“Você vai visitar o Parque?”, pergunta a funcionária do Ibama, na guarita de entrada do Parque Nacional do Itatiaia. Custo a entender o que ela quer dizer. Se estou com o carro parado à frente da cancela que dá acesso ao lugar, que outra intenção posso ter? Paciente, a moça explica: “Se você ficar apenas na área do hotel para onde vai, não precisa pagar pela visitação. Se circular fora do terreno do hotel, paga uma taxa diária”.
Surpresa para o visitante de primeira viagem, a situação faz parte da rotina dos hoteleiros e moradores que tocam suas vidas e trabalhos em plena área pública destinada à conservação ambiental. Área pública crivada de áreas privadas, eis a questão. Mas como não foi resolvido em 69 anos, o estranho convívio entre o público e o privado no primeiro Parque Nacional do país já estava mais que assimilado. Até que o Ibama resolveu repensar a situação.
Itatiaia transformou-se num barril de pólvora. No mês passado surgiram as primeiras declarações do chefe do Parque, Walter Behr, dando conta de que pretendia cumprir a lei das unidades de conservação (SNUC, de 2000). Ela diz, muito simplesmente: em Parque Nacional não pode haver propriedade particular. Por isso todos os hotéis e sítios existentes na parte baixa do Parque teriam que ser desapropriados São, por alto, 190 propriedades. A notícia chegou aos jornais e a repercussão local foi a pior possível. O chefe do Parque ganhou antipatia instantânea de boa parte dos moradores e proprietários.
No último sábado, dia 18, representantes do Ibama de Brasília vieram em socorro a Walter Behr, na primeira reunião da Câmara Técnica responsável por discutir a regularização fundiária em Itatiaia. A intenção era acalmar os ânimos e isentar o chefe do Parque de responsabilidade pela crise. O primeiro objetivo foi cumprido. O segundo, não.
Difícil pedir calma
“É difícil pedir que as pessoas tenham calma quando estamos intervindo a vida delas. É legítimo que haja manifestações de mal-estar e discordância”, afirmou Valmir Ortega, diretor de Ecossistemas do Ibama, preparando o terreno para o que viria. Diante dele, um público de ao menos 60 hoteleiros e moradores. Ortega assumiu a reunião logo após uma rápida abertura de Walter Behr, que não abordou as desapropriações, limitando-se a falar de outros projetos de sua administração e da proximidade dos 70 anos de criação do Parque. Depois, Walter sentou-se em uma cadeira lateral e sumiu da conversa até o fim.
De frente para o público, estavam Ortega, a procuradora Lucy Lerner, o coordenador-geral de Regularização Fundiária Bóris Alexande César, e o coordenador de um Grupo de Trabalho responsável por discutir problemas fundiários, Dalton Novaes. Todos do Ibama. A idéia era justamente mostrar que o órgão está estudando os entraves em vários Parques e reservas ambientais. Ou seja, que o cerco às propriedades privadas de Itatiaia não era obra de Walter Behr.
“O Grupo de Trabalho está fazendo um levantamento das áreas que o Ibama já adquiriu, do que já é público e como é cuidado, e dos lotes privados. O objetivo de curto prazo, digamos cinco anos, é aumentar a proteção”, explicou Ortega, num tom apaziguador. Disse que o Ibama vai escolher quais são as áreas prioritárias para preservação, e só então decidir sobre quais processos de regularização que precisam ser “acelerados”. Nada de desapropriar todos os hotéis até o ano que vem, como chegou a ser divulgado.
Apesar das boas novas, os técnicos do Ibama não se cansaram de repetir que acabar com as áreas privadas dentro do Parque não é opção: é dever legal do governo. “Se eu prometer que não vai haver desapropriações, incorro em crime de responsabilidade”, afirmou Ortega.
Defensores da natureza
O tom moderado e os argumentos legalistas de Valmir Ortega surtiram algum efeito junto aos presentes. Sérgio Kunio Yamagata, presidente da Associação de Moradores de Itatiaia, foi o porta-voz de um discurso muito ouvido entre os proprietários: o de que eles sempre protegeram a natureza até melhor do que o Ibama. “Imaginávamos que, nos 70 anos do Parque, seríamos nós os homenageados. Ajudamos a recuperar a vegetação. Acabamos com uma carvoaria, recuperamos área de pasto. Nossos caseiros mudaram de mentalidade”, defendeu. Outras palavras para o que contava Hilda Clauzet, proprietária de casa na área do Parque, antes da reunião: “A gente é que corre com palmiteiro, com caçador”.
