoa, apareceu uma quantidade incrível de fotos do meio ambiente da Lagoa no Fotolog e no Multiply, além das que eram enviadas para a coluna do Ancelmo Góis. E por que as pessoas estavam com a câmera lá? Por causa da capivara.

Antes da capivara a maior manifestação de vida na Lagoa…

Cora: Era de morte…

Só notavam que havia vida lá quando morria peixe.

Cora: Exatamente! E agora você pode ver que aquela explosão de lindas fotos da Lagoa acabou. O Ancelmo diz: “ Como não tem mais foto da Lagoa se todo mundo fotografa a Lagoa?”. Fotografava: todo mundo ficava “será que a capivara vai aparecer hoje?”.

A maioria das pessoas acha que tem que viajar para está perto da natureza.

Cora: Sim, natureza é sempre algo lá longe. Acho impressionante a desconsideração pela natureza que se vê nesse país. Você vai a São Paulo e é uma agressão visual, a começar pela chegada, aquele paliteiro a perder de vista… Às vezes, quando o tempo está bom e você se senta do lado esquerdo do avião, dá para ver a represa Billings, aquela água… é até uma coisa bonita, é o que se salva. Já fiz algumas fotos de lá, gosto muito de fazer fotos de avião. Postei no fotolog e as pessoas chegaram a duvidar de que aquele lugar fosse realmente em São Paulo. O diabo é que a nossa idéia de progresso é derrubar todas as árvores e cimentar o chão.

Gilberto Freyre disse que a história do Brasil é uma guerra contra a árvore…

Cora: Mas é isso mesmo! São séculos de extrativismo violento. As pessoas que vieram para cá durante a colonização não pensavam em construir nada aqui; esta era uma terra secundária, de degredados. O negócio era o dinheiro rápido, era pegar o pau-brasil, pegar o ouro e o que mais houvesse. Não eram pessoas com qualquer sensibilidade estética ou emotiva. Mesmo a corte veio fugida, em circunstâncias completamente negativas, com aquela sensação de asco.

Mas nas fronteiras não está tudo igual?

Cora: Estive em Rondônia agora para fotografar a turma que estava fazendo a série Mad Maria. Adoro o simbolismo daquela ferrovia abandonada, daquele desafio fútil à natureza. Eu não ia para aqueles lados há muito, muito tempo, e achei que ia sobrevoar florestas e mais florestas, mas não. Sobrevoei queimadas e mais queimadas. Não se tem mais um dia claro em Rondônia, não se vê mais um céu azul. As queimadas são tantas que há uma fuligem permanente no ar. Corta o coração.

Você nunca tinha visto nada parecido?

Cora: Bem, no México, de onde acabo de voltar, você também não vê um dia claro, mas o problema é a poluição industrial. As questões de poluição e de meio ambiente mexicanas são complicadas, mas aqui são piores. Aqui é deprimente, é inacreditável, dá vontade de sentar no chão e começar a chorar. A ganância está deixando as pessoas loucas! Isso vai virar um deserto em muito pouco tempo. Aliás, este é justamente o caso dos grandes sítios arqueológicos misteriosos do México, as grandes cidades abandonadas sabe-se lá por quê.

Esgotamento.

Cora: É, os recursos se esgotaram. Aquelas cidades comportavam milhares de habitantes cortando e queimando árvores durante um certo tempo. Mas quando a floresta acaba, começa a faltar água – e as pessoas têm que ir buscar água em fontes que ficam cada vez mais longe, primeiro a um quilômetro, depois dois, seis, dez, até que chega um momento em que a água está a 30 quilômetros de distância. Aí não tem outra saída a não ser abandonar tudo e construir outra cidade. Vi muito o Rio ali, sabe? Observando aquelas ruínas, fiquei pensando num viajante daqui a 600 ou 700 anos, chegando a uma cidade toda tomada pela selva.

Bota uns 15 vai.

Cora: Não, porque não dá tempo da selva se reconstituir. Penso no Rio tomado pela mata daqui a uns 500 anos, e o viajante pensando: “Meu Deus, o que aconteceu com eles? Porque foram todos embora? Eles tinham construções, tinham este cenário magnífico…” Mas o deserto vai acontecer na Amazônia. Aqui, para mim, o que vai nos expulsar da cidade vai ser a violência. A coisa está saindo de controle a uma tal velocidade, e de uma tal maneira, que as pessoas já estão mesmo indo embora. Repare: quando você passa pela Avenida Brasil você já vê os prédios abandonados das indústrias e aquilo ali tudo se acabando. Um exemplo é o prédio do Jornal do Brasil, que é de partir o coração da gente que trabalhou lá.

É verdade.

Cora: Mas, se Deus quiser, daqui a pouco a mata retoma tudo isso com a força que lhe é peculiar…

Você é filha de imigrantes, a 1ª geração dos Rónai no Brasil, de onde veio a sua relação com a natureza?

