Reportagens

Os trapalhões

Recém-criada em Porto Alegre, Frente de Libertação Animal fez seu primeiro atentado: abriu jaulas de um mini-zôo e causou a morte de bichos que queria salvar.

Liège Copstein ·
22 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Um grupo de ativistas da recém-nascida Frente de Libertação Animal (FLA), organização provavelmente inspirada numa do mesmo nome atuante na Europa Animal Liberation Front, ALF, entrou para a história dos movimentos sociais gaúchos arrombando jaulas no mini-zôo do Parque da Redenção, em Porto Alegre, e liberando por algumas horas um bando de 10 macacos-prego, um papagaio e uma saracura.

A ação, acontecida na madrugada do dia 4 de setembro, não teve testemunhas. A repercussão foi mínima entre os freqüentadores do parque, mas a mídia local deu grande destaque ao nascimento da FLA. O grupo pichou no muro do zôo a frase enigmático-ameaçadora “Não somos brinquedos”.

A ação teve mais efeito na mídia do que para os bichos. A liberdade dos macacos durou pouco. No início da tarde do mesmo domingo, nove deles já tinham voltado ao cativeiro. No dia seguinte, o último foi recapturado. Desde então, a Polícia Militar faz rondas discretas no parque, vigiando o zôo. Os policiais estão ali para defender os bichos. Isso porque desastrada ação da FLA fez vítimas entre os animais que pretendia salvar. A saracura morreu atropelada na Avenida João Pessoa, movimentada marginal do parque. O papagaio foi morto pelos próprios macacos, estressados pela movimentação.

O retorno dos macacos-prego às jaulas foi uma benção para eles. Os bichos teriam tanta chance de sobreviver sozinhos em pleno centro urbano quanto uma criança de cinco anos abandonada no meio da floresta amazônica.

Criticada pela imprensa, a FLA divulgou um manifesto pela internet em que condena a “estupidez antropocêntrica” de manter animais em jaulas, e tenta explicar a intenção do atentado que saiu pela culatra: “Temos consciência de que AQUELES animais poderiam não sobreviver à natureza, pois foram condicionados a uma jaula (os animais só poderiam retornar ao seu habitat sendo feita uma adequada readaptação). Mas também temos consciência de que após a morte de uma das ‘peças’ deste pequeno espetáculo, ela será substituída, dando continuidade ao cruel ciclo”, escreveram. Os integrantes da Frente só se comunicam protegidos pelo anonimato da rede.

Ações do tipo da FLA gaúcha são consideradas “terrorismo ecológico”, comuns apenas no Primeiro Mundo. Lá, visam não apenas zoológicos, mas também laboratórios que utilizam cobaias, biotérios de universidades e afins – raras vezes descambam para a violência contra pessoas.

O pensamento radical aplicado à defesa dos animais é novidade em Porto Alegre. No mundo, começou na década de 70, pelo trabalho do antropólogo e filósofo australiano Peter Singer, autor do tratado Libertação Animal, só recentemente lançado no Brasil. No livro, ele usa argumentos científicos para questionar o tratamento que os humanos reservam aos animais.

O texto do manifesto da FLA tem influência evidente do pensamento do Singer, quando estipula que os direitos dos seres são intrínsecos ao fato de que podem “sentir”, e não relacionados à sua capacidade cognitiva.

Outro estudioso do assunto, o filósofo Carlos Naconecy, da PUC de Porto Alegre, autor da obra “Panorama crítico da ética ambiental contemporânea”, diz que o termo ecoterrorismo pressupõe o uso de violência, e portanto não se aplicaria às incursões da Animal Liberation Front, a ong inglesa na qual os ativistas gaúchos parecem ter buscado inspiração. Agressões a patrimônios materiais, para Naconecy, não podem ser qualificadas como atos violentos.

Segundo ele, o grupo porto-alegrense errou porque “seus integrantes se voltaram para um zoológico público”, lembra o professor. “Um mini-zôo não é prioritário em termos de crueldade. E a ação resultou na morte de animais – algo inconcebível para a mentalidade ativista. Qualquer pessoa sensata seria capaz de antecipar que a libertação de animais silvestres no meio urbano resultaria num fim trágico para eles. Isso demonstra, com efeito, uma falha estratégica grave e um erro de cálculo nessa operação. Mas não desqualifica em termos éticos o seu ideário. Atacam-se coisas para salvar animais – pois criaturas sensíveis têm mais valor do que coisas. A Ética nos obriga a isso”, acredita.

Ironicamente, o mini-zôo, que existe desde a fundação do Parque da Redação, há 70 anos, leva o nome da pioneira na defesa dos animais no Rio Grande do Sul, Palmira Gobbi. A maioria dos animais é levada para lá pelo Ibama, depois de apreendidos em cativeiro ilegal.

Em julho, o secretário de Meio Ambiente da cidade, Beto Moesch – que utilizou a defesa dos animais como base de sua campanha política – esteve no parque oficializando a adoção do zôo por uma empresa de telefonia. As placas do patrocinador foram pichadas.

A polícia de Porto Alegre considerou o arrombamento das jaulas como um ato de simples vandalismo. A direção do zôo, precavida, planeja usar guardas municipais em tempo integral.

Em novembro de 2000, houve também um ataque ao zôo, quando a tela da gaiola dos macacos foi arrebentada e 18 fugiram – um deles, desacostumado com a vida fora da jaula, morreu ao cair de uma árvore. Nunca se soube quem fez aquilo.

* Liège Copstein é jornalista em Porto Alegre, amante de gatos, tartarugas, macacos-prego, papagaios e saracuras.

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