Reportagens

Paraíso na berlinda

Por causa da dificuldade de acesso, o Saco do Mamanguá, em Paraty (RJ), mantém suas águas e florestas praticamente intocadas. Mas as mansões estão chegando.

Bruno Prada ·
10 de junho de 2005 · 20 anos atrás

Uma reentrância de mar com cerca de nove quilômetros de extensão, margeada por morros cobertos de mata atlântica. Dezenas de nascentes de água doce, variadas espécies de pássaros e árvores frutíferas. Quinze praias de areia clara, duas pequenas ilhas. O maior manguezal da região. Parece a visão do Paraíso, mas aqui o homem já chegou.

Os primeiros habitantes do Saco do Mamanguá, na região de Paraty (RJ), foram algumas famílias de caiçaras, que se refugiaram no local no fim da escravidão, e desde então desfrutam da pesca cercados de natureza por todos os lados. Um estilo de vida que praticamente não ameaça a integridade do lugar. Nos últimos anos, porém, um novo tipo de homem, bem mais devastador, está fincando pé no Mamanguá: os endinheirados da baía de Ilha Grande, com suas lanchas, mansões e marinas.

O longo caminho de mar por entre a floresta deu ao Saco do Mamanguá o título de “único fiorde tropical do mundo”, embora tecnicamente haja controvérsias, pois os fiordes normalmente são mais profundos e formam-se em conseqüência de degelo. Em todo caso, biólogos concordam que sua maior riqueza se concentra nas águas. O refúgio é o maior responsável pela reprodução da vida marinha na região. Isso acontece principalmente devido à saúde do manguezal, o mais preservado de toda a baía. Paulo Nogara, biólogo que estuda o local há mais de dez anos, explica a função de criadouro do mangue: “Os rios que desembocam no fundo do Saco são ricos em nutrientes, estimulam a reprodução dos microorganismos que servem de alimento para peixes e camarões”.

Paulo Nogara é ativo defensor do Mamanguá. Com o auxílio da população local, conseguiu impedir a pesca de arrasto dentro na área. “Com o fim da pesca predatória, o camarão branco, ou VG, voltou a se reproduzir na área do manguezal”, conta. Seu Juray Lopes Corrêa (foto), caiçara de 74 anos que mora ali desde que nasceu, atesta a fartura de peixes do lugar. “Este é o lugar mais pescoso do município de Paraty”, diz. A própria origem indígena do nome, mamanguá, significa “lugar de comer”, ensina ele. Basta um passeio de barco pelas imediações para comprovar a abundância de peixes, que saltam incessantes. Não foram poucas, também, as vezes em que baleias visitaram as suas águas.

Já a exuberante mata atlântica nem sempre foi assim. No início do século as fazendas de café devastaram grande parte da Serra do Mar, e a natureza levou um tempo para se regenerar. E o fez com grande louvor. O difícil acesso ajudou a manter a área preservada até hoje. Só dá para chegar de barco ou por trilha de duas horas em vegetação fechada.

Mas a especulação imobiliária que se alastra por todo o litoral entre Rio e São Paulo não poderia ignorar indefinidamente um recanto tão tentador. E a frouxa fiscalização ambiental está ajudando a transformar o Saco do Mamanguá em um destino turístico como tantos outros. Corretoras de Paraty oferecem abertamente casas e terrenos em costões, ilhas e praias, locais vedados à presença humana por lei federal.

A prática mais comum para burlar a legislação é entrar com um pedido de reforma para as moradias caiçaras. As modestas construções de pau-a-pique são compradas a preço de sardinha, e logo se transformam em ricas mansões. Mesmo sem licença ambiental para construir, os proprietários conseguem o alvará de obras da Prefeitura, que se baseia apenas no projeto arquitetônico. Bem na entrada do Saco, alguns casarões, piscinas e heliportos começam a dar feições de condomínio de luxo ao lugar.

As cerca de 50 famílias caiçaras que ainda moram no Mamanguá demonstram o amadurecimento de uma consciência ecológica. A maioria absoluta já não caça mais, não planta e só pesca de maneira artesanal. A necessidade de sobrevivência leva à procura de outras fontes de trabalho, como as obras e o transporte marítimo de visitantes. Ainda que a Associação de Moradores e Amigos do Mamanguá (AMAM) não aprove, alguns caiçaras tiram proveito da chegada dos novos vizinhos. “Essas construções representam para muitos uma fonte de renda imediata, seja como operários ou mesmo caseiros, mais do que a pesca, artesanato ou o incipiente turismo”, revela o antropólogo Antonio Carlos Diegues, da USP, co-autor, com Paulo Nogara, do livro O nosso lugar virou Parque: um estudo sócio-ambiental do Saco do Mamanguá, da editora Nupaub (USP).

Os primeiros a fazer bagunça no Mamanguá são os governos, todos eles. O município, o estado, a união. A pequena área do Mamanguá é dividida pelas três jurisdições. A margem esquerda é a Reserva Ecológica da Juatinga, estadual. Quem responde por ela é Instituto Estadual de Florestas (IEF). A direita é a Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, federal, sob gestão do Ibama. E o espelho d’água ao centro é APA municipal, instituída pela Prefeitura de Paraty. Não existe razão ambiental que justifique essa linha divisória. Enquanto, de um lado, a Reserva Ecológica é de caráter não-edificante, de outro, a APA tem restrições menores à presença do homem. A barafunda criada pelas esferas governamentais tem conseqüências. Não há fiscalização que impeça construções ilegais, nem autoridade que imponha respeito.

João Fernandes, coordenador do IEF, reconhece a ineficiência da fiscalização. “Eles nunca param de construir. Trazem até 150 homens para trabalhar na obra e embarcam o material à noite, enquanto nós temos apenas um barco e uma viatura”, queixa-se. O gestor local do Ibama, Ney França, faz coro: “Mesmo com processo no Ministério Público, se passar um ou dois meses sem fiscalizar, pronto, lá está a casa terminada. Se a gente for, os peões reconhecem a lancha e se escondem no mato”.

Um dos casos mais polêmicos é o do piloto de stock car Alexandre Negrão. Ele construiu oito chalés, heliporto, piscina, píer, salão de festas e academia, dentro da área da Reserva. Só a casa principal tem aproximadamente 800m2, e segundo vistoria da Feema, realizada no ano passado, foi construída sobre um pequeno riacho de água doce. Apesar de a obra estar embargada por liminar, os operários continuam trabalhando (foto).

A promotora do Ministério Público Patrícia Gabai Venâncio, de Angra dos Reis, responsável por ações contra construções ilegais no Mamanguá, confirma a dificuldade de fazer cumprir a lei numa área tão isolada. “Casas em costões rochosos, desmate, privatização de praias, desvio de curso de águas, a gente vê de tudo”, diz a Patrícia.

Quem também quer uma fatia do paraíso é o milionário Condomínio Laranjeiras,
uma área exclusiva perto do distrito de Trindade, cujos proprietários concentram, segundo moradores, “metade do PIB nacional”. Através do projeto Águas Mansas, eles pretendem construir uma marina para até 50 lanchas no fundo do Saco do Mamanguá, muito próximo da área de reprodução dos peixes e camarões. O argumento é de que as águas calmas facilitariam os passeios dos condôminos em dias de mar agitado. Chegaram a abrir uma estrada pela mata atlântica. Impedidos de continuar devido a autuação da Feema, pelo menos reagiram civilizadamente: estão tentando aprovar o projeto por vias legais.

* Bruno Prada é jornalista recém-formado.

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