A voz metálica do GPS adverte para sairmos da Highway 11 e pegar a 118 à direita, rumo às terras altas de Haliburton. A essa altura, já havíamos perdido o encontro, marcado para as três da tarde, com o gerente de uma operação de manejo florestal certificado. O que era para ser uma viagem de duas horas e meia, já entrava na metade da quarta hora e ainda tínhamos perto de 80 quilômetros para andar. Quando o carro entrou na 118, foi como sair de um mundo de fumaça fóssil, num engarrafamento de 150 quilômetros, e entrar numa estrada asfaltada, porém desenhada por cima de trilhas de meados do século XIX, que levaram os primeiros colonos do “Front” superpopulado às margens do lago Ontario, onde fica Toronto, para o interior florestado e repleto de lagos e rios.
As terras altas de Haliburton, província de Ontario, correspondem ao pedaço mais ao sul do “escudo pré-cambriano”, uma paisagem escavada pelo gelo dos glaciais que desapareceram há 10.000 anos atrás, composta por numerosos lagos compridos e formações de granito cinza e rosa. Mas não foram nem os lagos, nem as rochas que nos encheram a vista e espantaram o irritado cansaço de uma viagem feita lenta e penosa pela enorme quantidade de carros deixando Toronto para o feriadão de “Ação de Graças”. O “thanksgiving” canadense foi comemorado na segunda-feira, dia 8 de outubro. A saída de Toronto gerou um engarrafamento inédito na vida da cidade e na nossa. Me lembrou aqueles filmes de desastre de Hollywood, quando uma grande cidade, tipo Los Angeles ou San Francisco é evacuada às pressas e, de repente, formam-se várias filas e nenhuma anda. Eu nunca estivera antes em um engarrafamento de mais de 100 quilômetros, com os carros andando e parando, andando e parando, andando e parando.
O cenário que nos esperava na primeira curva da estrada salvadora era o das “cores do outono” (fall colors) o festival de cores das folhas evanescentes do outono. Nessa região, do condado de Haliburton, onde há várias reservas florestais, a mais importante é a do parque provincial de Algonquin, as cores do outono adotam todas as tonalidades possíveis de verdes, amarelos, laranjas, vermelhos, sépias, marrons. É como abrir uma caixa completíssima de pastéis, ordenadamente misturados.
Uma coisa notável, anota a companheira de viagem Miriam Leitão, é que se encontra a árvore símbolo do Canadá por toda a parte. E nesta época do ano, a “maple tree” está espetacular, no seu fenecimento outonal, suas folhas vão do amarelo ao vermelho, em tonalidades sempre leves e luminosas. No Brasil contam-se nos dedos os brasileiros que já viram um pau-brasil adulto e são menos ainda os que o viram na natureza.
A rodovia é cercada de bosques, cortada por riachos, rodeada de lagos, a água espelha as cores do outono e as multiplica. Tudo fica, de repente, calmo e sereno. O perfume de pinho enche o ar. A brisa já prenunciando os dias frios de novembro realça os aromas da terra, embora esteja inesperadamente quente para essa época do ano na região. Os chalés da reserva da “Haliburton Forest”, tinham as lareiras acesas e as camas cobertas por espessos cobertores de lã, preparados para a média anual de temperatura desse período final do outono, que é 12o C. Mas do lado de fora, às 7:00 da noite, fazia 27o C. Ao chegarmos, no finalzinho da tarde, não havia ninguém para nos receber. Fomos saudados pelos uivos dos lobos na mata próxima.
A Haliburton Forest é uma reserva privada, derivada de uma operação florestal. Hoje, ainda explora madeira, que processam e transformam em peças para montar “log cabins”, já com os encaixes todos programados. Basta montar os chalés no local desejado. A exploração florestal é certificada pelo Forest Stewardship Council. Além disso a reserva é a base de um amplo programa de ecoturismo, com numerosas atrações. Numa área cercada de 6 hectares, há um santuário para lobos criados em cativeiro.
Ao chegarmos, a recepção da reserva já estava fechada. Na porta, um aviso dizia que quem tivesse feito reserva, olhasse dentro da caixa presa na parede ao lado direito da porta. Lá, envelopes traziam o nome da pessoa e um chaveiro com chaves para o cadeado da portaria e para o chalé. O nosso seria o The Cambrose 1.
