Depois de 20 anos de trabalho no combate ao fogo em unidades de conservação federais, o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) não tem mais essa missão. Esta é mais uma conseqüência da divisão do Ibama, desde 2007. Como o Prevfogo não foi incorporado à estrutura do Instituto Chico Mendes (ICMBio), este ano o novo órgão assumiu que dará conta da responsabilidade. Mas, às vésperas do período seco, ainda sobram indefinições cruciais. Por isso, quem trabalha nas unidades de conservação acompanha esse desenrolar com apreensão. As ações de prevenção que já deviam ter começado ainda estão na fase de planejamento.
À frente da missão no ICMBio foi nomeado o major Alexandre Figueiredo de Lemos, de 39 anos. Bombeiro no Mato Grosso do Sul há 15, é perito em incêndios florestais e, antes de assumir o novo cargo, era coordenador de Proteção Ambiental dos bombeiros sul mato-grossenses.
Para garantir sucesso em seu primeiro ano de atuação, a coordenadoria-geral de Proteção Ambiental do ICMBio (CGPro) informou que conta com uma “colinha” do veterano Ibama. Segundo Lemos, os modelos de cursos de treinamento e formação de brigadas serão os mesmos já utilizados e, apesar da forma de atuação um pouco diferenciada, o bombeiro garante que o contato entre os órgãos não será desfeito. “Nós estamos pegando carona nas coisas que eles fizeram. Todas as nossas ações estão sendo realizadas em conjunto, estamos tendo reuniões semanais. A nossa intenção não é perder o link, é deixar as coisas muito mais afinadas”, diz.
Momento de transição
Quase dois anos após sua criação, o Instituto Chico Mendes ainda está arrumando a casa. Não é diferente no de combate ao fogo. Por enquanto, o calendário de cursos está sendo fechado (com início previsto para abril), a contratação de brigadistas preparada no mesmo modelo e número estudado pelo Prevfogo, e a compra de materiais estudada. Mas ainda restam muitas indefinições importantes, a começar pelo orçamento destinado às ações. De acordo com Lemos, cerca de R$ 1,5 milhão já foram destinados para a contratação dos 1407 brigadistas que atuarão este ano. O recurso voltado para todas as outras atividades do órgão ainda não foi definido.
A divisão de equipamentos e unidades físicas do combate, que antes faziam parte do patrimônio do Ibama, também não foi acertada. Segundo Lemos, uma comissão foi criada para resolver o assunto, mas não há data para que os trabalhos terminem. Somente após esta divisão é que o ICMBio poderá requerer a compra dos novos instrumentos. Para se preparar, o Instituto elabora uma “ata de registro de preço”, um tipo de estoque virtual que pode ser acessado mais rapidamente em caso de necessidade. “A princípio, até terminar essa comissão, tudo vai continuar como estava, dentro das unidades [de conservação]. Então, para esse ano, não se corre o risco de tirar os equipamentos do Prevfogo e de ficar um vazio. Se isso tiver que acontecer, vai ser uma coisa meio casada”, garante Lemos.
Mesmo em transição, é bom que o ICMBio comece a agir logo. O início dessa fase, ainda em 2008, atrapalhou algumas unidades de conservação, como o Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA), que perdeu nada menos que 55 mil hectares para o fogo no ano passado.
Para os trabalhos de prevenção e combate, o parque contava com cinco viaturas, que inicialmente eram do Ibama, mas ficaram em poder do ICMBio até que se resolva quem vai permanecer com os bens. O problema é que os carros necessitaram de reparos ao longo do ano e nenhum dos dois órgãos possuía o contrato de manutenção. “Ano passado ficou um vácuo, porque os papéis [de cada órgão] não estavam bem definidos”, diz Adroaldo Vasconcelos Júnior, chefe da Brigada Voluntária do Vale do Capão, uma das principais da Chapada.
As mudanças este ano ainda não vieram. Nesta semana, por exemplo, um foco de calor consumiu mil hectares dentro do mesmo parque e a unidade de conservação ainda não podia usar as viaturas. Não fosse a ajuda de outros órgãos, como a Polícia Militar, não haveria como combater o incêndio.
O lado positivo da mudança de atribuições, segundo major Lemos, é o acesso facilitado e maior diálogo e aquisições que a nova estrutura administrativa proporcionará. Estão eles preparados para enfrentar os grandes incêndios florestais que costumam lamber as unidades de conservação nesta época seca? “Claro que estamos. Do mesmo jeito que o outro órgão estava. A estrutura administrativa que é nova, agora vai ficar mais limpa, ela está mais rápida, vai possibilitar mais as coisas. Não digo que vai ficar melhor, mas vai ter a nossa cara, a do Instituto (Chico Mendes)”, garante.
O que muda
O ICMBio preparou algumas mudanças na metodologia de trabalho contra o fogo. A primeira delas é formar chefes de esquadrão para as brigadas. Lemos acredita que os brigadistas ficam, muitas vezes, sem orientação quando estão em combate, por isso pretende separar os 1.407 trabalhadores temporários em grupos de sete pessoas e identificar 201 potenciais chefes de esquadrão. “Para ser chefe, tem que ter alguns pré-requisitos: primeiro, preferencialmente, ter sido brigadista, e, segundo, ter a carteira de motorista para poder conduzir a brigada”, explica.
