No papel, o projeto do governo federal de construir um complexo hidrelétrico com duas usinas, Jirau (mapa) e Santo Antônio, num trecho do rio Madeira que corta Rondônia traz uma boa notícia para o meio ambiente. A tecnologia de suas turbinas foi programada para minorar o principal impacto ambiental produzido pela instalação de qualquer hidrelétrica em um rio: a necessidade de alagar grandes áreas para gerar eletricidade. As usinas, cuja construção ainda depende de licenciamento ambiental, vão inundar 529 km2 nas duas margens do rio para produzir, juntas, 6 mil 450 megawatts de energia.
Parece muito. Mas perto dos reservatórios de outras hidrelétricas na Amazônia, os que vão alimentar as Jirau e Santo Antônio estão mais para piscinas. Balbina, no Pará, com potência de geração que não chega nem a 10% de suas “primas” de Rondônia, alagou 2 mil 360 km2 de floresta quandou entrou em funcionamento “Isso é um ponto favorável ao projeto”, diz Enrico Bernard, da Conservação Internacional. Infelizmente, parece ser o único. Por mais estreitos que sejam seus reservatórios, o impacto das duas obras têm potencial para ser devastador por conta de um detalhe geográfico. As usinas serão instaladas em região considerada de grande importância pela sua biodiversidade.
Tanto assim que desde 1999 ela está assinalada num mapa de áreas na Amazônia consideradas prioritárias para a criação de unidades de conservação (mapa). Nele, aparece demarcada em vermelho e classificada como “A”, dois sinais de que ali deveria pelo menos se pensar duas vezes antes de bulir com a natureza. “Existem pelo menos 5 áreas acima das barragens e mais 4 abaixo consideradas de extrema importância para a conservação”, diz Bernard. “A prioridade biológica da calha do Madeira para aves, peixes, mamíferos, répteis e anfíbios de todas as áreas varia de muito alta a extrema” diz Beatriz Nogueira Ribeiro, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
A eventual destruição da biodiversidade que existe no local é, infelizmente, apenas uma das duas más notícias que estão embutidas no projeto de construção das duas usinas. A segunda é que as obras têm tudo para gerar problemas ambientais em dimensões continentais. Jirau e Santo Antonio, se um dia ficarem de pé, vão ser bem mais do que usinas de energia. Fazem parte de um projeto para criar uma malha de transportes fluvial e rodoviário ligando a bacia do Orinoco, na Venezuela, à bacia do Prata.
Integração continental
Chama-se Iniciativa para a Integração Regional Sul Americana (IIRSA) e começou a ser tecido, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2000, depois de uma reunião de chefes de estado sul americanos em Brasília. Mal comparando, é como se a transposição do São Francisco fosse feita em escala continental, instalando diversas barragens, canais e eclusas ao longo de rios sul americanos. Até agora, o IIRSA mal caminhou. Mas com Jirau e Santo Antonio em pé, a idéia ganhará uma tremenda lufada de vento pela popa.
As usinas são o elo principal de ligação das duas bacias e o primeiro lugar onde seu conceito fundamental de integração de estradas e hidrovias poderá ser testado na prática. “O IIRSA tem alguns projetos andando”, diz Bernard. “Mas nada que se compare a grandiosidade das hidrelétricas do Madeira”. Mesmo sozinhas, sem o resto das obras previstas para o continente, elas terão uma influência que vai muito além do trecho do Madeira que passa pelo Norte de Rondônia.
A própria apresentação feita sobre o projeto por Furnas Centrais Elétricas e a Construtora Odebrecht reconhece, em tom festivo, que o alcance da obra tem tudo para chegar até o Pacífico pelo Oeste (mapa) e o Atlântico, à Leste. “A proposta do projeto é, além de integrar hidrovias e estradas, criar mais canais de exportação de produtos agrícolas. Um seria através do Peru. O outro, pelo Madeira, Itacoatiara e Amazonas, de onde as mercadorias seguiriam para seus compradores através do Atlântico”, diz Bernard.
Mas enquanto estas reverberações continentais não acontecem, a preocupação se concentra mesmo é nos ecos mais imediatos das obras, tanto no Madeira quanto no seu entorno. “As represas vão dificultar o trânsito de peixes no rio, sua reprodução e isso terá efeitos sobre a manutenção dos estoques pesqueiros na região”, diz Nogueira, do Imazon. Ela lembra ainda que além de estarem projetadas para subir em local considerado prioritário do ponto de vista da conservação, Jirau e Santo Antônio também atingirão unidades de conservação estaduais instaladas ao seu redor.
Preocupação imediata
“É provável que a constituição de seus reservatórios alague parte da Estação Ecológica de Três Serras e da Floresta Estadual de Rio Vermelho”, diz Nogueira (mapa). Na área marcada para a construção da usina de Santo Antônio há alta diversidade de primatas e duas novas espécies foram descobertas lá recentemente. Lá também existem cerrados isolados que têm potencial para abrigar uma megafauna que ainda não foi descrita e, caso a região seja alagada, nunca será. Na região da usina de Jirau, além da diversidade de primatas, existem espécies endêmicas e a presença de formações vegetais únicas.
Além de vitimar tudo isso, lembra Bernard, o oferecimento de uma infra-estrutura de transporte pode ampliar a expansão da soja pela Amazônia e abrir o cerrado boliviano para a plantação do grão. “A região é plana e a única coisa que neste momento impede o seu desmatamento e a tomada do solo pela soja é a falta de transporte”, diz. “Mas com o complexo hidrelétrico do Madeira, esse problema, pelo menos para os sojeiros, fica resolvido”.
O Estudo de Impacto Ambiental das usinas feito por consultores contratados pela Odebrecht foi entregue ao Ibama no ano passado. E apesar de Dilma Rousseff, da Casa Civil, ter anunciado as obras como parte de um pacote eleitoreiro do governo para 2006, não há qualquer garantia até o momento que elas conseguirão a licença ambiental. A construção do complexo hidrelétrico do Madeira está orçada em 20 bilhões de reais, quantia suficiente para fazer qualquer empreiteiro ou político achar que a obra é prioritária. Uma equipe da diretoria de licenciamento do Ibama desembarca no dia 15 de janeiro para fazer os primeiros estudos na região.
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