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Assoreamento de represas é sintoma de que país precisa cuidar melhor da natureza e das usinas que já existem para garantir expansão da matriz energética nos próximos anos.

Andreia Fanzeres ·
1 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

A sanha pela instalação de numerosas hidrelétricas, alimentada por um iminente risco de apagão, tem gerado pressões sobre órgãos ambientais licenciadores, numa corrida contra o tempo. Especialistas do setor elétrico concordam com as metas do governo de aumentar a matriz hidrelétrica em três mil megawatts (MW) por ano, em uma projeção até cautelosa para acompanhar o crescimento econômico com base nos últimos anos. Onde a unanimidade desaparece é justamente sobre o melhor caminho para se alcançar este objetivo. Nessa encruzilhada, o mundo se divide entre os que defendem a construção contínua de usinas hidrelétricas – e dane-se o meio ambiente – e aqueles que acreditam que a falta de energia no Brasil pode ser suprida, pelo menos em parte, por menos usinas e mais investimento na potência hidrelétrica já instalada.

O professor Gilberto Januzzi, que leciona no departamento de Energia e Mecânica da Unicamp, aposta na lição de casa número 1 de quem opera usinas hidrelétricas: fazer manutenção e repotenciação (grandes reformas para troca de equipamentos). Além de ter um custo muito mais baixo se comparado às despesas de construção e aos danos ambientais de novos empreendimentos, a repotenciação pode elevar a capacidade de geração das usinas, como aconteceu na de Jupiá, em São Paulo. Graças a esse tipo de intervenção, a hidrelétrica teve um acréscimo na produção de energia em 16%. “O que importa é aumentar 10% aqui, 20% em outra e fazermos o somatório de uma melhor eficiência energética do que já temos instalado”, explica Januzzi. Pelas suas contas, só com esse esforço é possível recuperar 15 mil MW de energia. Praticamente o que produz uma Itaipu.

Esses números não convencem o pesquisador Marcio Freitas, do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ. Para ele, o esforço de repotenciação não é substancial. “Não há tanto assim para repotenciar porque a tecnologia de hidroeletricidade não sofreu grandes evoluções nos últimos 20 ou 30 anos. As turbinas são de longa duração”, explica Freitas. Julio Meirelles, assistente da direção técnica da Itaipu Binacional diz que a vida útil de uma hidrelétrica bem conservada em termos ambientais e de manutenção de estruturas é praticamente ilimitada. “Estima-se que os equipamentos principais, eletromecânicos, precisem sofrer a cada 30 ou 40 anos intervenções de grande porte. E os equipamentos de controle, como são de tecnologia digital, têm ciclo de vida mais curto, de no máximo 20 anos”.

Aposta de longo prazo

Freitas admite, no entanto, que em alguns casos é possível fazer expansão da capacidade, como na usina de Xingó, na Bahia, ou como aconteceu recentemente em Tucuruí, que conseguiu dobrar sua geração de quatro para oito MW. “A ampliação de Tucuruí, Itaipu e outras usinas já estava prevista no Plano Decenal de Expansão do Setor Elétrico. Além do mais, a repotenciação não pode ser vista como solução porque só se consegue aumentar a capacidade das usinas em 8%”, opina Silvia Calu, da Associação Brasileira de Distribuição de Energia Interior. A solução, portanto, é a diversificação das fontes energéticas na opinião de Januzzi e também de Freitas, da Coppe. “Ainda que a hidrelétrica continue sendo a melhor opção para a economia, a saída é integrar diferentes fontes de energia, ventos no Nordeste, safra do álcool no Sudeste, energia solar”, diz Freitas.

Silvia, que acredita em problemas reais de suprimento de energia se as novas usinas não forem feitas e o país crescer a taxas mais elevadas, critica intenções de redução no consumo, numa base de 30%, como alertava um estudo do WWF recentemente publicado e assinado pelo professor Januzzi. “É irrealista reduzir a demanda, ainda mais porque o nosso consumo já é considerado baixo. São 2 mil KW/h per capita, quando a média mundial é de 2,150 KW/h”, diz Silvia.

