Reportagens

Dos estragos, o menor

O 1º projeto de Desenvolvimento Sustentável do Incra na Amazônia completa 5 anos. Impedidos de vender a terra, seringueiros aprenderam a conviver com a natureza.

Cristina Ávila ·
24 de abril de 2006 · 19 anos atrás

O primeiro assentamento de reforma agrária criado na Amazônia com preocupação de conservação da natureza completa cinco anos em junho. A trajetória de 150 famílias assentadas pelo Incra no chamado Projeto de Desenvolvimento Sustentável São Salvador, no Acre, não foi fácil. Acostumados a derrubar a mata, botar fogo para abrir roças e usar cachorros para caçar, os assentados tiveram que aprender a lidar com a natureza.

A necessidade de mudança ficou evidente por causa do risco de extinção da fauna. Os bichos eram poucos, e os cães ainda os espantavam para mais longe – provocando brigas entre os moradores. Armados, eles chegavam a fazer ameaças de morte uns aos outros por causa da escassez de carne, cada vez maior. Só conseguiram resolver os conflitos depois que criaram uma espécie de “Constituição” para o assentamento – uma cartilha com as principais regras de comportamento ecológico. Hoje, para encerrar as desavenças, vale o que está escrito. As punições também estão descritas, e podem chegar à expulsão da comunidade.

“A cartilha foi feita para proteger a floresta. Tem 90 páginas ilustradas, com 19 artigos referentes à caça, 15 para pesca, quatro para controle de desmatamentos, 11 para regular a exploração de madeira. Tem também regras para a criação de animais domésticos, como vacas e porcos, para a criação de quelônios e até para a compra e venda de benfeitorias”, conta o engenheiro-agrônomo Cazuza Amaral Borges.

Ele é técnico do grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas Agroflorestais do Acre (Pesacre), organização que trabalha há 15 anos no Acre em parceria com instituições públicas e não governamentais. A cartilha foi escrita e ilustrada pelos ribeirinhos com a orientação do Pesacre e contribuição da Universidade Federal do Acre (Ufac) e da Universidade da Flórida. O trabalho teve apoio financeiro do governo do Acre e de instituições internacionais.

Vizinhos do parque

O PDS São Salvador fica em uma floresta no Alto Juruá, região mais ocidental do mapa do Brasil, na fronteira com o Peru. Para se chegar lá, é necessário viajar cinco horas de canoa a motor, partindo do município de Mâncio Lima pelo rio Japiim. São cerca de 800 habitantes espalhados nas margens dos rios Moa e Azul, em núcleos de cinco a 15 casinhas de madeira. O assentamento tem 27.830 hectares e fica no entorno do Parque Nacional da Serra do Divisor. A população vive isolada, sem energia elétrica e sem telefone.

As terras do PDS pertencem à União e os moradores têm concessão de uso. Assim, eles não podem repassar o terreno para terceiros. Foram demarcados 150 lotes em 3 mil hectares e em locais próximos aos rios, que são como estradas para os moradores da Amazônia, onde os principais meios de transporte são barcos e canoas. Para definir os melhores locais de moradia, criação de gado e exploração de recursos naturais, foi feito um plano de Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE) baseado em estudos da Embrapa e do Pesacre. O plano prevê até áreas para abrigar futuras gerações.

Os moradores de São Salvador são famílias de seringueiros que começaram a chegar no final do século 19 no Alto Juruá, onde a borracha foi explorada até o início da década de 80. Com o fim da importância econômica do látex, a caça comercial e a venda de peles de animais silvestres se fortaleceram como alternativa econômica. Por isso a ameaça de extinção da fauna, que é alvo também da caça de subsistência. Inclusive dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor, criado em 1989 e ainda ocupado por antigos moradores. As famílias consomem veados, pacas e porquinhos do mato. Também gostam muito da carne de quelônios.

Caça de subsistência

A caça é proibida no Brasil desde 1967, quando foi sancionada a Lei de Proteção à Fauna. Em 1988, a Lei 7.653 alterou o artigo 27 da Lei 5197, elevando a caça de contravenção penal a crime. Entretanto, há exceções em que é permitida. Entre elas quando faz parte da dieta para a sobrevivência, como é o caso de moradores de florestas. Mesmo assim, se as comunidades abusarem desse direito, a natureza dá o troco.

“Dava mais caça e mais madeira. Não precisava andar tanto para arranjar comida”, reclama o seringueiro Paulo Xavier, 64 anos, morador de Boa Vista, um dos núcleos do assentamento São Salvador. Em um levantamento na época da criação do PDS, cinco animais já estavam considerados extintos: o macaco barrigudo e aranha, peixe boi, ariranha e o mutum. Todos faziam parte de listas nacionais e internacionais de espécies em risco de desaparecimento. Com exceção da ariranha, as outras quatro são muito apreciadas para alimentação pelos moradores da região.

Mas seu Paulo não aceita qualquer caça. “Não como carne de macaco. Porque, se não morre no primeiro golpe, ele se protege com as mãos, parece gente”, descreve. O seringueiro acorda todos os dias antes do amanhecer e gosta de contar boas histórias do tempo antigo. “Recebo o sol”, costuma dizer. “A seringueira (árvore) dava o melhor leite de madrugada, acostumei a levantar muito cedo”. Ele vendeu pele de animais e madeira no tempo em que o comércio de borracha acabou no Alto Juruá. “Agora tá tudo mais conservado, o Ibama não deixa mais pegar onça, bicho brabo”, relata.

