Reportagens

Zona proibida

Incra quer transformar área de preservação da Serra do Japi (SP) em assentamento para MST. Ministério Público exige explicações sobre impactos ambientais.

Aline Ribeiro ·
7 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Uma das atuais manobras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está tirando o sono de ambientalistas e representantes de órgãos públicos do município de Cajamar, a 40 quilômetros da capital paulista. O impasse se deve à intenção do Incra de adquirir 121 hectares da Fazenda São Luiz, encravada na Serra do Japi – Área de Proteção Ambiental (APA) e região tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e Artístico (Condephat) e pela Unesco. O instituto está aguardando o repasse de recursos da União, pouco mais R$ 1,7 milhão, para continuar as negociações. Caso sejam compradas, as terras deverão abrigar famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) . Mas o que ninguém sabe com certeza é quantas pessoas o Incra está disposto a assentar lá.

Em texto divulgado à imprensa, desprovido de explicações técnicas, o Incra afirma que a área tem capacidade para 40 famílias. Em oposição, um laudo do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) de junho de 2004 mostra que as terras da fazenda são “impróprias” para assentamento, pois os solos estão entre “os mais ácidos e frágeis de todo o país”. Num segundo parecer, de setembro do mesmo ano, o próprio Itesp se contradiz, manifestando a possibilidade do assentamento de apenas 20 famílias no local. Destaca ainda que o valor da área ainda precisa ser avaliado e que o preço de mercado da fazenda gira em torno de R$ 2,1 milhões.

Além de prejudicar o meio ambiente, a instalação das famílias na área não é a melhor solução em termos econômicos, conforme defende Suzana Traldi, presidente do Conselho de Gestão da Serra do Japi. Ela comprova a idéia com cálculos matemáticos. “Se você dividir R$ 1,7 milhão (valor que o Incra pretende pagar pela fazenda) por 20 (número de famílias assentadas permitidas pelo Itesp), o resultado é R$ 85 mil para cada família. Considerando que a fazenda ainda não tem água, esgoto, energia e estradas adequadas, gastaríamos mais cerca de R$ 25 mil por lote com infra-estrutura. Uma casa geminada em bairro bom na cidade de Jundiaí, de acordo com a Fundação Municipal de Ação Social (Fumas), custa R$ 40 mil. Ou seja, R$ 70 mil a menos do que será gasto para construir na serra. Com o resto do dinheiro, o Incra ainda poderia dar mil reais por mês para cada família durante quase seis anos.”

Contradição

Para rebater a idéia de que o assentamento causará impactos à natureza, o Incra utiliza argumentos baseados no chamado Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). O modelo, explica o órgão em nota, possibilita a preservação e o revigoramento do meio ambiente, além de garantir o sustento das famílias por meio do manejo ecológico e sustentado da área. O instituto ainda diz que “as famílias farão plantações somente em áreas já desmatadas, por meio de sistemas agroflorestais, que valorizam e enriquecem a flora local”.

Na teoria, a idéia é mesmo ótima. Mas não é exatamente o que se vê hoje por ali. Enquanto aguardam para assinar os documentos que regularizariam suas situações, cerca de 50 famílias estão acampadas de forma ilegal nas terras da fazenda. Em vez de garantirem a subsistência por meio da agricultura – princípio pregado pelo próprio MST – recebem cestas básicas mensalmente. Para não dizer que não há nenhuma plantação no local, existem por lá pequenas roças de milho, mandioca e girassol. “Acabamos de começar esta horta”, conta uma moradora que está na área há quase um ano e meio.

Sem quaisquer orientações, os integrantes do MST vivem em verdadeiras favelas rurais. As condições são subumanas, visto que não há sistema de esgoto nem água encanada. O banheiro de uma das “casas” se resume a um cercado de lona, com um tapete servindo de porta. Não tem nem cova no chão que faça, às vezes, de vaso sanitário. “Fazemos direto na terra mesmo”, revela uma das moradoras. E quando vão defecar? “Aí cavamos um buraco e jogamos desinfetante depois.” Azar do meio ambiente. “Esses produtos causam danos parecidos aos dos inseticidas. Quando chove, vai parar tudo nos rios”, lamenta Eduardo Pontes, monitor ambiental da Serra do Japi.

