Aproxima-se do fim uma das maiores disputas ambientais do Brasil nos últimos tempos. No dia 4 de julho, a hidrelétrica de Barra Grande recebeu do Ibama a Licença de Operação para encher seu reservatório no rio Pelotas, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Com isso, vai inundar mais de 4 mil hectares de mata atlântica íntegra ou em bom estado de regeneração, incluindo araucárias e uma espécie de bromélia que só existe ali.
O escândalo de Barra Grande veio a público há quase um ano, com a descoberta de que o estudo de impacto ambiental da obra subestimou, e muito, a riqueza florestal da região. Desde então, grupos ambientalistas lutam na Justiça para embargar a usina. As ações ainda tramitam, mas a Licença de Operação concedida pelo Ibama liberou oficialmente o fechamento das comportas.
Daqui a três meses, a floresta estará submersa. No dia 31 de outubro, a Baesa, consórcio de construtoras responsável por Barra Grande, pretende acionar a primeira das três turbinas que vão gerar 690 megawatts. Nessa troca de natureza por energia, o que sobra é muita controvérsia.
A começar pela própria Licença de Operação, que até a tarde do dia 5 de junho o Ibama não confirmava ter liberado. Faltaria o pagamento de uma taxa por parte da Baesa. O presidente da empresa, Carlos Alberto Bezerra de Miranda, disse que pagou a taxa, de 112 mil reais, e que já tem a licença em mãos. O valor diz respeito aos estudos feitos para embasar a decisão. Não foram poucos. Os mais recentes tiveram como alvo a bromélia Dychia distachya. Segundo botânicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a espécie só existe, no Brasil, na região a ser alagada por Barra Grande.
O professor Ademir Reis, que há um ano coordena o projeto destinado a identificar os habitats da bromélia para propor estratégias de conservação, nos últimos dias largou as picadas de floresta que tinha de enfrentar em busca da planta para se meter em uma série de reuniões em Brasília com técnicos do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama. “Denunciei que só existem três populações da espécie no Brasil, todas na área de Barra Grande. O Ibama não poderia autorizar a extinção de uma espécie no país. Se o fez, eu mesmo entro na Justiça”, diz Reis. Mas ressalva que ainda havia a possibilidade de encontrarem a mesma bromélia em São Joaquim (SC), ali perto. Na semana passada, um grupo de técnicos do Ministério esteve na área, mas ele estava viajando e não soube do resultado.
Para o presidente da Baesa, a sobrevivência da bromélia em território brasileiro é o de menos. “É uma planta muito comum na Argentina”, desdenha Carlos Miranda. Ele diz que a empresa vai gastar 180 milhões de reais em medidas socioambientais, incluindo a compra de outra floresta de 5.700 hectares e a criação de um banco de germoplasma das principais espécies a serem retiradas ou afogadas. “Vocês conseguiram uma vitória enorme em Barra Grande”, argumentou para o repórter d’ O Eco. “A Licença de Operação tem 77 condicionantes. Nunca uma LO teve tantos condicionantes”, queixa-se.
Quais são os condicionantes, Miranda não sabe detalhar. Nem o professor Ademir Reis sabe dizer se o estudo genético de suas bromélias está entre eles. Ibama e Ministério do Meio Ambiente, se nem confirmaram a licença, que dirá explicar seus termos.
Essa falta de transparência irrita os ambientalistas. E não é de hoje. Miriam Prochnow, coordenadora da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), diz que desde o início do ano tentam marcar uma reunião com Marina Silva para tratar de Barra Grande, mas a ministra se nega a recebê-los. Uma das líderes do movimento de resistência à hidrelétrica, ela estava atônita ao telefone, nesta terça-feira de manhã. “A concessão desta licença é algo absolutamente degradante. Mostra o que é a política ambiental do governo. Diante deste fato, feito desta forma, não tenho mais esperanças”, desabafou.
Em nota divulgada na parte da tarde, Miriam também diz estranhar que o anúncio da licença tenha sido feito pela senadora Ideli Salvatti (PT/SC). “O que ela tem a ver com isso?”, pergunta. O site da senadora dá a pista de que a decisão partiu da Casa Civil, agora sob o comando da ex-ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff.
Dilma não se pronunciou, mas o presidente da Baesa tem na ponta da língua o discurso que faz a cabeça da ministra. “O Brasil precisa de energia, e a solução viável é a oferta hidrelétrica. Temos 20% da água do planeta. Temos que resolver esses conflitos pesando todos os lados da questão”, diz Carlos Miranda. E o lado ambiental de Barra Grande está resolvido com sobras, reafirma. Até porque, segundo ele, “não tem essa vegetação toda lá”. Miranda garante que a maior parte da floresta íntegra vai ficar acima do nível da represa, e põe em dúvida até a motivação original da crise: o estudo de impacto ambiental da Engevix. “Novas análises estão sendo feitas e parece que o estudo inicial estava certo”, sugere. Isto, apesar de o Ibama ter reconhecido a fraude no relatório da Engevix, multado e descadastrado a empresa, e estabelecido a enorme lista de “condicionantes” ambientais que a Beasa aceitou, sem pestanejar muito.
Ainda assim, é tentador acreditar no que Carlos Miranda afirma com veemência. Como é tentador torcer para que a bromélia Dychia distachya tenha sido encontrada em São Joaquim. Até porque, a esta altura, não resta muito a fazer para os que defendem a floresta. A não ser torcer ou espernear. A segunda opção já mobilizou a Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (Apremavi), que pretende “bloquear a caixa de correio” do Poder Executivo com mensagens garrafais de protesto contra a Licença de Operação para Barra Grande.
E, no front anti-barragens, não falta trabalho pela frente. A começar pela rara bromélia. Se de fato foram encontrados exemplares em São Joaquim, começa agora uma nova corrida para salvá-la, pois também ali será construída uma hidrelétrica, a de Paiquerê. Já sua prima próxima Dychia ibiramensis protagoniza um escândalo com o mesmo script de Barra Grande, mas em versão reduzida. Bromélia exclusiva da região de Ibirama (SC), está ameaçada por uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH). Detalhe: a obra ganhou licença prévia da Fatma, órgão estadual de meio ambiente, mas o estudo de impacto simplesmente desapareceu. Será que era da Engevix?
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