Cora: Eu tive a sorte de ter pais totalmente ligados em natureza. Eles eram ecologistas avant la lettre. Minha mãe estava lutando para ter energia solar no sítio desde 1960, desde que ouviu falar desta coisa de energia solar. Chegou a comprar umas placas, caríssimas na época.

E como é que era?

Cora: Ah, ela foi aquele usuário que hoje eu sou em informática, e que não recomendo a ninguém que seja, o early adopter. Ela instalou uma das primeiras versões de aquecimento solar que apareceram por aqui, construiu uma composteira, enfim, o meio-ambiente sempre foi uma grande preocupação lá em casa. Nunca tivemos bichos domésticos porque meus pais achavam que eles acabariam com a fauna local. Papai era fã dos lagartos de papo amarelo que apareciam no sítio, alguns com mais de um metro de comprimento. Eles vinham pegar os ovos das galinhas, e isso criava problemas culinários, porque Mamãe contava com os ovos e achava que Papai mimava muito os lagartos. Mas ele dizia: “Ora, se faltar ovo por causa dos lagartos nós vamos comprar, mas os lagartos não podem ficar sem ovo”. Tínhamos um alerta de lagartos. Quando eles apareciam e meu pai estava trabalhando no escritório, alguém gritava: “Lagaaaaaaaaaaaarto!” Papai largava o que quer que estivesse fazendo e saía correndo, porque amava aqueles bichos. Também tivemos uma preguiça que apareceu e foi ficando, mas coitadinha, morreu durante uma tempestade. Estava no alto do fícus, e caiu. Foi o maior trauma emocional para todos nós.

Você reconhece planta ou passarinho?

Cora: Muita coisa. Principalmente pássaros e insetos. O sítio era cercado por floresta.

Era aonde exatamente?

Cora: O sítio fica entre Conselheiro e Bom Jardim, mas a floresta já era. Hoje aquela área está totalmente degradada. O loteamento que os incorporadores prometeram a meus pais, com meia dúzia de lotes grandes, foi picado em pedacinhos e virou praticamente uma favela. Mas quando eu e minha irmã éramos crianças, o sítio era o único ponto de luz no nosso lado da montanha. Aí havia um grande vale e outra montanha em frente, onde passava um trem. Tudo coberto de mata. Na montanha em frente, a quilômetros de distância, tinha uma outra luz. Era a casa dos Mumford, um casal de ingleses que acabaram muito amigos de meu avô.

Em que época foi isso?

Cora: Anos 60, 70, por aí. O inglês havia sido faroleiro e, quando se aposentou, resolveu ir para um lugar mais movimentado… que era aquela solidão ali. Um dia fizeram uma excursão e vieram ver quem era a nova vizinhança, quem é que estava atrapalhando, mas acho que fomos aprovados… Enfim, a noite naqueles tempos era uma alegria porque, como a nossa casa era o único ponto de luz da região, o que vinha de inseto na nossa janela era inacreditável. Coleópteros, mariposas de todos os tipos, era o paraíso do entomologista. Meu pai ficava na janela identificando-os, na maior felicidade. Como sou mais ligada em bicho aprendi melhor os nomes deles, mas meu pai sabia o nome de todas as plantas que encontrava. Sabia inclusive o nome em latim, naturalmente, e, se houvesse alguma, qual a finalidade da planta. Mamãe também adora plantas, mas a relação dela com bichos é que é extraordinária. Pássaros pousam no ombro dela, nunca vi isso acontecer com mais ninguém. Eles confiam nela.

E o lugar mudou.

Cora: Exatamente, o lugar onde o sítio sempre esteve já não está. E há, como em toda a parte, o problema da violência. Minha mãe sempre foi contra colocar cerca, mas teve que ceder. Tínhamos um lindo jardim que ela fez no pátio, um pouco japonês, com carpas, plantas e pedras. Mas depois do segundo ou terceiro assalto à casa, nem sei mais, o pátio dançou, porque foi preciso pôr uns cachorros para defender o sítio. Os cães acabaram com o que havia de poético no projeto do jardim.

E os lagartos?

Cora: Coitados, acabaram antes mesmo dos cachorros. Acho que o pessoal pegava os lagartos para comer.

Tinha muita caça na região?

Cora: Muitos bichos considerados caça, sim. E muitos caçadores. Havia muitas cotias e preás. E cobras de todos os tipos. Aliás, os únicos animais que não contavam com a simpatia do povo lá de casa eram as cobras. Minha mãe não queria cobras e crianças em associação, sobretudo porque tanto eu quanto a minha irmã não tínhamos medo de bicho nenhum. Uma vez, quando eu era bem pequena, apareci com uma cobrinha na mão. Ela foi morta sem contemplação; depois se verificou que não era venenosa. Mas este era o único caso de intolerância entre as espécies.

E o lagarto reinava.

Cora: Ah, o lagarto era sagrado! Eles viviam sacaneando as galinhas, eram uns canalhas. Primeiro davam uma corrida nas galinhas, depois comiam os ovos até se fartar e, antes de ir embora, viravam nossas três tartarugas de cabeça para baixo. Se uma galinha ousasse entrar no galinheiro enquanto estavam lá, botavam-na para correr novamente, só para chatear. Muito engraçados. Eram bem mansos, deixavam que a gente chegasse bem perto deles.

