O Ibama deu sinal verde para uma obra que vai percorrer 522,5 quilômetros de uma região quase intocada da Amazônia, com biodiversidade desconhecida e onde vivem 22 populações indígenas, entre elas três que ainda não foram contactadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Os números seriam suficientes para um escândalo ambiental sem precedentes, não fosse pelo diâmetro do impacto: 36 centímetros. É mais ou menos esta a medida do gasoduto da Petrobrás que vai partir da Província Petrolífera de Urucu, no Amazonas, e chegar nas termoelétricas da capital de Rondônia, Porto Velho, levando gás natural. A empresa garante que o estrago será mínimo e que depois da obra as tubulações vão sumir de vista, pois são subterrâneas e a mata retirada será replantada. Ambientalistas não acreditam que um rasgo com este comprimento no meio da floresta possa ser tão inofensivo assim.
Concedida no dia 6 de setembro pelo Ibama, a licença de instalação do gasoduto Urucu-Porto Velho lista 33 exigências para a realização da obra. Entre elas, medidas para evitar a erosão, monitoramento de rios e lagos durante e após a obra, indicação do uso e reaproveitamento da madeira cortada e, “quando possível”, evitar intervenções em áreas de preservação permanente.
Além disso, a TNG Participações, consórcio liderado pela Petrobrás, terá que destinar no mínimo 0,5% do valor investido para compensação ambiental. Como a obra está estimada em US$ 350 milhões, o Ibama pode receber pelo menos 1,8 milhão de dólares para ações de preservação na região. De acordo com Tibério Vieira, da Diretoria Financeira e Administrativa do Ibama, a empresa já concordou em repassar dinheiro para quatro unidades de conservação. Duas no Amazonas — a Reserva Biológica de Abufari e a Floresta Nacional de Balata-Tufari — e duas em Rondônia — a Estação Ecológica de Cuniã e a Floresta Estadual Rio Madeira. Mas ainda falta definir no que o dinheiro vai ser investido.
Por enquanto, a gerência-executiva do Ibama em Manaus confirma apenas recursos para a implantação da Floresta Nacional de Balata-Tufari, criada em fevereiro deste ano com 823 mil hectares, entre os municípios de Canutama e Tapauá. Para preservar a integridade da Floresta Nacional, o Ibama condicionou a licença para obra à alteração do traçado do gasoduto, poupando a área de Balata-Tufari.
Há também exigências sociais. Elas vão da apresentação de um Estudo de Análise de Risco (EAR), para prevenir acidentes, à distribuição de filtros de água à população, como parte das melhorias na infra-estrutura sanitária da região de influência do gasoduto, uma faixa de 10 quilômetros às margens de todo o trajeto. Está prevista também a instalação de painéis solares nas escolas e postos de saúde. A mão-de-obra local deve ser priorizada. A intenção é melhorar as condições de vida das populações atingidas e prevenir surtos de malária e outras doenças tropicais.
Para os ambientalistas, os riscos do empreendimento superam as exigências e compensações que possam ser oferecidas. Eles sustentam que a obra pode causar problemas no regime dos rios que serão atravessados pelo gasoduto. Mário Menezes, colaborador da ong Amigos da Terra no Amazonas, prevê impactos como barreamento, poluição das águas e erosão. E critica a lista de exigências do Ibama. “Entre as medidas, há até um programa de Comunicação Social. Como fazer um programa destes com índios isolados?”, questiona.
Os maiores riscos estão guardados para depois da conclusão do gasoduto. “A obra coloca uma área isolada da Amazônia em contato com uma frente de desmatamento, que é o estado de Rondônia”, afirma o ecólogo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). “Ainda que não seja o plano do governo federal, o gasoduto vai abrir caminho para um ponto de floresta ainda não tocado no Oeste da Amazônia. Depois, com a população já instalada, vai haver um fato consumado e o governo vai querer abrir estradas e levar infra-estrutura”, prevê o pesquisador.
O gerente-executivo do Ibama discorda. Segundo Henrique Pereira, os 1.100 hectares de florestas a serem derrubados para a tubulação passar serão recuperados. Após a saída das máquinas e operários, o gasoduto vai ficar oculto, a uma profundidade média de 1 metro, e apenas as algumas clareiras permanecerão abertas para a manutenção da estrutura, com acesso restrito a helicópteros. “A manutenção do gasoduto não é feita por estradas. Além disso, a obra está distante de qualquer outra infra-estrutura”, alega.