Lemos também pretende dar mais autonomia aos chefes das unidades de conservação e diz que eles não precisarão mais se reportar aos coordenadores regionais, mas diretamente à própria coordenação-geral, em Brasília. Além disso, todas as brigadas deverão integrar o Sistema de Comando de Incidentes, passando por um tipo de treinamento regional a vários atores envolvidos no combate ao incêndio, como chefe de unidade, bombeiros locais, associações de moradores, entre outros. Também estão sendo estudados convênios com entidades que possuem aeronave e criação de 11 bases de apoio para dar suporte às unidades mais distantes e que têm em seu histórico casos recorrentes de incêndio.
O major acredita, ainda, que o fato de um bombeiro estar à frente dos trabalhos vai resolver as rusgas que existem entre sua corporação e as brigadas, que possuem métodos de trabalho totalmente diferentes. Segundo Christian Berlinck, chefe do Parque Nacional da Chapada Diamantina, as diferenças começavam desde o horário de atuação. “Os bombeiros costumam trabalhar de noite, porque as regiões estão muito quentes. Os brigadistas trabalham de dia. Acontece muita picuinha no campo”, diz.
Reconstrução em pouco tempo
Apesar do tom otimista do Instituto Chico Mendes, quem está acostumado a lidar com fogo fora de ambiente urbano sabe que a situação não é nada simples. “Nós estamos nesse processo de transição, mas ao mesmo tempo preocupados, tendo em vista o que a gente conhece da realidade do nosso país e da realidade do que é um incêndio florestal”, declarou Elmo Monteiro, coordenador-nacional do Prevfogo.
Para ele, na verdade, não era necessário nem haver esta divisão de tarefas, já que, mesmo tendo atribuições diferentes, ambos os órgãos são instâncias federais ligadas a um mesmo ministério, cujo conhecimento não deveria ser desperdiçado. “O centro especializado Prevfogo tem uma história. Não foi em seis meses que nós atingimos o nível de conhecimento que temos hoje. Levaram-se anos para chegarmos aqui. Então, para mim foi muito difícil entender que nós estamos criando, entre aspas, um outro Prevfogo, voltado para o mesmo objetivo que é o combate ao incêndio florestal”, diz.
Monteiro argumenta que, no momento do combate, o Prevfogo não enxerga fronteiras, isto é, se o fogo ultrapassa os limites da unidade de conservação, ele será combatido da mesma forma. “Se o fogo não tem fronteiras, então não vejo porque criar o Prevfogo do muro para dentro da unidade e ter um outro Prevfogo para cuidar do muro pra fora”, pondera. Daqui para frente, uma de suas principais atividades será formar e coordenar as brigadas municipais, criadas primeiramente em 32 cidades da Amazônia Legal para empregar e qualificar moradores na prevenção e no combate aos incêndios, que podem ameaçar também as unidades de conservação.
Para o coordenador, no entanto, teria sido mais interessante em termos de conservação se o recurso destinado à criação do novo braço do ICMBio tivesse sido investido no aperfeiçoamento do combate aéreo e desenvolvimento de novas tecnologias no Prevfogo, por exemplo. “É uma relação muito confusa, sim, mas eu espero que a gente consiga, dentro de um prazo determinado de tempo, resolver qualquer situação que venha a acontecer. A gente tem sempre que torcer pelo melhor”, diz.
Atualmente, Prevfogo e Instituto Chico Mendes possuem um termo de cooperação técnica, criado ainda em 2008, garantindo que, havendo necessidade, o Ibama auxilie as unidades de conservação. Para Berlink, a mudança tende a ser boa, porque ele acredita que as unidades poderão contar com a ajuda dos dois órgãos. No entanto, o receio de que algo não saia bem paira no ar. “Se você divide, certamente diminui as forças. Espero que tudo dê certo, mas tenho receio de que alguma coisa não funcione dentro dos prazos necessários”, afirma o chefe do Parque Nacional da Chapada Diamantina.
Segundo Rodrigo Falleiro, coordenador-regional do Prevfogo em Mato Grosso, os prazos realmente devem ser seguidos à risca para que haja condições mínimas de sucesso em campo este ano. “O Prevfogo não vai abandonar as unidades de conservação. Ele vai fazer aquilo que o Chico Mendes não conseguir. Se o Chico Mendes conseguir fazer tudo, a gente não faz nada. Se não tiver condição de fazer nada, a gente continua fazendo tudo. Mas é preciso uma definição rápida, porque nesta época a gente já estava trabalhando a prevenção, as licitações, a organização de cursos, e não dá para voltar isso para o Prevfogo de repente. Não dá para chegar em maio e dizer: ‘olha, não deu certo, vamos pedir socorro para o Prevfogo’. Daí não vai ter como”, disse Falleiro, em entrevista realizada dia 7 de março.
Até aquele momento, de acordo o analista ambiental, o Instituto Chico Mendes não havia dado posicionamento de suas atividades aos estados.
* colaborou Andreia Fanzeres.
**Foto de abertura: Vinícius Mendonça/Ibama, acrescentada na reportagem em 19/08/2021. A imagem no meio da matéria é a mesma da data da publicação.
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