Em que época foi isso?

Cora: Fim dos anos 60, começo dos anos 70. Tenho boas fotos de lagartos daquela época feitas com uma máquina xereta, imagina. E havia também umas andorinhas que eram nossas inquilinas. Durante todo o inverno não se podia fechar a janela do banheiro porque elas moravam lá dentro. Morríamos de frio, mas as andorinhas tinham que ter liberdade de ir e vir. Quer dizer, os bichos sempre estiveram mais ou menos em pé de igualdade com os humanos no meu mundo.

Para as gerações urbanas é mais difícil despertar esta afinidade?

Cora: Esta é, justamente, a importância da capivara. Mas aí vem uma prefeitura totalmente incompetente, que não sabe das coisas. Na verdade, esta pobre capivara é o símbolo perfeito da separação do município e do estado do Rio de Janeiro. É um símbolo de como esta cidade é mal administrada, de como seus governantes não têm amor à vida, de como as autoridades estão desentrosadas. A capivara não é um animal pequeno, vamos combinar que ela chama atenção — e a Prefeitura nunca a viu! O governo estadual muito menos. Em qualquer lugar do mundo você vê um animal destes numa Lagoa e você faz um certo “auê”, no mínimo avisa às pessoas: “Vejam, este é o maior roedor do mundo…”. Mas não, mudez total. A prefeitura demorou três anos para descobrir a existência da capivara.

Foi você que achou a capivara? De onde vem essa capivara?

Cora: Eu não achei a capivara; mas digamos que a lancei ao estrelato. Um dia saiu uma notinha no jornal dizendo que apareceram três capivaras na Lagoa, na altura do Cantagalo. E aquele coronel dos bombeiros foi caçar os bichos com aquela fineza que lhe é peculiar, naquele trato natural com o mundo animal que a gente já conhece. E o que é que ele conseguiu fazer? Uma morreu e as outras duas sumiram e nunca mais se encontraram. Este foi o resultado da caçada e isso foi registrado no jornal. Eu achei a história da capivara na Lagoa ridícula. Uma capivara?! Na Lagoa?! Devia ser uma ratazana maiorzinha que confundiram com uma capivara. Pois um dia estou andando e tchan! Encontro a capivara. Fiquei tão emocionada que passei horas olhando para ela. Aí comecei a escrever a seu respeito.

Onde você viu a capivara?

Cora: A primeira que vi foi a do Vasco. Era a fêmea, esta que foi capturada e que sempre foi maior do que o macho.

Como é que você identificou o sexo da capivara?

Cora: Eu não sabia que ela era fêmea, não naquela época. Depois vi a outra e pensei: “Ué, essa aí é outra”. É que o macho tem uma espécie de bossa na testa. Mas as duas eram bem diferentes. O sexo das capivaras, genitalmente falando, é difícil de se identificar num encontro casual. Já me disseram que é só virar a capivara, mas vai propor isso à capivara… Por outro lado, é relativamente fácil identificar os machos adultos por causa dessa bossa que desenvolvem na testa.

E aí?

Cora: Então, encontrei essa capivara na altura do clube de remo do Vasco, fiquei maravilhada e escrevi a primeira crônica. Foi aí que as pessoas começaram a falar na capivara, porque, digamos, eu tinha dado fé que ela existia. Comecei a andar com a câmera, direto, e fiz uma quantidade imensa de fotos. E foi assim que comecei a descobrir os seus hábitos e horários. Um tempo depois descobri a que vivia em frente à minha casa, no Cantagalo. Era o macho, mas com ele me encontrei menos porque era matutino, e eu não sou. Algo raro, já que as capivaras são animais crepusculares. Este, porém, adorava ficar tomando sol de manhã. Ambas detestavam cachorros.

Mas agora a incompetência da Prefeitura.

Cora: Sim, voltando para onde nós estávamos, esta prefeitura que jamais viu aquela capivara, quando ela foi seqüestrada e criminosamente solta numa área completamente inapropriada pelo Estado, fez um cartaz dizendo: “Veja a capivara, agora mais perto de você – no zoológico”. O que você faz com um prefeito desses? Fuzila? Condena à fogueira? Eu não sei o que fazer, porque isso significa que bicho só é bom atrás das grades… Bicho bom é o bicho realmente mais perto de você, e a capivara estava mais perto de você quando estava na Lagoa, quando você convivia com a capivara. Eles descobriram que o animal dava ibope porque a Globo fez flashes da sua captura. Foi preciso a divulgação da Globo para acordarem para o fato de que havia uma capivara na Lagoa. No dia em que ela foi solta, liguei cedo para o secretário de meio ambiente pedindo-lhe que acompanhasse o caso de perto e não deixasse que a soltassem na reserva. Ele não fez nada, estava num churrasco e lá permaneceu. Imagina se ia trabalhar num domingo!