Paulo Xavier é um patriarca de Boa Vista. As pessoas se reúnem na casa dele à noitinha para conversar ou pedir a benção. Os ribeirinhos costumam compartilhar coisas, principalmente comida. “Muitas vezes vi chegar à casa de seu Paulo a carne que Gil ou Loro haviam caçado”, conta Ana Mendes, de 21 anos, referindo-se aos genros dele.

A jovem é estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e se hospedou durante 12 dias na casa do seringueiro, no final de fevereiro, para um levantamento do Pesacre sobre as perspectivas que a população tem para o futuro. “As filhas do seu Paulo tem uma vontade muito grande de investir na criação de gado. Hoje o pasto é coletivo, dividido entre Dona Nenê, que é mulher de seu Paulo, e três genros. Eles tem umas 30 reses. Bel é a única filha deles que não tem gado, mas tem vontade de ter”, conta Mendes.

Poupança de quatro pernas

Segundo Borges, a pecuária aumenta o desmatamento, mas é importante para a sobrevivência. “O gado é uma verdadeira caderneta de poupança para eles, porque vai aumentando por si só, com as crias que vão gerando. Os produtores se desfazem das reses para um tratamento de saúde ou para pequenos investimentos, como comprar um motor ou até uma casa na cidade”, conta. Para restringir a derrubada de floresta, a regra é que a pecuária fique restrita à área dos 150 lotes demarcados, que somam no total 20% do território do assentamento. Atualmente, 10% estão desmatados.

Porém, para garantir a manutenção da floresta em pé, são necessárias alternativas econômicas. Uma delas é a produção de essências de buriti, copaíba e patoá para serem comercializadas como remédio e cosmético. O projeto é desenvolvido pelo Pesacre. A ong é especializada em pesquisa e extensão rural, com funções semelhantes à Embrapa, porém com foco ecológico. Com base no ZEE, foram eleitas as áreas de produção na mata.

“Estamos fechando nosso plano de manejo para cada uma das espécies, que inclui estudos sobre a capacidade de colheita e reprodução de cada uma. Este ano vamos fazer uma venda experimental. Há vários compradores interessados. No Vale do Juruá há dois interessados, um deles é fabricante industrial de sabonete à base de gordura vegetal e outro é um fabricante artesanal. Em Rio Branco, uma cooperativa está interessada nesses óleos, e em Manaus também estamos negociando com um fabricante de sabonetes”, revela Cazuza.

As experiências econômicas com as essências nativas ainda estão na primeira fase porque, embora o assentamento tenha sido criado em 2001, apenas em 2004 os lotes foram demarcados. “Sem a segurança da terra definida, as pessoas não fazem investimentos no processo produtivo. Ficam inseguras, não havia como começar nada antes de acertar a definição fundiária”, afirma o engenheiro-agrônomo.

Os moradores de São Salvador vivem da caça, pesca, frutos e compram insumos especialmente em Mâncio Lima, onde também vendem a farinha de mandioca produzida em casa – uma farinha branca, grossa, crocante, comum na região e considerada a melhor de toda a Amazônia.

Mas o comércio não é a única perspectiva dos moradores do assentamento. Eles querem estudar. O tema educação sempre aparece quando se fala em futuro. Os sete filhos de seu Paulo tiveram que sair de Boa Vista para estudar. Alguns nunca voltaram a morar na comunidade. As crianças ficam na casa de parentes ou de conhecidos nas cidades.

No ano passado, entretanto, foi aberta uma escola de ensino médio em São Salvador. E desde 2005, os acreanos ganharam a Universidade da Floresta, em Cruzeiro do Sul. Uma extensão da Ufac voltada para pesquisa sobre a diversidade da fauna e flora da região. A cidade onde está instalado o campus fica a uma hora de ônibus de Mâncio Lima, tem 60 mil habitantes e é a maior do Vale do Juruá. A universidade tem vínculos com os parques, reservas extrativistas, terras indígenas e apóia atividades do ensino médio.

O projeto São Salvador é um contraponto a uma pesquisa do Imazon, ainda em fase de conclusão, que mostrou que assentamentos do Incra criados até 2002 foram responsáveis pelo desmatamento de uma área de floresta amazônica maior do que a do estado de Pernambuco. O equivalente a 15,2% de tudo que já foi derrubado até hoje na Amazônia. O Eco publicou uma reportagem sobre o estudo e ouviu especialistas no Acre, que afirmaram que os assentamentos do Incra no estado não respeitavam as áreas de reserva legal de 20% e representavam o maior número de queimadas detectadas pelos satélites.

*Cristina Ávila é jornalista freelancer e mora em Porto Alegre.

Leia também

Podcast
20 de novembro de 2024

Entrando no Clima#39 – Lobistas da carne marcam presença na COP29

Diplomatas brasileiros se empenham em destravar as negociações e a presença de lobistas da indústria da carne nos últimos dias da COP 29.

Reportagens
20 de novembro de 2024

Pelo 2º ano, Brasil é o país com maior número de lobistas da carne na COP

Dados obtidos por ((o))eco sobre levantamento da DesMog mostram que 17,5% dos lobistas do agro presentes na COP29 são brasileiros

Notícias
19 de novembro de 2024

G20: ato cobra defesa da Amazônia na pauta do encontro dos chefes de Estado

A Amazônia está de olho" reuniu mais de 100 ativistas neste domingo (17), no Rio de Janeiro, para pressionar líderes presentes no G20 a tomar ações concretas para conservação da maior floresta tropical do mundo

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.