Reportagens

Por baixo dos lençóis

Mesmo com pareceres técnicos negativos do Ibama, campos de petróleo e gás leiloados à revelia nas bordas do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses começam a ser licenciados.

Andreia Fanzeres ·
16 de outubro de 2007 · 17 anos atrás

Não existe no Brasil área como os Lençóis Maranhenses. O litoral leste do estado, a cerca de 200 quilômetros de São Luís, tem as maiores dunas de toda costa brasileira, numa área de transição entre a floresta amazônica, o Cerrado e a Caatinga. A biodiversidade única naquele local, e, sobretudo, a sua beleza cênica justificaram em 1981 a criação de um parque nacional que, raridade entre os demais, tem até plano de manejo e ainda pouquíssimos impactos.

Lamentavelmente, nem a vitória entre as maravilhas naturais brasileiras e a leitura de pareceres negativos elaborados por uma equipe técnica do Ibama ano passado atrapalharam os interesses da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) de leiloar campos de exploração localizados dentro da zona de amortecimento do parque. As empresas vencedoras do leilão trabalham a pleno vapor para instalarem seus empreendimentos, e a autoridade dos órgãos ambientais, uma vez já atropelada, só deve ser lembrada ao final do processo de licenciamento. Isso se o governo agüentar a pressão e tiver coragem de ouvir seus técnicos e dizer não.

Esse filme muita gente já viu, quando mesmo diante de negativas da equipe técnica do Ibama, o governo autorizou o licenciamento das usinas do rio Madeira. A história tem lá suas semelhanças, mas agora envolve uma unidade de conservação extremamente sensível e conhecida.

Em julho de 2006, a ANP promoveu o 2º leilão de áreas marginais, para oferecer a empresários do setor de combustíveis pontos de exploração desativados de petróleo e gás na costa do Maranhão. Esse foi o caso dos campos de Espigão, Oeste de Canoas e São João, que não só ficam no entorno do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, como contíguos à unidade de conservação. Ou seja, são vizinhos de porta. Antes do leilão, o Ibama já havia se manifestado contrariamente à inclusão desses três campos na rodada de negociações, uma vez que qualquer empreendimento que queira se instalar no entorno das unidades de conservação precisa de aval do órgão (função este ano delegada ao recém criado Instituto Chico Mendes). Na ocasião, a ANP pediu que os técnicos fizessem uma nova vistoria ao local para, quem sabe, reconsiderarem. Só que antes deles apresentarem a resposta – que seria mais uma vez negativa – o leilão ocorreu.

Essa pressa desrespeitou uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), assinada pela ministra Dilma Rousseff, atestando que as áreas selecionadas para licitação devem ser excluídas por “restrições ambientais, sustentadas em manifestação conjunta da ANP, Ibama, e de órgãos ambientais estaduais”. Mas para a ANP, não houve quebra de acordo. “Essa resolução não vale para campos que já foram descobertos”, informou Milton Monteiro, diretor técnico da área de exploração e produção da agência. Segundo ele, apesar do parecer negativo do Ibama, a ANP acha que a posição do instituto poderá ser revertida com mais conversas. Enquanto isso, garantiu ao Ibama que só irá assinar os contratos de concessão das áreas para exploração depois que o instituto desse sua permissão.

As empresas estão cientes disso. Mas como se isso fosse mera burocracia, elas sequer se abalaram. Assim que o resultado da licitação saiu, correram para a Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão (Sema) e iniciaram os processos de licenciamento ambiental para as atividades extrativas. Para o Ibama, o licenciamento só poderia ter sido iniciado depois da assinatura dos contratos de concessão. Representantes da Sema, no Maranhão, não foram encontrados pela reportagem para comentar o assunto.

Sem abalos

De acordo com Homero Pessoa Pinto, sócio administrador da Empresa de Engenharia de Petróleo Ltda (Engepet), uma das vencedoras do leilão para a área campo Oeste de Canoas, a empresa sabe do risco de jamais ter o contrato da ANP assinado, mas isso, para ele, é algo improvável. “Avançamos muito nos últimos meses e só estamos aguardando a anuência prévia do órgão ambiental do estado para assinar o contrato de avaliação e produção com a ANP”, diz Pinto. Segundo ele, o contrato permitirá que a área seja explorada primeiramente por um período de cerca de dois anos antes que a sua viabilidade comercial seja declarada pela agência. “Esses poços de gás já foram usados, não é área intacta. Em 1982 a Petrobras tentou explorar ali, mas não era viável economicamente porque não havia mercado para o GNV [Gás Natural Veicular], mas hoje tem”, diz o administrador. Se der certo, a Engepet, consorciada com a empresa Perícia, pretende explorar 150 mil metros cúbicos de gás por dia e transportá-lo de forma comprimida para São Luís em caminhões. A Proerg Engenharia Ltda abocanhou o campo de São João e pretende realizar atividades semelhantes.

