Os primeiros meses da cobrança pelo uso da água na bacia federal do rio Paraíba do Sul foram marcados pela desconfiança generalizada de que uma boa idéia tinha sido seqüestrada pelo Tesouro. Motivos não faltavam para justificar o ceticismo. Desde o início da cobrança, em março de 2003, boa parte dos recursos recolhidos acabou retida pelo próprio. Para salvar a credibilidade da cobrança, a ANA (Agência Nacional de Águas) teve que repassar dinheiro de seu orçamento ao Ceivap (Comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul) para cobrir o buraco.
Três anos depois, boa parte das razões para o pessimismo foi dissipada. Com a edição da lei 10.881, de junho de 2004, o Tesouro não pode mais contingenciar os recursos da cobrança, que são depositados em uma conta da ANA e em cerca de dez dias são transferidos para as contas das duas agências de bacias federais hoje em funcionamento, a Agevap (Agência da Bacia do Paraíba do Sul) e Agência de Água PCJ (bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí).
O plano de investimentos no Paraíba do Sul está sendo cumprido e algumas dezenas de projetos já foram concluídos ou estão em andamento, como estações de tratamento e coletores de esgoto, combate à erosão e monitoramento de efluentes industriais. Um total de R$ 31,5 milhões foram investidos entre 2003 e 2005 em projetos aprovados pelo Ceivap. Do montante, R$ 12,5 milhões vieram da cobrança pelo uso da água e o restante foi alocado como contrapartida de prefeituras e outras fontes oficiais e privadas. Para 2006, o Ceivap prevê arrecadar aproximadamente R$ 12 milhões com a cobrança, embora a inadimplência, superior a 10%, deva corroer parte da estimativa.
No comitê PCJ, que iniciou a cobrança em janeiro deste ano, as primeiras indicações são de que o modelo está funcionando com sucesso. A arrecadação alcançou perto de R$ 2,5 milhões de janeiro a março, com uma inadimplência de apenas 3%, dentro das previsões do comitê, diz Luiz Roberto Moretti, secretário-executivo do PCJ, cujas bacias localizam-se em uma das regiões econômicas mais importantes do país, abarcando áreas dos estados de São Paulo e Minas Gerais. O PCJ conta com um respaldo de peso, o Consórcio PCJ – criado em 1989 por prefeituras e empresas das três bacias -, que assumiu temporariamente as funções de agência da bacia, instrumento necessário para o repasse dos recursos a prefeituras, empresas de saneamento e Ongs.
Até o ano passado, o PCJ contava somente com os recursos do Fehidro (Fundo Estadual de Recursos Hídricos), do Estado de São Paulo, algo perto de R$ 5 milhões por ano, para investir em projetos de saneamento ambiental e melhoria da qualidade da água. Como o PCJ estima uma arrecadação de R$ 10 milhões em 2006 com a cobrança, o montante disponível para investimentos deverá triplicar para perto de R$ 15 milhões este ano, cifra que inclui o aporte do Fehidro.
A expectativa com a cobrança levou prefeituras, consórcios municipais e empresas de saneamento a apresentarem 100 projetos de investimento ao PCJ. Não apenas o número de propostas é recorde, como também representa o dobro apresentado no ano passado. No entanto, como não há dinheiro para atender a todos os pedidos, apenas 37 deverão ser contemplados.
“Não se vai resolver o problema da degradação dos recursos hídricos apenas com a cobrança da água. Mas ela funciona como um fator disciplinador do uso e alavanca investimentos”, diz Moretti.
Prioridade para o esgoto
Na bacia do rio Paraíba do Sul, que abrange áreas dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a recuperação ambiental da bacia terá prioridade este ano. O Ceivap decidiu aumentar de 50% para 62% a fatia da cobrança da água reservada a obras de tratamento de esgoto.
Em Jacareí, município paulista do Vale do Paraíba, foram concluídas em abril do ano passado as primeiras obras de saneamento em uma bacia federal financiadas com verba proveniente da cobrança. Antes, o percentual de esgoto tratado da cidade era de 2% do total despejado no rio Paraíba do Sul. Com o investimento de R$ 2,55 milhões na estação de tratamento de esgoto do distrito de São Silvestre, a parcela no final de 2005 tinha aumentado para 20% e deve chegar a 25% em dezembro deste ano, segundo Renan Caratti, presidente do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Jacareí) .
Do valor investido, R$ 1,3 milhão vieram da arrecadação da cobrança pelo Ceivap e o restante foi bancado pela VCP (Votorantim Celulose e Papel), que procurava na época como cumprir sua obrigação de investir em um projeto ambiental, condicionante para a concessão de licença para a ampliação de sua unidade industrial de Jacareí. “Juntamos a fome com a vontade de comer”, contra Caratti. No plano de investimentos do Ceivap para 2006, Jacareí foi contemplada com quatro projetos, valendo um total de R$ 1,608 milhão, 76% da cifra vindo da cobrança da água.
Jacareí é apenas um dos casos de sucesso na aplicação do dinheiro arrecadado na cobrança da água. Muriaé, município mineiro da Zona da Mata, conseguiu sair do zero para 30% do esgoto tratado nos dois últimos anos. Indústrias como a Kaiser e a CSN também reduziram bastante a captação no Paraíba do Sul, investindo pesadamente na recirculação interna da água consumida por suas fábricas, e de melhoria no tratamento dos efluentes lançados na bacia.
Controle de perdas no Piracicaba
Dos 37 empreendimentos aprovados pelo PCJ para investimentos com os recursos da cobrança este ano, oito são de projetos de controle de perdas de água. Francisco José de Toledo Piza, assessor da Diretoria de Sistemas Regionais da Sabesp, conta que as perdas diárias no Brasil passam dos 350 litros por habitante, tomando como base o encanamento entre a residência e a rede. O máximo de perdas aceitáveis seria de 200 litros.