Pouco mais à frente, a única construção de alvenaria da área ocupada pelos sem-terra é utilizada como sede do movimento. Um homem que se diz integrante do MST guarda a casa e, com um facão no bolso, intimida os eventuais visitantes. “Não sei dar essas informações que você quer. Estou aqui só para isso que está vendo”, diz, como se sua função fosse instaurar um voto de silêncio.

Vale protestar

A proposta do Incra desagrada a muitos. A Promotoria de Justiça de Cajamar entrou recentemente com inquérito civil, ainda em andamento, solicitando ao instituto explicações sobre a viabilidade do assentamento naquela área. Até o final deste mês, o Incra tem de enviar uma resposta convincente. Caso fique comprovado que o assentamento causa impactos ao meio ambiente, a promotoria pretende entrar na Justiça. A subsecção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também comprou a briga. Já o Ministério Público Federal de Campinas questiona o instituto por meio de processo administrativo, ainda não finalizado.

As entidades jurídicas não estão sozinhas. Ao lado delas, as prefeituras e câmaras de vereadores de Cajamar e Jundiaí se manifestam contra o assentamento. A sociedade civil não fica atrás. Mais de 25 mil moradores da região se posicionaram contra o instituto e assinaram o Manifesto em Defesa da Preservação da Serra do Japi. O Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema) de Jundiaí também está envolvido. “Não somos contra o MST, mas queremos preservar essa área que é um ícone da nossa cidade”, diz o engenheiro agrônomo Silvio Drezza, presidente do Comdema.

E não é pra menos. Basta percorrer pequeno trecho da serra para entender a importância da área para a conservação da biodiversidade. “A Serra do Japi é a única do mundo com solo quartzítico que tem uma floresta tropical em cima. Este foi um dos principais motivos para o tombamento”, ressalta o monitor ambiental Eduardo Pontes. Apesar da escassez de levantamentos sobre a região (apenas 5% da serra foi estudada), estima-se que lá existam cerca de 200 espécies de aves, 900 de borboletas e grande diversidade de mamíferos, incluindo a onça-parda (Puma concolor). “Por ser um bicho do topo da cadeia alimentar, sua ocorrência mostra que o local ainda é bastante preservado, já que abaixo dele tem uma infinidade de animais.”

Com cerca de 350 km² de extensão, a Serra do Japi tem vegetação de transição entre a Mata Atlântica do litoral e o Cerrado do interior do estado. “A área, apesar de ser próxima a São Paulo, tem vida silvestre bastante rica. Meu principal medo é que essas pessoas, devido à situação financeira precária, comecem a caçar no local”, comenta Pontes, lembrando que moradores de loteamentos da região também causam impactos ao meio ambiente. A Ong Mata Ciliar, uma das principais organizações ambientalistas que cuidam da serra, compartilha do receio do monitor. E diz mais. “Um dos grandes problemas do assentamento são o contato dos animais domésticos com os silvestres, que pode ocasionar doenças à fauna da região. Os assentados não têm muitas informações técnicas sobre como lidar com essa situação”, argumenta Ricardo Lopez, coordenador de Fauna da Mata Ciliar.

O Eco procurou exaustivamente a superintendência do Incra em São Paulo, para que o instituto pudesse se posicionar sobre o assunto. Num primeiro momento, a assessoria de imprensa informou que o superintendente Raimundo Pires Silva estava viajando. Depois de outras tentativas, a assessoria continuou insistindo que não haveria tempo hábil para que Silva atendesse a reportagem. Questionados sobre a possibilidade de um outro representante do Incra conceder a entrevista, não se manifestaram. Um e-mail foi enviado à sede do instituto em Brasília, mas não houve resposta. O MST também preferiu não falar. Como diz o ditado popular, “quem cala consente”.

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