Há dez anos, em meados da década de 1990, os lagos na região do rio Surumu, na Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, eram a área de pesca preferida de uma dezena de comunidades indígenas. A partir de setembro, quando se encerra a estação chuvosa nas savanas do Estado, famílias inteiras começavam a chegar para passar dias acampadas nas margens dos lagos, se alimentando de tucunarés, aracus, matrinchãs, surubins, pescadas e, mais raramente, de pirarucus. “A gente comia ali mesmo no acampamento e ainda assava para levar para a comunidade”, lembra o macuxi Walter Level, que costumava pescar na região.
Em uma década, a paisagem nos lagos mudou completamente. Vieram as máquinas agrícolas para trabalhar nas plantações de arroz. Vieram os agrotóxicos. Muitos lagos foram drenados e aterrados. Peixes se tornaram mais raros. “Ainda existem alguns lagos, mas a maioria foi soterrada e já não dá peixe como antes”, lamenta Level.
Pescar ficou mais difícil na Raposa Serra do Sol, terra indígena com 1,67 milhão de hectares, homologada em abril de 2005 pelo presidente da República e onde vivem cerca de 15 mil pessoas. Para pescar, os índios precisam ir até a vizinha Reserva São Marcos. Se antes a caminhada entre a Serra do Sol, extremo Norte do estado, e o Surumu demorava até cinco dias. Agora, a pesca está a sete dias de distância.
A história contada pelo índio confirma dados obtidos de satélites e analisados por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em um estudo sobre o avanço das lavouras de arroz na região e os impactos provocados. O levantamento foi realizado por três pesquisadores do Inpa e pelo professor indígena macuxi, Gercimar Morais Malheiro, ligado ao Conselho Indígena de Roraima. Foram utilizados depoimentos de índios, estudos em campo e imagens dos satélites Landsat 5 e Landsat 7, entre 1992 e 2005.
Desocupação tardia
O decreto de homologação estabeleceu um prazo de um ano para a retirada de todos os invasores da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Um dos objetivos da pesquisa realizada pelo Inpa foi evidenciar que o processo de ocupação da região aconteceu principalmente depois da demarcação dos limites da reserva em 1998 e, portanto, não cabe indenização a muitos fazendeiros ali instalados. Segundo o estudo, pelo menos a metade das áreas de lavouras foi ocupada nos últimos sete anos e o processo foi intensificado depois que quase 2 milhões de hectares foram demarcados como terra indígena única e contínua pela portaria n. 820/98, assinada pelo então ministro da Justiça Renan Calheiros. Na época, a decisão gerou protestos, principalmente por parte dos rizicultores. Mas o máximo que eles conseguiram foi uma redefinição parcial dos limites das terras pela portaria 534/2005.
Mas o trabalho do Inpa apontou um outro problema: os danos ambientais provocados pelas lavouras de arroz. Segundo Vicenzo Lauriola, pesquisador adjunto em etno-ecologia do Inpa em Roraima, os piores impactos ambientais foram desmatamento e degradação dos recursos hídricos, mas há muito mais: “A vegetação nativa vem sendo substituída por uma monocultura, com uma grande perda local de biodiversidade”, conta o pesquisador. A fazenda Depósito, por exemplo, teve sua área de plantio aumentada de 684 hectares em 1992 para 3.691 hectares em 2005. O estudo cita também o descumprimento das leis ambientais, como ausência de licenças e desrespeito às áreas de preservação permanente e limites legais de desmatamento.
Conforme demonstram as imagens de satélite, em 1992, antes da demarcação da terra indígena, já existiam fazendas de arroz na região. Mas de lá pra cá, a área plantada avançou muito. Em 13 anos, aumentou em sete vezes. Passou de 2.111,83 hectares em 1992, para 14.444,04 hectares em 2005. De acordo com o estudo, existem pelo menos dez fazendas concentradas em oito áreas dentro da Raposa Serra do Sol. Existem evidências de outras lavouras, mas dificuldades de acesso e o clima de conflito na região entre moradores contra e a favor da consolidação da reserva impediram a confirmação da informação.
Áreas onde antes eram vistos os galhos retorcidos de mirixizeiros e caimbezeiros, extensos buritizais, árvores típicas da savana roraimense, viraram um monótono arrozal. Em Roraima, o arroz é plantado principalmente nas áreas de várzea dos rios Surumu, Maú, Itacutu e Cotingo, os principais rios que banham a terra indígena Raposa Serra do Sol. A área é propícia para a produção de arroz devido à facilidade de irrigação, proporcionada pelo aumento do nível dos rios durante a época de chuvas, e o calor da região. Num regime de rotação entre as áreas plantadas, são obtidas duas lavouras por ano, o que contribui para a grande produtividade das riziculturas roraimenses.
A preparação da área para receber o plantio significa derrubar a vegetação nativa, aplainar o terreno, retirar barrancos, aterrar lagos, represar igarapés e abrir canais de irrigação. A transformação da paisagem chega até a margem dos principais rios, levando com ela a mata ciliar. Essa metodologia mudou a estrutura dos recursos hídricos da região e provocou o desaparecimento de lagos e igarapés, além de reduzir em dimensão e volume outros corpos d´água.
Contaminação
O estudo do Inpa também alerta que existe um passivo ambiental grave na região: contaminação por agrotóxico. Nos últimos 10 anos, comunidades indígenas denunciaram mortandades de aves, peixes e gado provocadas pelo despejo de agrotóxico por aviões sobre as lavouras. Moradores de aldeias vizinhas teriam apresentado sinais de intoxicação. Ainda assim, não existe nenhuma pesquisa específica que comprove esses casos.
* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.
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