Segundo ela, o governo está procurando fazer revisão dos inventários das usinas para ver se há alternativas mais econômicas, mas por enquanto a opção pela hidrelétrica ainda domina, pelo menor custo do KW gerado. Essa também foi uma das conclusões de um estudo de 2004 coordenado por Januzzi para o Centro de Gestão de Estudos Energéticos do Ministério de Ciência e Tecnologia, que aponta uma participação das hidrelétricas na capacidade instalada no Brasil superior a 90% atualmente. De acordo com o plano decenal, feito no ano 2000, até 2009 devem ser instalados mais 21.700 MW de base hidrelétrica para atender às projeções de crescimento do mercado.

Construção mais rentável

Embora seja apenas um dos mecanismos que o país precisa adotar para economizar recursos naturais na geração de energia, a repotenciação precisa de mais incentivos legais e econômicos para se tornar uma prática mais ampla. E Januzzi sabe muito bem porque ela não está no foco das atenções do setor elétrico. “Não se dá importância a esse tipo de atividade porque é mais atrativo financeiramente construir novos empreendimentos”, diz o professor, colocando em xeque essa onda de terrorismo de apagão para justificar a construção de mais usinas. “Aumentar a eficiência custa muito menos, impacta pouco, só que dá mais trabalho e não agrada aos grandes lobbies”, afirma.

De fato, os custos de manutenção são tão baixos que sequer podem ser comparados aos de construção de uma hidrelétrica. De acordo com José Bonifácio Pinto Junior, diretor de contratos da Odebrecht, estima-se, de forma grosseira, que os custos de construção variem hoje de 3,5 a 5 milhões de reais por MW instalado. Esse gasto inclui custos sócio-ambientais, como ações mitigatórias, criação de reservas, além desapropriação de moradores, e outros, que podem significar de 5 a 10% do custo total de construção. A manutenção é calculada a partir do que é gerado por hora. Pelas contas de Bonifácio, gasta-se apenas de 2 a 3 reais por MW hora de energia.

Para o professor Célio Berman, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), a legislação brasileira também não incentiva tais intervenções porque os contratos de funcionamento com o Operador Nacional do Sistema (ONS) não prevêem paradas para as obras, que podem variar de três a seis meses. “O ONS estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de energia. Se a usina deixa de produzir, é penalizada”, diz. Para Berman, há um outro forte desestímulo econômico por trás. “Quando as usinas conseguem produzir uma energia extra são surpreendidas por uma tarifa de venda com valores em torno de 20 reais, quando a compra pela energia assegurada em contrato vale entre 80 ou 100 reais”.

Na opinião de Berman, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável pela regulação, fiscalização, transmissão, distribuição e comercialização da energia, não tem exercido suas atribuições legais no que se refere à fiscalização da eficiência energética. “A Aneel não tem quadro suficiente para exercer todos os seus papéis. Ou seja, não há incentivos para que as usinas sejam eficientes, nem fiscalização, nem penalidades”, sacramenta o professor da USP. A agência foi exaustivamente procurada pela reportagem para esclarecimentos, mas até o fechamento desta reportagem não apresentou respostas.

Além do exemplo concreto de Jupiá, que aumentou significativamente sua eficiência energética, o Brasil tem outros casos escandalosos de desastres hidrelétricos que apenas muito recentemente têm conseguido apresentar melhoras na geração de energia por causa da repotenciação. A usina de Balbina, no Amazonas, está no topo deste ranking. Construída no final da década de 80, hoje só produz metade do previsto no projeto original, mesmo assim depois de uma repotenciação muito bem feita, porque há oito anos gerava menos ainda. “Construíram um lago enorme num rio pequeno, com muito mais maquinário do que a capacidade que a usina consegue turbinar e tiveram problemas sérios com o regime hidrológico”, conta o professor Januzzi, da Unicamp.