As discussões sobre o gasoduto se arrastam há mais de cinco anos, desde o início do processo de licenciamento. Foram realizadas audiências públicas em Porto Velho e nas cidades de Coari, Tapauá, Canutama, Lábrea, Humaitá, todas no Amazonas, que devem sofrer mais impacto do transporte de gás. Organizações não-governamentais realizaram por conta própria uma audiência em Manaus. O processo não serviu de muita coisa. “Nenhuma reivindicação apresentada em audiências públicas foi acatada. Eles não agregaram nada do que as comunidades pediram”, critica Adílson Vieira, secretário-geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), uma rede de organizações não-governamentais que se dedica ao desenvolvimento sustentável da região.
O GTA defende que a criação das áreas protegidas aconteça antes do início das obras. Por isso quer suspender o licenciamento e pedir ao Ministério do Meio Ambiente a realização de novos estudos. “Nós questionamos o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima), que não apresentaram alternativas ao traçado do gasoduto e ao meio de transporte, como exige a lei, e trouxeram uma análise social incompleta”, afirma Vieira. “O transporte de gás foi um dos argumentos em favor da hidrovia do rio Madeira (entre Manaus e Porto Velho), mas depois abandonaram a idéia e o Eia-Rima nem menciona esta possibilidade”, destaca.
No ano passado, o Ministério Público chegou a pedir a suspensão do licenciamento prévio, justamente por causa das falhas no Eia-Rima. Mas acabou firmando um Termo de Compromisso com a empresa e retirou a ação que corria na Justiça. “Fizemos uma representação contra o Ministério Público, argumentando que o Termo de Compromisso não era adequado. Em vez do Ministério Público lutar pelo Eia-Rima para evitar o dano, usou um atalho e negociou direitos indisponíveis dos índios”, afirma Menezes. De acordo com o colaborador da ong Amigos da Terra, existem cerca de 4 mil índios na área de influência do gasoduto, mas nenhuma Terra Indígena foi demarcada na região até hoje.
Nem a Petrobrás parece convencida da eficácia das ações propostas pelo Ibama. “Só na comunidade de Belo Monte, no Amazonas, cerca de mil casas vão ter de receber filtros, mas o esgoto lá é a céu aberto. Não adianta ter a água filtrada, se a criança pega o copo com a mão suja e se contamina”, afirma o coordenador de Gás da empresa no Amazonas, Ronaldo Mannarino.
Ele acredita que os impactos ambientais podem ser amenizados com um programa de Desenvolvimento Sustentável, mas a Petrobrás ainda não sabe como fazê-lo. Mannarino cita como exemplo as ações desenvolvidas pela empresa na construção do Gasoduto Coari-Manaus, que vai levar gás de Urucu para a capital do Amazonas. Os municípios estão recebendo investimentos de R$ 1 bilhão do governo do estado e da estatal, para programas sociais e ambientais. “Encontramos municípios maravilhosos do ponto de vista ecológico, mas com grandes problemas sociais. Queríamos dar cidadania às pessoas, mas tivemos que começar do zero, porque a população não tinha sequer documentos”, diz Mannarino.
A comparação entre as duas obras é descartada por Philip Fearnside, do INPA. Segundo ele, existem grandes diferenças entre Manaus e Porto Velho. O pesquisador lembra que Rondônia é um dos pontos de entrada de migrantes para a Amazônia e de avanço do desmatamento, ao contrário da região de Manaus, onde o problema da degradação da floresta ainda não é sentido com tanta intensidade.
O próprio técnico da Petrobrás reconhece que o modelo do outro gasoduto não serve para as compensações da nova obra. Enquanto no Coari-Manaus as ações socioambientais tiveram como ponto de partida estudos já existentes da Universidade Federal do Amazonas (UFMA), o Urucu-Porto Velho baseia-se em um Eia-Rima criticado por ambientalistas. Por isso, Mannarino faz questão de dizer que “o licenciamento não põe fim ao debate” e prevê problemas na execução das compensações.
“O que está em questão é o abandono e a dificuldade do interior do Amazonas. Existe um vazio institucional, e não é através de medidas compensatórias de obras que vamos satisfazer a nossa luta para tirar a população do interior da Amazônia do abandono completo”, pondera o coordenador de Gás da Petrobrás no Amazonas.
* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.
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