Leonardo Rodrigues de Britto, advogado da associação e proprietário de dois hotéis, foi à frente ler uma carta assinada pelo deputado estadual Carlos Minc (PT), presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa. O texto de Minc argumenta que as desapropriações poderiam “romper a aliança histórica e necessária entre o setor ambiental e o setor do turismo”, além de serem muito dispendiosas. E sugere um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) definindo obrigações para os proprietários e a exclusão dos hotéis e sítios (cerca de 300 hectares) da área do Parque. Leonardo leu em seguida uma carta assinada por proprietários de cinco hotéis. Esta é mais contundente. Classifica as intenções do Ibama de “aberração social, legal e comercial” e diz que os atingidos pretendem tomar as medidas políticas e jurídicas para evitar o “descalabro”.
“Se tiver TAC é até bom”, confidenciou a O Eco um dos técnicos do Ibama. “Porque o TAC é um instrumento de transição, não é definitivo. E, através dele, podemos cobrar mais dos proprietários”. Ele recusa, no entanto, a versão de que os proprietários são defensores da natureza. “Eles privatizaram cachoeira!”, lembra. Até mesmo as cercas particulares atrapalham o trânsito de fauna, uma das finalidades do Parque. Fora outras irregularidades, há casos de parcelamento ilegal do solo, como o do hotel Simon (foto acima).
Reclamações
Em cada fala, uma crítica à “inabilidade” de Walter Behr para conduzir o caso, com mágoas evidentes pelo fato de ele ter exposto à imprensa os planos de desapropriação. Na defesa de Walter, críticas à imprensa. “Interessa é chamar a atenção do leitor. Só aparecem frases mais extremadas. O Ibama não quer virar Ibamatur, como disseram. Hoje queremos desconstruir essas visões extremadas”, disse Valmir Ortega.
Depois saiu em defesa explícita de Behr: “Para mim, que estou a 1.200 km de distância, é muito mais fácil parecer simpático. Queria fazer uma defesa do chefe do Parque. Quem está no dia-a-dia enfrenta todas as dificuldades”, ponderou.
Mas não adiantou. Os moradores estão insatisfeitos com os novos métodos implantados pelo chefe. Não se conformam de não poder mais acessar locais turísticos do Parque fora de suas propriedades sem pagar, por exemplo. “O direito de ir e vir é sagrado! Nós não estamos numa ditadura!”, vociferou, transtornada, uma senhora apresentada como dona Carlota, “viúva do ex-ministro Hélio de Almeida”. “Isso está cheirando a um novo Valerioduto!”, disparou. Ela chegara há pouco à reunião, atrasada, sentara-se na primeira fileira e, encarando Valmir Ortega, disparara: “Você, quem é? Qual é o seu cargo? É formado em quê? Tem algum documento que comprove quem é?”.
Embora caricato, o exemplo de dona Carlota ilustra a postura de parte dos proprietários. Uma espécie de “Sabe com quem está falando?” ambiental. Gente rica, de meia idade ou já idosa, que em outros tempos gozou de considerável influência política. Ou ainda goza. Situação bem diferente de boa parte das áreas protegidas, onde os irregulares são caiçaras, quilombolas ou caboclos — ou, mais simples ainda, meros invasores — cuja retirada não é tão delicada politicamente. Vindo de uma experiência bem-sucedida no Juruá, interior da Amazônia, Walter Behr talvez não tenha acertado no tom com que propôs suas novidades de gestão.
Ele considera óbvio que, para usar a cachoeira de um Parque Nacional, todo visitante tem que pagar. Por que os proprietários de Itatiaia, estando fora se seus sítios, não pagariam? Walter se levantou ao fim do encontro para dar as palavras finais. Mas acabou interrompido por Leonardo Rodrigues de Britto (foto). Dedo em riste, chamou-o de “mentiroso” por declarar aos jornais que no Carnaval o excesso de visitantes nos hotéis ocasiona vazamento de esgoto. “Não quero contato nenhum com o senhor. Vou ter com a procuradora, com os outros técnicos, mas o senhor, infelizmente, não é persona grata para nós todos”, encerrou, arrancando até algumas palmas.
As desapropriações em Itatiaia podem até ter subido no telhado. Mas o fato é que Walter Behr terá que recompor suas relações dentro do Parque. E considera que o encontro foi ótimo para isso. “Todos achavam que eu era o grande vilão da história. Tinha que chegar a este ponto para começar a mudar. Eles viram que a questão é institucional. E agora já estão mudando de postura. Tanto que o Leonardo e o Luiz Carlos [proprietário do hotel Ypê] marcaram uma reunião comigo nesta terça-feira”, diz Walter.
Que os homens se entendam. Pelo bem de Itatiaia.
Leia também:
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Qual a melhor solução para as áreas particulares do Parque Nacional de Itatiaia? Onde estão os limites da lei? É preciso desapropriação? Há controvérsias.
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