Reservatórios assoreados

No caso de Balbina, a instalação da usina foi o que causou prejuízos ecológicos e econômicos. Mas ultimamente problemas ambientais não necessariamente provocados pelas usinas têm gerado enorme preocupação entre seus administradores, como desmatamentos nas margens e áreas próximas ao leito, além da poluição das águas por lançamentos de efluentes domésticos e industriais. Eles temem principalmente o assoreamento dos reservatórios, o que causa modificações na fauna local, surgimento de algas e mudança no PH da água – fatores capazes de comprometer a capacidade de geração elétrica do empreendimento. Berman diz que ainda não existem no Brasil estudos que avaliem a perda energética por problemas ambientais das bacias hidrográficas, embora este seja um problema cada vez mais evidente no país. “A bacia do Paraná é notadamente frágil em relação ao assoreamento, e as usinas previstas para o rio Araguaia também devem sofrer bastante com o processo de deposição de sedimentos causado pelos desmatamentos nas margens”, alerta o professor da USP.

“Se for fazer usina em local impactado, ele tem que ser tratado. É uma questão econômica, senão em 20 anos a usina não funciona mais”, opina Meirelles. Em Itaipu, desde 2003 essa preocupação tornou-se uma prioridade. Implementaram o Programa Cultivando Água Boa, considerado exemplar, que segundo Meirelles já tem melhorado a qualidade da água jogada nas turbinas e diminuído a velocidade de sedimentação do reservatório. O programa tem objetivos sócio-ambientais muito claros, o que estimula a participação de prefeituras, ONGs e outras empresas no esforço de recuperar a bacia do Paraná. Mas a sacada foi perceber que o investimento de cuidar do meio ambiente se reverte numa melhor eficiência da própria usina. “A água tem que ser boa para a geração de energia e para o consumo humano”, diz Nelton Friedrich, diretor de coordenação e meio ambiente de Itaipu. Segundo dados da empresa, Itaipu preserva quase 109 mil hectares e já plantou mais de 23 milhões de mudas de árvores nativas no entorno do lago.

Itaipu gasta quatro dos 12 milhões de reais necessários a cada ano para dar continuidade ao Programa Cultivando Água Boa. Os demais parceiros se encarregam do restante da fatia. O gasto é mínimo, tendo em vistas quanto se consome em apenas manutenção de toda estrutura da usina: 60 milhões de dólares ao ano, nas contas de Meirelles.

Os custos totais do Cultivando Água Boa são coincidentemente os mesmos do projeto Oásis, da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, que pretende investir no pagamento de serviços ambientais para melhorar a qualidade do reservatório de Guarapiranga, na região metropolitana de São Paulo. O lago abastece 3,8 milhões de pessoas, e não estava incluído em alguns programas ambientais da secretaria de meio ambiente do estado. A questão não é energética, mas para aumentar a eficiência do reservatório no suprimento de água para população, a fundação pretende remunerar proprietários do entorno da represa, numa área de cerca de 90 mil hectares. A idéia é que eles simplesmente mantenham conservadas as matas em suas terras e evitem, assim, loteamentos ilegais, urbanização, desmatamentos e assoreamento. “É um mercado privado e voluntário. A intenção da fundação é mobilizar e conscientizar órgãos públicos, comitês de bacia e empresas locais para que se envolvam na iniciativa”, explica Malu Nunes, diretora-executiva da fundação.

Ninguém questiona que cuidar da saúde das bacias hidrográficas é uma garantia de fornecimento de água e energia. Aliás, é o que faz do recurso água renovável, e tão aclamado no mercado como fonte nacional e não poluente para a geração energética. Freitas, da Coppe, concorda que acréscimos populacionais nas bacias hidrográficas geram maiores pressões de assoreamento, o que demanda uma revisão do potencial das usinas hidrelétricas. Mas apresenta uma visão bastante realista da situação, já que o problema não pode ser resolvido no curto prazo. “Não dá para alterar esse modelo predatório do uso do solo. O processo de revitalização de uma bacia é caríssimo e hoje no Brasil isso não é prioridade. Se a gestão de recursos hídricos fosse integrada à gestão hidráulica, os resultados na geração de energia seriam melhores”, admite o especialista.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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