Um dos projetos da Sabesp aprovados pelo PCJ custará R$ 3 milhões (60% desse valor será pago com dinheiro arrecadado pela cobrança) e visa instalar macromedidores de perda de água em cinco cidades, incluindo Piracicaba, um dos principais centros econômicos do interior paulista. “Esse é uma etapa inicial que tem como objetivo reduzir as perdas de água em 40% naquela região nos próximos dez anos”, assinala Piza.
Com atuação em 23 municípios da bacia do PCJ, a Sabesp recebeu sinal verde do comitê para investir também na ampliação e atualização tecnológica dos sistemas de esgoto de Nazaré Paulista e Cabreúva. As obras de Nazaré Paulista vão beneficiar uma população de 12,8 mil habitantes e contribuir para os esforços de despoluição das águas do Sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo.
Desafios
No entanto, muitos desafios ainda restam para consolidar o modelo de gestão por bacias hidrográficas. Um deles é evitar a judicialização da cobrança por usuários, risco que ocorreu quando a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), de Volta Redonda (RJ), impetrou duas ações contra a ANA em outubro de 2003, alegando incertezas quanto à devolução do dinheiro à bacia e a falta de pagamento por alguns setores, como o de mineração. Desde então, a empresa paga seus boletos em juízo. De acordo com estimativas preliminares da ANA e do Ceivap, os cofres da Ageivap deixaram de receber ao menos R$ 5 milhões da CSN na conta feita até dezembro passado.
A 23a Vara Federal do Rio de Janeiro extinguiu em fevereiro passado as duas ações da CSN, que impetrou um embargo declaratório à sentença e aguarda a publicação da decisão da Justiça para decidir se vai recorrer dela ao Tribunal Regional Federal. A CSN seria o maior contribuinte individual da cobrança na bacia do Paraíba. Este ano, por exemplo, se a companhia pagasse todas as suas parcelas mensais, injetaria cerca de R$ 2,8 milhões na bacia, que representariam um quinto da previsão de arrecadação (que inclui a CSN).
Outro nó complicado de resolver é o das PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas). A Cemig move desde maio de 2004 uma ação contra a ANA questionando o pagamento da cobrança por suas três PCHs localizadas na bacia do Paraíba do Sul. Em setembro de 2005, o juiz da 19a Vara Federal de Belo Horizonte julgou improcedente a ação da companhia mineira, que recorreu ao TRF (Tribunal Regional Federal) da 1a Região, com sede em Brasília (DF).
O pagamento também vem sendo efetuado em juízo e no final do ano passado o depósito somava R$ 50 mil. Embora o valor não seja tão significativo, uma decisão final favorável à Cemig abriria jurisprudência para outras centrais elétricas contestarem a cobrança.
O problema é que a lei 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou a ANA, modificou leis anteriores aumentando de 6% para 6,75% o percentual da receita das hidrelétricas destinado à compensação financeira por inundações causadas por suas barragens. Dos 6,75%, a parcela de 0,75% retornaria para as bacias a título de cobrança pelo uso da água por qualquer usina hidrelétrica. A Cemig alega que as PCHs não podem ser obrigadas a pagar pela cobrança, porque são isentas do pagamento da compensação financeira.
Para Maria Aparecida, do Ceivap, há duas soluções possíveis para o caso das PCHs. Uma delas seria adicionar um parágrafo na lei 9.984 explicitando a necessidade de as PCHs pagarem pelo uso da água, conforme negociado em um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional. Outra alternativa, seria a modificação pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de um parecer em que se posiciona contra a definição da cobrança das PCHs pelos comitês de bacia.
Ampliação
É também uma meta dos comitês ampliar a base de arrecadação incluindo na cobrança novos usuários hoje fora do sistema. O exemplo mais eloqüente do problema é a operação de transposição das águas do Paraíba do Sul para a bacia do rio Guandu, responsável por 80% do abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
De acordo com a Deliberação 52 do Ceivap, 15% do total arrecadado na cobrança estadual dos usuários da bacia do Guandu devem ser repassados ao comitê pelo uso das águas do Paraíba do Sul. E a deliberação precisa ser ratificada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Dois terços da vazão do Paraíba do Sul na região de Barra do Piraí (119 metros cúbicos por segundo, em média) são transpostos para o Guandu.
Outra possível fonte adicional de recursos é a mineração. Atualmente, o Ceivap aplica a cobrança apenas nas empresas que retiram areia do leito dos rios. A idéia, porém, é incluir outros minerais na revisão dos critérios de cobrança em andamento no comitê. A proposta de revisão deve ser apresentada até agosto de 2006, diz sua secretária executiva.
Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas, da Fundação SOS Mata Atlântica, defende um “banho de mercado” no funcionamento das agências de bacia. “Aplica-se para uma entidade mista, formada por setor privado, governo e sociedade civil, as mesmas regras de repasse de recursos do setor público”, critic Malu, ressaltando que isso engessa a atuação dos comitês.
A cada dois anos, lembra ela, os repasses de dinheiro para os projetos aprovados pelos comitês se deparam com a legislação eleitoral, que os proíbe durante os três meses anteriores às eleições. O coordenador de gestão da Agevap, Hendrik Mansur, diz que a agência estuda alternativas para contornar legalmente o obstáculo eleitoral. No PCJ, parte dos convênios com prefeituras e empresas só poderá ser assinada após as eleições de outubro.
*José Alberto Gonçalves é jornalista freelancer em São Paulo.
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