Havíamos sido exaustivamente avisados para comer sempre antes das 20:00 hrs, para não corrermos o risco de encontrar todos os restaurantes fechados. Como eram 19:30, fomos direto ao restaurante. Quem viaja por essas terras tem que se preparar para um festival de calorias, gordura trans e carboidratos. A melhor pedida é sempre salada verde – ou cole slaw, o do restaurante da reserva Haliburton, temperado com bastante raiz forte, estava excelente – e peixe, carne ou ave. Pedir vegetais mistos, em juliene, ou grelhados, nesta época pelo menos, é o mesmo que pedir pimentão e cebola roxa. No café da manhã praticamente não há opção. A saída é optar pela proteína e comer cereais ou ovo, café ou chá e muito pouco pão. As torradas vêm nadando em manteiga.
Entramos nos chalés da floresta de Haliburton perto das nove da noite, bastante cansados e fomos dormir em seguida. Acordei por volta das três da madrugada, com barulho de chuva forte. Provavelmente já estava chovendo há muito tempo e continuou chovendo a noite e a manhã inteiras. Os planos iriam todos, naquela parada, literalmente por água abaixo.
A floresta Haliburton nasceu há 40 anos, em uma área exaurida de exploração florestal. A família Schleifenbaum a comprou de uma madeireira industrial que se desinteressara dela por estar com as espécies comerciais esgotadas. Na região de Ontario, pelo menos, praticamente não há mais floresta nativa. Toda a imensa cobertura florestal é regenerada, depois que o desmatamento passou a ser controlado. Em torno de 24000 hectares foram recuperados, para sustentar uma operação multiuso no que hoje é a Haliburton Forest and Wildlife Reserve. O manejo florestal tem certificação antiga, da Smartwood/Rainforest Alliance, de Boston (MD) – foi a primeira floresta “sustentável” canadense certificada – depois assumida pelo Forest Stewardship Council (FSC). É uma floresta com alto índice de coníferas, onde predominam a “sugar maple” (bordo), Acer saccharum; “American beech” (faia americana), Fagus grandifolia Ehrh; “Eastern Hemlock” (abeto do Canadá), Tsuga canadensis. Com a madeira desta última, a Haliburton Forest faz kits de toras e pranchas tratadas e já com os encaixes que vende para a montagem de “log homes”, uma construção clássica de madeira no Canadá e partes do EUA. Além disso, a reserva tem nada menos que 50 lagos.
A operação de ecoturismo é muito bem organizada. Eles têm acomodações em vários locais diferentes da reserva, como por exemplo no lago Stocking, com equipamentos para acampamento, canoagem, esqui e trilhas. Guias treinados acompanham os visitantes em caminhadas de três ou quatro dias, pelos diferentes tipos de paisagem da reserva. Na primavera, no verão e no outono, pode-se praticar o arborismo. No inverno, há atividades típicas, como esqui “cross-country”, “snowmobiling” ou “dog sledding”. Há, também, um amplo programa de educação ambiental.
A única atração que nos restou foi visitar a reserva de lobos. No Wolf Center, aparentemente demos sorte. A chuva havia por alguma razão levado um pequeno grupo deles a sair da mata e ficar aproveitando a primeira estiagem do dia, numa clareira aberta em frente ao centro, uma área relativamente pequena, de uns 500 m2. Uma varanda fechada com vidros opacos por fora e transparentes por dentro, permite aos visitantes com sorte ver os lobos, quando resolvem aparecer. É claro que, para incentivar essa aparição, provavelmente é ali que recebem comida e há outros atrativos para eles. Toda a informação institucional da reserva e do centro, porém, insiste que é difícil vê-los, porque evitam a proximidade com os seres humanos e preferem ficar na mata. São lobos em cativeiro, porém com uma área de floresta fechada de 6 hectares, que lhes permite evitar a socialização com os humanos. Eles são, entretanto, alimentados pelos funcionários da reserva, pois em sua área só entram presas de pequeno porte, como castores ou esquilos, mas insuficientes para o sustento da matilha. Havia uns oito lobos adultos e dois filhotes aproveitando a estiagem.