Foi você que entrou com o processo contra a ação?

Cora: Não, foi a Associação de Observadores de Pássaros, que recolheu quase 500 assinaturas, entre as quais a minha, para que a capivara fosse restituída à Lagoa. Nós tivemos uma audiência com um promotor que foi muito simpático e achou que deveríamos tentar uma solução informal, porque se fossemos fazer uma coisa judicial não ia terminar nunca. Mas na realidade ele não fez nem uma coisa nem outra, deixou o negócio em banho-maria e acho que hoje é totalmente impossível recuperar aquela capivara. Duvido, aliás, que ainda exista, dada a quantidade de caçadores clandestinos na área. Era muito bocó, coitada. Ainda que estivesse viva, porém, não haveria como identificá-la, não botaram uma coleira, um chip, nada.

E o macho já tinha sumido?

Cora: O macho já tinha sumido.

Como seria a reintrodução dela na Lagoa?

Cora: Não sei, isso é coisa para especialistas. A capivara viveu não sei quanto tempo ali e foi parar na praia. O que tinha que ser feito, então? Trazê-la de volta, pondo uma rede no canal para que não fosse parar na praia novamente, só isso. Pronto. Mas uma coisa que é bacana, e eu fico feliz com isso, é a quantidade de gente que me encontra e que se queixa da ausência da capivara, que me diz que está sentindo saudades dela. Você vê que as pessoas criaram um vínculo com ela, e eu acho que um bicho conseguir cativar as pessoas assim, num espaço urbano, é uma grande coisa. Tenho a nítida impressão de que, em breve, vamos ter novas capivaras na Lagoa. Vários amigos e conhecidos volta e meia ligam dizendo: “Deixa que eu solto o bicho, deixa eu trazer a capivara”. Mas eu não sou a dona da capivara ou da Lagoa! Um dia desses me ligou um maluco que não conheço e que disse: “Olha, estou com um cara aqui de Mato Grosso na outra linha e ele cobra 500 reais pelo casal de capivaras, você quer? Se você pagar a metade, eu pago a outra”. Eu disse: “Mas bicho, nós vamos presos! Não é assim! Capivaras são animais silvestres e você não pode comprar uma capivara em Mato Grosso. Quando ela descer no Galeão, você vai em cana”. “Ah, é?” “É!”.

Como é que eles se alimentavam? Eles comiam o quê? Peixes?

Cora: Não, são herbívoras e na Lagoa tem exatamente o tipo de coisa que gostam de comer: capim. Não sei se plantado pela prefeitura ou pelo Estado. Porque a Lagoa é uma coisa meio esquizofrênica. O espelho d’água é do Estado e o entorno é da prefeitura, ou vice-versa. Tem até alguma coisa federal no meio.

E o que sobrar é do Mário Moscatelli.

Cora: A diferença é que ele merece… Mas voltando à bagunça que é a questão do trato com os bichos no Rio: um dia encontrei uma ave ferida perto de uma estação biológica que o estado e a prefeitura construiram juntos e abandonaram. Comecei a ligar para os possíveis responsáveis para informar que havia uma fragata com a asa quebrada e para virem socorrê-la, mas não achei ninguém, nessa cidade enorme, para cuidar da ave. Quando finalmente chegou alguém, de um ONG, já era tarde. Agora custava um daqueles guardinhas municipais que ficam ali pegar o animal e levar para uma estação que estivesse funcionando, se é que alguma está? Quem ainda dá um jeito naquilo são os pescadores, uma galera legal, antenada com os pássaros, que tem uma relação muito boa com a Lagoa. Ah, sim: voltando à capivara, esqueci de contar um fato engraçado. Um dia peguei um táxi com um amigo e, sei lá por que, começamos a falar sobre a capivara. Aí o motorista, que não sabia que eu era, digamos, a porta-voz da capivara, nos interrompeu e disse: “Esse negócio da capivara me enche de ódio, fico horrorizado! Acho que esta capivara tinha que voltar”. Eu disse “Pois é, eu sei”, e ele continuou: “Eu soube que tem uma galera aí que está querendo ir buscá-la na marra. Pois se precisar eu vou lá com o táxi, trago ela de volta e não cobro nada”. Ia ser engraçado, a capivara voltando de táxi… Mas essas idéias malucas só não vingaram porque, se você não for caçador clandestino, eles não deixam você entrar na Reduc. O lugar é complicadíssimo, cada pedaço pertence a uma empresa diferente. E ninguém jamais soube dizer onde ela foi largada, literalmente largada – o que é uma coisa inacreditável. Mas a gente sonha e torce e, a despeito das evidências, eu torço para que, um dia, alguém traga capivaras de volta à Lagoa. Ainda que não pelo Galeão.