A empresa baiana Panergy, que ganhou a exploração do campo Espigão, alegou que “para o Maranhão, a bacia sedimentar de Barreirinhas é a solução no curto e médio prazos como fonte de suprimento de gás, hoje inexistente no estado”, conforme resposta à reportagem. Ciente de que também pode não ver seus contratos assinados, a empresa diz que tem atendido ao edital de licitação da ANP e que acredita não ser definitiva a posição do Ibama. “O parecer, até onde sabemos, está sendo discutido e avaliado entre os dois órgãos federais no sentido de viabilizar as áreas”, informou.

Mais do que fundamentado

Não é o que pensa a equipe técnica do Ibama responsável pelo estudo. As ameaças da produção de petróleo e gás estão apontadas com clareza no próprio plano de manejo da unidade de conservação, com base justamente na experiência das atividades realizadas no passado, quando cerca de 60 poços foram perfurados entre 1960 e o final da década de 80. Hoje há apenas as marcas das ações na região, contaminação do subsolo e vegetação que até hoje não se recuperou.

Os três campos na zona de amortecimento ficam sob paleodunas (dunas formadas a centenas de anos), protegidas e fixadas por uma vegetação que não pode ser retirada. Mas com o início das atividades, existe risco de erosões e deslocamentos de areia pela força dos ventos, o que modificará o fluxo das águas.

De acordo com os técnicos do Ibama que participaram dos estudos, trata-se de uma região com solos completamente arenosos e rasos. Tanto é que na época das chuvas, o lençol freático chega à superfície e formam as lagoas, tão procuradas e admiradas no parque nacional. Além de ter importância biológica extrema para conservação da zona costeira e de mamíferos marinhos, como o peixe-boi, parte da área dos campos está cotada para virar uma reserva extrativista. “Existem espécies ameaçadas de extinção, manguezais, e cursos d’água no entorno do parque fundamentais para a morfodinâmica da unidade de conservação”, alerta Edmilson Maturana, coordenador geral de licenciamento de petróleo e gás do Ibama. “No nosso entender, é uma temeridade essa atividade no entorno do parque”, diz.

Pressão à flor da pele

Mesmo com tudo isso, a ANP crê que a atividade seja ambientalmente viável. “Queremos produzir gás, que não derramam, não poluem tanto. O pior ali já foi feito, quando antes foi preciso desmatar, fazer trabalho de sísmica”, pondera Monteiro, diretor da ANP. Mas de acordo com o parecer do Ibama, mesmo que não seja preciso fazer mais nenhum levantamento sísmico ou novas perfurações, seriam necessárias operações de manutenção dos poços, o que demanda toneladas de cloreto de sódio e cloreto de cálcio, além de outros produtos químicos. “O transporte e manuseio dessas soluções salinas concentradas podem ocasionar derramamentos com a conseqüente salinização das águas doces da região”, diz o estudo. “Além disso, a atividade implica em alteração do uso e ocupação do solo, com abertura de trilhas e picadas”, lembra Maturana.

A ANP reafirma que não se comprometeu com as empresas em assinar os contratos se o Ibama não mudar sua posição. “Mas essa situação não impede que a sociedade discuta. Ela pode querer mais empregos, os municípios podem estar interessados nos royalties”, sugere Monteiro. Só que, segundo avaliação do Ibama, esses royalties são irrisórios se comparados à possibilidade de ocorrerem acidentes com contaminação de águas superficiais e lençol freático. Nesse caso, além de prejudicar o abastecimento de água potável da região, atrapalharão, e muito, a oportunidade de renda mais óbvia daquela região do Maranhão: o turismo. Tudo isso pelo pagamento de 6,3 milhões de reais num período de 10 anos ao estado e municípios, o que, segundo o parecer, não mudaria substancialmente a capacidade de investimentos locais.

Segundo técnicos do Ibama, toda produção de óleo e gás possível naqueles três campos equivale a meio dia da produção diária brasileira. Um risco muito alto para uma pequena disponibilidade. Além do mais, aquela é uma área prioritária para o desenvolvimento do turismo, escolhida ainda como a principal maravilha natural do país. “É uma pena que por pressões políticas se force um processo de licenciamento. É um desgaste desnecessário, que queríamos evitar com os pareceres negativos”, diz um dos técnicos.

Mas agora não é mais o Ibama que deve se manifestar junto à ANP e brigar por aquela área. Com a divisão do órgão, a tarefa cabe ao Instituto Chico Mendes, que, não faz muito tempo, andou aceitando idéias do Ministério de Minas e Energia sobre a realização de levantamentos de potencial hidrelétrico dentro de unidades de conservação de proteção integral que, por lei, não admitem qualquer atividade econômica em seu interior. Desta vez, o Instituto Chico Mendes assegurou que o que vale é o parecer do Ibama, e não deve mudar sua posição quanto à inadequação da exploração de petróleo e gás na região.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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