A reserva tem duas ou três matilhas de lobos selvagens e alguns adultos solitários, que percorrem a floresta e caçam nela. O Centro de Lobos, tem também um programa de proteção aos lobos selvagens de Ontario. A região de Algonquin, onde está hoje o parque provincial, é berço de uma espécie de lobo igualmente ameaçada de extinção, o “Eastern Canadian Wolf” (Lobo do Leste Canadense), Canus lycaon. Os lobos de Haliburton são lobos cinzentos, Canus lupus, ou “lobo madeireiro”, da mesma espécie dos que estão em confinamento. Não sobram razões para lutar pela preservação dos lobos silvestres do Canadá e do EUA e o confinamento, dadas as circunstâncias, até se justifica. Durante muito tempo foi política oficial nos Estados Unidos erradicar os lobos das reservas. Nas áreas não reservadas, sempre foram caçados impiedosamente. No Canadá, o rápido avanço da fronteira agropecuária levou os lobos ao limite do aniquilamento, colocando as principais espécies em perigo de extinção. O resultado é que das sete espécies de lobos norte-americanos da subespécie occidentalis, que compreende as espécies do Alaska e do oeste do Canadá, duas estão extintas e duas seriamente ameaçadas de extinção. Das onze espécies da subespécie nubilus, do sudeste do Alaska, nordeste e centro do Canadá e do EUA ocidental, cinco estão extintas, e cinco estão ameaçadas de extinção. A única espécie do sudeste canadense e nordeste do EUA, da subespécie lycaon, está ameaçada de extinção. As duas espécies da região de Ontario, estão igualmente ameaçadas.
A causa principal é a matança por caçadores e fazendeiros. Mas a drástica redução de seu território, pelo desmatamento e pela ocupação humana, acabou desfazendo seus limites territoriais. Cada matilha tem um território onde caça, faz seus covis e transita, de aproximadamente 200 km2. No espaço mais limitado, acabam sendo vítimas da consangüinidade ou de cruzamentos com coiotes que também ameaçam as espécies e prejudicam a reintrodução na natureza de casais formados em confinamento. A taxa de mortalidade infantil já é muito alta na natureza. Com essas disfuncionalidades ambientais, aumenta ainda mais e torna a reprodução das matilhas quase impossível.
Nos Estados Unidos, esse cruzamento entre-espécies está dificultando o programa de reintrodução do “lobo vermelho”, Canis rufus, que, de qualquer forma, retirou o animal da lista de “extintos na vida silvestre”, na qual entrou em 1980. Os últimos 17 indivíduos foram postos em confinamento para dar início a um programa de reprodução. O programa de recuperação já reintroduziu o lobo vermelho em áreas remotas da Carolina do Norte, no entorno do rio Alligator e nos refúgios de vida selvagem dos lagos Mattamuskeet e Pocosin.
O Centro de Lobos de Haliburton tem um programa que busca preservar os lobos da região, que sofrem problema similar ao das onças do Pantanal. São mortos pelos fazendeiros, que se justificam dizendo que os lobos estão atacando seus rebanhos. Como há preconceito e medo em relação a esses dois predadores de porte, toda morte nos rebanhos é atribuída a eles. A averiguação sistemática, seja pelo projeto do Fundo para Conservação da Onça-Pintada, seja do Wolf Center, dá no mesmo resultado: apenas uma mínima fração das perdas de gado – no caso da região de Haliburton, também ovelhas – é de fato provocada pelo ataque de onças, no Pantanal, ou lobos, em Haliburton. No caso canadense, coiotes e cachorros domésticos abandonados atacam mais os rebanhos do que os lobos, que preferem caçar dentro da floresta, alimentando-se de veados, castores e esquilos, muito ocasionalmente alces. No Pantanal, menos de 10% das mortes de reses atribuídas a ataques de onça são confirmadas pelos especialistas, o resto é cobra, envenenamento ou manejo negligente.
A diferença fundamental é que o programa brasileiro objetiva preservar as onças em liberdade, na natureza, em estado selvagem. O Wolf Center é uma reserva de animais em cativeiro, que precisam de ossos de alce doados por caçadores para limpar e afiar dentes e garras, de complementação alimentar e têm um perímetro de ação ultra-restrito em relação a sua territorialidade natural, embora generoso para o estado de confinamento.