De porta-voz de capivara a detetive em Veneza – Parte II


Carolina Elia, Lorenzo Aldé, Marcos Sá Corrêa, Manoel Francisco Brito, Sérgio Abranches


26.06.2005

A segunda parte da entrevista de Cora Rónai para O Eco tem como fio condutor dois assuntos que já viraram suas marcas registradas: gatos e fotos digitais. Os gatos ela defende. Sempre. Não importa se são cariocas ou venezianos. “O problema todo é o seguinte”, diz ela ,“ A gente está no planeta junto com os bichos, e eles não falam.” Sim, além de ser a porta-voz da capivara da Lagoa ela também é de qualquer outro animal que flagre sendo maltratado.

No tempo vago mergulha num caminho quase oposto: as aventuras dos exploradores ingleses na África. Diz que agüenta as descrições das caçadas, mas tem que estar com o espírito preparado. Não pode estar lendo um livro que julgue inocente e de repente esbarrar com a matança de 20 elefantes. Como aconteceu com um dos livros que marcaram sua infância. De resto é foto. Seja de câmera normal ou de celular, o que vale é registrar os detalhes do dia.

O César Maia anda aprontando?

Cora: Por causa do Pan-americano, o prefeito César Maia decidiu acabar com todos os animais de rua. E não é recolher os animais para botar em um canil ou coisa parecida, ele está é exterminando todos os animais. Há uma lei municipal do Cláudio Cavalcanti que proíbe o que eles chamavam antigamente de eutanásia dos bichos, e essa lei vem sendo flagrantemente desobedecida pela secretaria estadual de proteção e defesa animal. Ela não tem nada a ver com o meio ambiente, cuida dos bichos domésticos de rua. Como populações de gatos.

Quem é o secretário?

Cora: É o Victor Fasano, que é um criador de bichos de raça. A pessoa menos indicada. Criador de bicho de raça não tem qualquer idéia do que seja um bicho vira-lata. O vira-lata para ele é uma coisa que deve ser exterminada, definitivamente. Há alguns anos, o Fasano deu uma declaração de que quanto mais ele criava cães mais ele entendia a cabeça do Hitler! Isso deu um auê miserável. Mas aí ele disse que nunca falou isso, que foi uma invenção do repórter que o entrevistou. Ele também esteve envolvido numa operação de tráfico de bichos silvestres e foi aberta uma CPI para apurar. Não deu em nada, ele de fato estava envolvido, mas a CPI não deu em nada. Então esse é o cara que o César Maia chama para dirigir essa secretaria, para proteger os animais. E esse homem chamou para trabalhar com ele uma veterinária de Campos cujo histórico era o seguinte: veterinária da área de produção animal. Em suma, cria-se para matar. Na época da gestão dela, pelos menos 57 dos 600 gatos retirados da rua foram mortos. Ela nega.

Como isso funciona?

Cora: Para essa secretaria, Centro de Controle de Zoonoses significa campo de concentração. Eles castram o bichinho e esperam 5 dias, se o dono não aparecer eles matam. Então você faz o animal sofrer numa cirurgia em que você gasta tempo e recursos para depois matá-lo em 5 dias. O que são 5 dias? Não é nada.

Há algum tempo o Rio de Janeiro tinha carrocinha de cachorro.

Cora: Mas hoje tem carrocinha de gato, porque é exatamente o que eles estão fazendo, a volta da carrocinha. Teve cenas terríveis. Outro dia pegaram em frente ao Jóquei e teve gato saindo correndo pela rua, alguns foram atropelados. Um horror.

Pavores clássicos da infância: colégio interno e carrocinha.

Cora: Eles reeditaram a carrocinha com outro nome, mas na verdade você controla essas populações de bichos de rua castrando e educando a população. Eu acho que o fato de um cachorro ou de um gato serem animais domésticos não quer dizer que eles não pertençam ao meio ambiente, e não tenham direitos sobre o meio ambiente como a gente tem. Aliás, não há nada mais desumano do que uma cidade só de humanos. É lamentável.

Você já conheceu algum lugar assim?

Cora: Eu fiquei arrasada na minha última viagem a Veneza, que sempre foi uma cidade de gatos, com grandes colônias, até por causa dos grãos que eles armazenavam. Eles tinham grandes depósitos e muitos ratos, então os gatos sempre tiveram papel preponderante na cidade, mas dessa vez…

Eles criaram um departamento de zoonoses.

Cora: Exatamente. Na Inglaterra existem gatos “funcionários” para pegar os ratos, o que mostra a diferença da mentalidade, não é? Eles recebem ração, trato e não sei mais o quê em troca de exterminar ratos. E eu chego desta vez em Veneza e não vejo um gato de rua. Começo a procurar os gatos e não os acho. Aí comecei a perguntar: “Cadê os gatos? Onde estão os gatos?”. Fui à prefeitura e procurei um assessor de imprensa: “Onde estão os gatos que moravam aqui?”. Ele me respondeu que foi feito um trabalho de controle de população ao longo dos anos e que o número diminuiu. Bom, aí eu disse peraí, conheço de gatos e trabalhos de controle e não há controle populacional que sumisse com os gatos dessa forma durante esse período. “Mas os que sobraram foram recolhidos e estão num gatil, num excelente gatil ”, me disse o assessor. Sai de lá achando aquela história muito mal contada e continuei procurando pelos gatos. Acabei encontrando uma inglesa que cuidava dos bichos e que me disse: “Olha, isso aqui foi uma tristeza. O novo prefeito mandou caçar os gatos todos”. O último censo que eles tinham de gatos era de 8 mil animais e no gatil tem uns 250. Cheguei a ir no gatil. Era uma prisão de segurança máxima para os gatos, coitados. Aqueles gatos que eram urbanos e que adoravam ver as pessoas – se divertiam com elas e elas também com eles – estavam todos infelizes num lugar muito limpo, asséptico, com guarda-sol e tudo. Você via aqueles animais arrasados e derrotados.

