Reportagens

No mato, sem cachorro

Expostos a riscos, servidores do Ibama dependem de coragem e de dinheiro do próprio bolso para preservar a saúde e a vida em situações cotidianas de trabalho.

Andreia Fanzeres ·
28 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

Coragem, diplomacia, dinheiro e alguma dose de confiança na marca “governo federal” bem que poderiam ser exigências de candidatos a analistas ambientais do Ibama. Os servidores que estão no interior, em áreas longínquas e desprestigiadas, sabem disso – ou souberam tarde demais, quando já tinham sido transferidos para elas. Hoje, precisam literalmente se munir desses atributos para desempenhar suas mais elementares obrigações legais de proteção à natureza. A dúvida é saber até quando vão agüentar, sozinhos, as conseqüências da desmoralização da instituição que representam.

A emboscada contra uma equipe do Ibama durante uma atividade de pesquisa com tartarugas em Roraima, em 14 de novembro, serviu para chamar atenção quanto às precárias condições de trabalho e segurança dos servidores do órgão, seja dentro ou fora das unidades, em fiscalização ou não. E demonstrou que meio ambiente tem sido cada vez mais caso de polícia. Salvo raríssimas exceções, com uma forte dose de amadorismo.

O biólogo marinho Carlos Magno Abreu, que trabalha hoje no Rio de Janeiro, conta que quando serviu na Amazônia, ao se deslocar para longe a fim de atender a denúncias, uma das poucas medidas de segurança que podia adotar era ir acompanhado de um outro analista ambiental. Mesmo assim, ambos desarmados. Certa vez, no norte de Mato Grosso para uma operação de combate a desmatamentos ilegais, sua equipe resolveu tentar abordar caminhoneiros que transportavam madeira suspeita quando, de repente, ele se viu numa situação extremamente insegura. “Éramos cinco, sendo dois fiscais que portavam revolveres calibre 38. Encontramos de noite, no mato, seis pessoas nos caminhões e ficamos conferindo os documentos. Logo depois chegou um carro com mais dois homens. Ou seja, estávamos no meio do mato, num local que não conhecíamos bem, com poucas pessoas. E embora muito bem intencionados, não tínhamos muita noção de comportamento tático nessa situação”, relata.

Riscos sem compensação

O norte de Mato Grosso pode ainda ser exemplo de outros tipos de risco aos quais servidores de diversas áreas inóspitas do país ficam sujeitos. Em Juína, por exemplo, os funcionários reclamam do mau estado de conservação dos carros oficiais, que às vezes são frágeis para as estradas que enfrentam, além de dependerem de manutenção apenas em oficinas autorizadas em cidades a centenas de quilômetros de distância. Por isso, estão quebrados, ou prestes a quebrar.

Prédios, mobiliário, documentos sujos e empoeirados também são uma ameaça à saúde dos servidores, que, não raro, precisam usar máscaras e luvas para trabalhar. Compradas por eles, claro. Equipamentos de proteção pessoal, como facões, botas, lanternas, capacetes, repelentes e perneiras contra picadas de cobra são outros itens que também não são fornecidos para quem está constantemente no mato.

Eles dizem ainda que as pessoas que trabalham em unidades de conservação distantes e sem infra-estrutura submetem-se a situações ilegais, como transporte em barcos e carros de combustível em quantidades muito superiores às estabelecidas pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Isso quando não são ameaçadas de morte só pelo fato de quererm entrar nas unidades de conservação que administram, como acontece, por exemplo, na Floresta Nacional do Bom Futuro, em Rondônia. Lá, os três analistas ambientais do Ibama são praticamente impedidos de trabalhar por cerca de três mil invasores que tomaram a área e fundaram até um núcleo urbano dentro da área protegida.

Desestímulo

Viver cotidianamente sob essas condições tem sido visto como mero azar. Hoje não existe qualquer tipo de compensação para os servidores que estão nas pontas, sem infra-estrutura. São tratados de maneira idêntica aos que estão lotados no conforto de Brasília. Atualmente, todos os analistas ambientais recebem um salário inicial de R$ 2.548,00 além de uma gratificação por desempenho, “que existe hoje, mas pode sumir amanhã”, conforme explica Jonas Corrêa, presidente da Associação dos Servidores do Ibama (Asibama). Segundo ele, o governo não cumpriu a promessa de criar gratificações, como as de localização e risco orgânico (exposição a riscos ao corpo e à saúde, por doenças, ataques de animais, etc). Isso quer dizer que não há qualquer incentivo, nem mesmo salarial, para que os servidores queiram ir para os locais em que o Ibama mais precisa estar presente. Resultado: assim que se deparam com a realidade, muitos decidem abandonar o instituto – e numa hora em que o país não podia se dar ao luxo de perdê-los.