O Centro tem uma loja com boa quantidade de produtos para atrair turistas e visitantes, desde T-shirts até livros sobre os lobos norte-americanos, estórias de lobos e todo tipo de badulaque. Um pequeno auditório, com um projetor e bom sistema de som, passa documentários sobre lobos e sobre a própria reserva. Assistimos a um documentário de aproximadamente 40 minutos, muito interessante, sobre o trabalho de Paul Paquet, biólogo especialista em lobos, um pesquisador de renome internacional da universidade de Calgary, na província de Alberta. O documentário relata seu trabalho com os lobos do Parque Nacional de Banff, na região das montanhas rochosas canadenses. Os lobos foram erradicados do parque nos anos 50 e, hoje, há 45 deles, divididos em 5 matilhas.
A história do Wolf Center começou quando o fotógrafo profissional Jim Wuepper, precisou se mudar de Marquette, em Michigan, no EUA, e não sabia o que fazer com uma pequena matilha de lobos que havia formado, a partir de um casal de filhotes que comprara com o objetivo de fotografá-los em um cenário natural. Eles, depois, se tornaram estrelas de um filme feito sobre o naturalista R. D. Lawrence, “In Praise of Wolves”. Wuepper já conhecia a reserva em Haliburton e seu pessoal, apresentados a ele por Lawrence. Obrigado a se desfazer dos 3 hectares de terra onde mantinha seus cinco lobos, propôs transferi-los para a reserva. Os proprietários gostaram da idéia, levaram dois anos para construir o Centro, com seu cercado de 6 hectares. A transferência foi feita de acordo com as regras do CITES, porque o lobo cinzento, ou “lobo madeireiro”, está em nível crítico de perigo de extinção. Segundo pesquisas no Wolf Center e no parque de Algonquin, o tempo de vida médio dos lobos selvagens, nas florestas da região é de 5 a 6 anos, embora possam viver até 13 anos. No centro, em cativeiro, têm uma vida média de 8 anos.
O Centro mantém um programa permanente de pesquisas sobre lobos, incluindo a análise de seus hábitos alimentares. Vive exclusivamente de doações privadas e das receitas provenientes das visitas. O período de pico é nos meses de julho e agosto, quando são feitos os “censos dos uivos”. Imitadores experientes de uivos, atraem os lobos, que ficam mais próximos de suas bases, nesta época. Os lobos respondem e é possível localizá-los e contá-los estimativamente. Em algumas noites desses meses, os guias levam os visitantes às partes da floresta mais próximas de seus covis para que ouçam os lobos responderem aos uivos de imitação dos humanos. Parece que faz o maior sucesso.
Melhor isso do que caçá-los impiedosamente por superstição, preconceito ou simples prazer.
Onde é a reserve
Haliburton Forest & Wild Life Reserve Ltd.
RR#1, Haliburton, Ontario
K0M 1S0
Tel.: (705) 754-2198
Email: [email protected]
Para se chegar a Haliburton de Toronto, deixa-se a cidade pela Rodovia 401, depois toma-se a rodovia 400 Norte, que se transforma na rodovia11, logo ao norte da cidade de Barrie, segue-se sempre na direção norte, até chegar à cênica rodovia118, nela tomando-se a direção Leste. Antes de chegar à cidade de Haliburton, em West Guilford, atravessa-se a ponte e toma-se a rodovia municipal 7 por aproximadamente 20 quilômetros. Uma placa indica a entrada do “campo base” da Floresta Haliburton.
É possível reservar chalés para estadias a CAN $ 59.00 por noite, por pessoa, na primavera, no verão e no outono, e por CAN $ 89.00 no inverno. Para passar o dia, sem acomodações, CAN $ 15.00 e CAN $ 35.00, respectivamente. O restaurante da própria reserva tem um cardápio tão bom quanto o que se encontrará na própria cidade. Os preços variam em torno de CAN$ 15.00 o café da manhã e CAN 30.00 almoço e jantar. O vinho é ruim, mas há uma boa seleção de cervejas.
Leia também
Política Nacional de Visitação a UCs é aprovada na Câmara dos Deputados
Texto do PL nº 4.870/24 que cria mecanismos financeiros para promover o turismo em áreas protegidas do país segue para análise no Senado →
Governo lança plano de rastreio individual na pecuária, com foco apenas sanitário
Identificação individual será obrigatória para todo rebanho de bovinos e bubalinos a partir de 2032. Pressão de mercados importadores impulsionou iniciativa →
A curiosa história da doninha africana que, na verdade, é brasileira
Muito além da confusão pelo seu nome, a doninha-amazônica é notória por ser o mamífero predador mais misterioso do Brasil →