Esta história é melhor do que a da capivara! Tem outra?

Cora: Quando chego num lugar e vejo alguma coisa errada com os animais eu vou e reclamo. Em São Francisco tinha um pessoal que estava maltratando os leões marinhos no Píer 19. Tinha uns imbecis jogando pedras nos bichinhos. Mas lá tem um disque-denúncia animal que é uma maravilha. Liguei e dois minutos depois estava lá a polícia para levar os idiotas embora.

E no Brasil?

Cora: No Brasil, em todo lugar, onde quer que você chegue tem cachorro abandonado. Aqui mesmo, em Parati, é uma tristeza você ver aquele monte de cachorro largado. Você pergunta o que está acontecendo e ninguém sabe de nada. Chega na prefeitura, pergunta se alguém cuida dos animais ou castra, e eles dizem que não. Mas isso acontece em todos os cantos.

Livros sobre bichos, quais são os melhores que você já leu?

Cora: Todos do Jarold Durrell, ele é imbatível.

Mas você começou logo pelo melhor.

Cora: Exatamente. Fui até ver o que ele falava sobre capivara na Argentina, mas não gostei. Ele achou a capivara feia. Como é que alguém pode achar a capivara um animal feio? Mas eu não leio muitos livros sobre animais, o que leio é sobre como identificá-los. Esse é um tipo de livro que tenho muito, porque em todo lugar que vou compro um livro dos pássaros do local ou sobre os bichos. Quando mergulho, por exemplo, tem sempre aquela coisa de ver o peixe e saber com quem estou falando. A gente sempre tem experiências muito boas com os bichos, não é? No Panamá (?) eu vi um carcará no chão disputando farelos junto com os pássaros e disse: “ Mas que imbecil”, e você tem vontade de chegar lá é falar “ Cretino, você come eles. Você não come farelo, vai lá. Ninguém te ensinou isso? Que mãe que você teve, animal?”

(Risos)

Cora: O problema todo é o seguinte: eu acho que a gente está no planeta junto com os bichos. Os bichos não falam. Você vê um caso como este de Veneza, típico. Em Veneza eu me envolvi mais porque passei 20 dias lá de férias e porque gosto muito da cidade, falo veneziano. Eu me senti pessoalmente atingida com a história dos gatos. Ali eu tive mais tempo de ir atrás e investigar, mas na maioria das vezes o máximo que eu consigo fazer é ligar para uma Prefeitura, ou para a polícia, como foi o caso em São Francisco.

Mas de volta aos livros, nada mais lhe marcou?

Cora: Olha, tem coisas que decidi reler e não consegui. Um exemplo é As minas do rei Salomão, um dos grandes livros de minha infância.

Um dos livros mais politicamente incorreto de todos os tempos.

Cora: É inacreditável, eu comecei a ler e era assim: “…hoje tivemos um grande dia, matamos 20 elefantes”. Não leio mais! Não quero ler esta porcaria. Incrível. E foi um livro que eu adorei quando era criança.

Sem falar nos africanos.

Cora: Mas com os africanos a gente está acostumado, porque são tantos relatos de horror o tempo todo que a gente pressupõe que eles vão falar aquilo. Você já pega toda esta literatura colonial inglesa sabendo que vai encontrar esse tipo de atitude. O problema de As Minas do Rei Salomão é que você não está alertado para isso, eu não lembrava da parte dos animais, você esquece.

O que você está lendo?

Cora: O livro How I found Livingstone, do Henry Morton Stanley, que é um dos caras mais politicamente incorretos que você possa querer também. Mas é genial. Eu estou encantada, porque agora estou totalmente mergulhada nos exploradores africanos e ingleses. O mais cruel de todos era o John Speke, que achou a nascente do rio Nilo. O problema é que esses exploradores eram uns bichos tão terríveis que a sociedade aceitava que eles viessem fazer uma palestra a cada seis anos e depois os despachavam correndo para África. Não sabiam o que fazer com aquela gente. Tinha restrições contra o Speke porque ele matava um pouco mais de nativos do que o estritamente necessário, mas cada um tem o seu método. Agora, ele também matava fêmeas grávidas e comia o feto. Isso os ingleses começaram a achar um pouco demais para uma pessoa propriamente civilizada.

Ele era o maluco de O Coração nas Trevas, do Joseph Conrad.

Cora: Possivelmente era ele sim.