Ainda segundo Corrêa, estima-se que em 1989, quando o Ibama foi criado, o órgão necessitava de 13 mil servidores. “Hoje existem apenas 6.400”, diz. E apenas dois concursos públicos foram feitos desde aquela época: um em 2002 e outro em 2005. “No concurso de 2002, das 900 pessoas que passaram, 200 pediram para ir embora do órgão e, ainda hoje, as pessoas, aos poucos, continuam saindo”.

Fraqueza na fiscalização

A penúria atinge inclusive o setor de fiscalização. Hoje, o Ibama conta com 1.700 analistas ambientais qualificados para atuarem nesssa área. De acordo com Aristides Neto, coordenador de operações de fiscalização do instituto, quem conclui o curso de fiscal tem o aval para tirar porte de armas, emitido pela Diretoria de Proteção Ambiental. Para ele, isso equivale a poder de polícia. O candidato deve passar por exames psicotécnicos, avaliações com psicólogos e fazer curso de tiro. Tudo resolvido em apenas 15 dias. “O curso é bom, mas a carga horária é pequena”, admite Neto, que informa que geralmente acontecem três cursos desses por ano, dependendo da disponibilidade de recursos. “A gente tem lutado para criar uma academia do Ibama para treinar os nossos fiscais, como existe na Polícia Federal, mas até agora essa idéia não foi para frente”, lamenta.

De tão suscinto, o curso esquece de algo fundamental. “Pelo Ibama, nenhum fiscal tem curso de primeiros socorros”, revela Leslie Tavares, chefe da fiscalização do instituto de Mato Grosso. Além do despreparo e desorganização das ações, Tavares vê outras falhas na formação desses servidores. “O que contribui também é a falta de especialidade na carreira. Não há remuneração necessária. E não existe padrão de qualidade para a fiscalização. É o próprio servidor que tem que pagar pelo porte de armas”, diz. Isso quando há armas, porque, segundo os fiscais, elas também estão em falta. “Hoje tem gente que passa dias e noites fazendo a condução de uma jangada [tipo de embarcação que carrega grande quantidade de madeira] armado com uma 38, quando o ideal era usar arma pesada”, opina Tavares. Com equipamentos obsoletos, ele diz que o Ibama tem direito a usar armas mais pesadas, mas elas não são compradas. Em resposta, a assessoria de imprensa do instituto informou que uma licitação já está em curso para compra de 100 armas, pistolas P40 e coletes a prova de balas.

Apesar de haver esse curso de fiscalização, Neto reconhece que a segurança efetiva das equipes do Ibama (tanto de fiscais como de pesquisadores e técnicos) depende de parceiros, como Polícia Federal Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar e Exército – que entra em cena apenas em operações que fazem parte do plano de combate ao desmatamento na Amazônia. “Quem pega no pesado na segurança em campo são os outros”, diz. Ao Ibama, que está permanentemente em crise financeira, recai ainda a obrigação de arcar com os custos de diárias para esses parceiros. Também por isso, nem sempre eles são chamados.

Nada acontece

E é aí que a questão se agrava. Já que não há como contar com esses pareceiros para a maioria das atividades de campo, principalmente quando não fazem parte de operações especiais, treinamento tático e infra-estrutura tornam-se necessidades de primeira ordem dentro do Ibama. “Em diversos locais o único representante do poder público é o Ibama e se chamarmos a polícia ela provavelmente vai demorar dias para chegar”, reclama o biólogo Abreu.

A insegurança mesmo de quem tem o curso de fiscal do Ibama motivou Antônio Cattaneo, coordenador do Prevfogo de Roraima, a liderar um boicote. “Diante da inconsistência da entidade quanto a sua função de polícia ambiental, me recuso e oriento a todos a se recusarem a fazer fiscalização até que se definam claramente funções e poderes compatíveis com os objetivos do Ibama”, justifica Cattaneo.

Para ele, o Ibama não tem, na prática, o poder de polícia que lhe é conferido para enfrentar as dificuldades em campo. “O Ibama pode obter porte de armas e não tê-lo por lei. Pode multar e apreender bens envolvidos em crime ambiental, mas não prender quando o infrator merece ser preso, nem usar coerção quando houver resistência”. Diante disso, vê apenas duas alternativas: ou decide ter poder de polícia e dar garantias a todos os funcionários ou deve abrir mão da fiscalização, isentando-os dos riscos inerentes.

Neto diz que já tentou negociar várias vezes com outros setores do governo para obter gratificação por interiorização a fim de beneficiar os servidores que atuam nas áreas mais perigosas, onde existem os maiores ilícitos ambientais. Aos funcionários da fiscalização, também seria oferecido um acréscimo por periculosidade. “Até agora, não conseguimos nada”, conta o coordenador de operações do Ibama. E faz um apelo. “A valorização do fiscal e de quem está nas pontas urge. A carência é muito grande, mas a gente fica muito dependente das prioridades de governo federal”. Ao que parece, nem o meio ambiente, nem as pessoas que zelam por ele estão nessa relação.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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