Era um daqueles tarados espetaculares.

Cora: Agora o Richard Burton era mais humanista, tinha um “aproach” um pouco diferente. Mas o próprio Livingstone era um cara legal, eu gosto do Livingstone. No fim ele não queria mais brancos e só fazia as excursões com negros. Ele realmente foi um pacifista à maneira dele, definitivamente. Inclusive, teve um papel enorme no combate à escravidão.

Genial são as memórias do Charles Darwin.

Cora: A coisa que mais me espanta nele, além de tudo o mais, é o poder de observação desse homem. Porque eu poderia ter visto as mesmas coisas que ele viu, todos nós, e jamais ter ligado uma coisa com a outra. Eu tenho que voltar a ler o Darwin, li há tanto tempo que já não me lembro. Tenho uma edição antiqüíssima que já era velha quando comprei num sebo. Mas agora eu estou maravilhada é com os exploradores africanos.

E você está fazendo isso para se divertir?

Cora: Eu adoro ler essas coisas. Vou escrever uma crônica sobre isso em algum momento. É tão interessante, como o mundo mudou! Nós estamos todos aqui muito pessimistas em relação ao meio ambiente, e como temos que estar, mas acho que nós fizemos progresso como um todo. Porque se você ver o descaso que havia naquela época em relação à vida de um modo geral. Você podia matar um negro que não tinha problema, porque era um ser inferior. Acho maravilhosa a simples idéia do hoje se achar o racismo uma coisa condenável. A humanidade ter se dado conta de que isso não se deve fazer, ainda que ela faça, já é um grande progresso.

Esse progresso nunca houve.

Cora: Houve sim, mas é num passo de tartaruga, não vai ser de uma hora pra outra. Pode ser que quando a humanidade inteira se der conta já vai ter terminado com tudo. Eu vejo aquelas fotos da biografia do Tony Mayrink Veiga, que foi uma das coisas que mais me horrorizaram na vida. Você começa a olhar e vê aquele imbecil sentado em cima de um elefante e uns outros imbecis da laia dele achando aquilo legal. E qual é autorização divina, ou outra que você quiser, que dá a criatura o direito de matar um elefante, de ver uma coisa bonita como o elefante e matar por prazer? Eu acho que matar para comer como uma tribo primitiva faz, vá lá, porque eles têm que comer alguma coisa. Nós também não somos vegetarianos. Agora o cara sai daqui, um milionário idiota, traficante de armas…

Ele devia tudo na vida ao fabricante daquela espingardinha…

Cora: Pois é, mas se você pensar que há um cara destes em todos os países… O que é isso? Que espécie de gente é essa?

Mas o que mudou?

Cora: Hoje ele não faz mais a foto. Pode até continuar matando elefantes, mas não vai mais tirar a foto.

A hipocrisia é um problema.

Cora: A hipocrisia é um progresso, porque no momento em que você está sendo hipócrita em relação a uma coisa você já está sabendo que aquilo não é 100% certo. Quem sabe o seu filho aprenda alguma coisa com aquela hipocrisia e já não siga o seu exemplo. Enfim, eu tento ser otimista, não sou uma pessoa pessimista de natureza, muito embora a observação nos provoca e se eu não tivesse nenhum espírito científico eu estaria dentro de uma gruta chorando porque nada vai mudar.

O que você achou do Bush ressuscitar a privatização das terras públicas americanas?

Cora: É um retrocesso inacreditável, porque eles já tinham feito grandes avanços nessa área de terras. Eu não sei o que é que aconteceu lá, acho que puseram alguma coisa na água daqueles caras, porque eu não reconheço mais o país. Juro para vocês. Antigamente eu tinha um prazer enorme de viajar para lá. Adorava ir para Nova Iorque e tal. Hoje eu odeio ir para os Estados Unidos. Meus amigos continuam lá, mas engraçado como esta coisa afeta até as relações humanas, porque eu não tenho mais o mesmo prazer que tinha com meus amigos. Para dizer a verdade, e é até uma coisa meio cruel para se dizer, eles deixaram de fazer parte da minha vida. Um dos meus melhores amigos é americano, mora em São Francisco, é um democrata que não apóia o Bush e coisa e tal, mas essa coisa americana de repente criou uma barreira invisível entre a gente. Este país está fora do meu universo emocional.

Um país a que devemos várias das nossas crenças.

Cora: Das nossas crenças, das nossas liberdades, uma série de formas abertas de pensar, e hoje não consigo mais ter uma relação afetiva com o país.

Cora, e a fotografia, de onde vem?

Cora: Veio do meu avô, que era fotógrafo e tinha duas Rolleyflex lindas. Ele era diretor da Situazione Generalia, então era da profissão dele. Quando teve a Primeira Guerra ele fez várias fotos. Eu tenho guardado os negativos de vidro dessa época. Preciso é separar umas férias, talvez umas, duas ou três seguidas, para poder colocar em ordem, limpar e coisa e tal.

E a câmera, você ainda tem?

Cora: Guardei uma Rolleyflex Planar. É um ícone da minha vida.

Funciona?

Cora: Funciona. Precisa é limpar as lentes porque criou fungo. Mas está direitinha, tem até uma caixa estanque que meu avô usava na guerra. Eu comecei a fazer fotografia muito cedo com ele.

Ele trabalhou como fotógrafo no Brasil?

Cora: Quando ele veio para cá, trabalhou primeiro na seção de fotografia da Cruzeiro e depois no retoque das fotos, porque naquela época se retocava os negativos. Depois se aposentou, mas a vida inteira foi um fotógrafo extraordinário.

Existe algum vínculo entre a observação da natureza e a fotografia?

Cora: Eu tenho certeza que sim. As pessoas dizem: “Você viaja, mas não vê o mundo, fica só com esta máquina tirando foto”. Pelo contrário. Eu vejo o mundo melhor do que qualquer pessoa. Elas estão passando e olhando em geral, eu estou olhando cada detalhe. Me perdi nas pirâmides do México por causa de um passarinho de cabeça vermelha. Ele era muito ligeiro, muito rápido, e ficava muito bem camuflado no meio daquelas pedras. Ele estava longe de mim, eu estava com um zoom, mas estava escurecendo. Então era difícil fotografá-lo. Eu sei que fiquei uma meia hora para fazer uma foto decente e quando finalmente consegui não tinha mais ninguém a minha volta. Agora, se eu estivesse sem a máquina, não teria visto esse pássaro. Não só o pássaro, mas a natureza toda, porque você presta mais atenção ao mundo quando você tem uma câmera na mão, porque você fica sempre olhando os detalhes. Sem a câmera você não está olhando nada.Como os meus companheiros de van, que só estavam percebendo o calor que fazia nas pirâmides e estavam fechados por causa do ar condicionado e indignados com aquela brasileira por esperarem não sei quantas horas.

Tem gente que começou a ler a sua coluna em O Globo por causa das suas fotos.

Cora: Eu fico muito feliz com isso, porque quem elogia o meu texto eu não ligo. É quase como um bom dia ou um boa tarde. As pessoas sempre elogiam os textos quando encontram algum cronista ou escritor. Tem gente que diz que lê a minha coluna e ainda acham que estou no Jornal do Brasil: “ Adoro o que você escreve, mas não tenho comprado o JB ultimamente”, e eu estou no Globo há 11 anos. Então esse elogio ao texto é vazio. Mas quando a pessoa vem elogiar a foto eu fico muito feliz porque isso não é oco, não é aquela pessoa querendo fazer média.

Tem um barato nessa história de publicar as suas fotos?

Cora: Eu acho que criei um desafio, porque me obrigo a ilustrar a coluna com uma foto, Ás vezes é óbvio. Por exemplo, a capivara. Mas quando você fala de coisas abstratas, como é que você ilustra? Quando falei agora do caso do assassinato daquela cadelinha Preta, lá em Pelotas, não tinha fotos. Pedi para o jornal de lá e eles não me mandaram. Então o que você usa para ilustrar? Eu gosto muito disso. Agora eu faço questão de usar máquinas amadoras. Porque, em geral, a tendência do leitor é achar que aquelas fotos saíram boas por causa do equipamento utilizado. Eu não tenho nenhuma máquina que custe mais de 500 dólares.

E você está usando qual agora?

Cora: Estou usando esta daqui, que está comigo o tempo todo. Aliás este arranhão é a bicada de uma garça do Palácio das Garças, no Panamá. Ela ficou encantada com a câmera e veio direto.

É uma Sony Cybershot?

Cora: É muito boa, rápida, quase não tem delay entre o momento que você clica e a hora que ela dispara. Ela também faz o foco muito bem. A anterior a ela, aquela p-10 puxava muito para o verde. Toda foto eu tinha que tratar muito para compensar a cor. Essa daqui não. Estou usando também uma FZ-20 da Panasonic que tem uma lente Laika e um zoom de 12. Para pássaros não tem melhor e para bichos é um show de bola. Foi com ela que eu consegui fotografar o tal passarinho.

Você usa câmeras profissionais?

Cora: Eu adoro mexer com máquina. Outro dia fiquei brincando com a Olympus de um amigo meu, um modelo novo. Ela é tudo de bom, e eu queria muito aquela câmera na época. Mas o problema é que se eu comprar uma máquina dessas vou passar a usar somente ela e acabarei com o meu princípio de estar com uma câmera normal, digamos assim. Uma outra coisa é a foto de telefone, que uso muito também.

É um conceito diferente…

Cora: Exatamente, você já pensa na foto de outra maneira e é uma foto informativa, não é uma coisa que você vai emoldurar e levar para casa. É a única forma de você fazer foto de gente, porque eu não sei chegar perto de pessoas. Agora, com a câmera de telefone, o que você tem de fotos roubadas, tiradas em certos lugares proibidos. Isso é muito bom!ora Rónai

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

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Comentários 1

  1. Bons questionamentos, excelente matéria.