Reportagens

A casa do Entufado Baiano

ONG compra fazenda onde estão alguns dos últimos indivíduos desta ave tão rara quanto ameaçada. Sua conservação é parte de uma estratégia para salvar as matas do Jequitinhonha.

Felipe Lobo ·
13 de março de 2008 · 17 anos atrás

A última edição da lista vermelha de espécies ameaçadas, atualizada a cada ano pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês), traz em sua categoria de aves um tipo endêmico da região nordeste de Minas e extremo sul da Bahia. Conhecido como Entufado Baiano, o Merulaxis stressemani está presente há um bom tempo na relação dos bichos em risco crítico de extinção. Uma boa notícia, no entanto, pode ajudar na preservação do grupo: a Ong Biodiversitas, em parceria com a American Bird Conservancy (ABC), acaba de adquirir uma fazenda com 392 hectares no local onde indivíduos do Merulaxis foram descobertos recentemente.

Localizada na divisa entre os municípios de Bandeira e Jordânia, ambos em Minas, a área comprada está inserida em um remanescente de cerca de três mil hectares, um dos últimos da região a apresentar floresta nativa da Mata Atlântica. Conhecido pelo curioso nome de Sossego do Arrebol, o território é mantido por alguns proprietários particulares. No seu entorno, as árvores de outrora deram lugar a extensas áreas de pasto e ao comércio ilegal de madeira. “Ainda temos uma atividade de desmate muito grande nas redondezas. A prioridade é cercar a fazenda para que ninguém entre ali e colocar um funcionário nosso para conservar o espaço”, informa Eduardo Figueiredo, coordenador do Programa de Conservação do Merulaxis na Biodiversitas.

O responsável por encontrar a ave foi o ornitólogo Rômulo Ribon, da Universidade Federal de Ouro Preto. Em parceria com o biólogo Fabiano Melo, ele coordenou uma pesquisa para levantar a fauna de importantes remanescentes de floresta Atlântica na Bahia e em Minas Gerais. Depois disso, a Biodiversitas e a ABC delimitaram o ponto no qual Ribon avistou o animal e começaram a fazer um estudo sobre a restrição fundiária do espaço. “Protegendo essa ave, conseguimos cuidar de todo o ecossistema. O primeiro passo, para isso, é resguardar a área que podemos”, explica Figueiredo.

Apesar da alegria pela compra, ainda há muito trabalho pela frente. Embora importante, o espaço adquirido é muito pequeno para as necessidades de preservação, e nem conta com mata nativa em todos os seus limites. Uma parte considerável já foi desmatada. “A ameaça continua. Enquanto fazíamos nossas pesquisas, ouvimos o barulho dos tratores trabalhando nos arredores. E também percebemos que já tinham blocos de florestas sendo vendidos para madeireiros na Bahia”, diz Ribon, que também é colaborador do museu de Zoologia João Moojen, da Universidade Federal de Viçosa (MG).

A história

Na verdade, o terreno assegurado pela organização faz parte de um mosaico de fragmentos de matas que ainda estão de pé na Bahia e em Minas Gerais. Foi com o apoio do Instituto Estadual de Florestas-MG que a história começou. Em 1999, o então funcionário do órgão Fabiano Melo foi convocado para fazer um levantamento das espécies de fauna em 15 municípios do nordeste mineiro. O trabalho foi tão importante que se tornou a tese de doutorado do biólogo e depois recebeu financiamento do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira – PROBIO, do Ministério do Meio Ambiente.

Já com o nome de Inventário Biológico nos Vales dos Rios Jequitinhonha e Mucuri, na Bahia e em Minas, Fabiano ampliou sua equipe de pesquisa e ficou a frente do grupo de mastofauna, responsável por estudar os mamíferos da região. A expedição no campo foi emblemática: no total, 1.947 espécies de fauna e flora foram catalogadas, sendo que 28 estão em processo de desaparecimento. Destas, o feito mais importante foi, justamente, a descoberta do Entufado Baiano por Ribon, líder do grupo de avifauna à época. Eram os idos dos anos de 2003 e 2004. “Trata-se de uma região muito distinta das demais, já que tem uma série de espécies que só ocorrem ali e a grande estrela do show: o Merulaxis”, avalia o biólogo Fabio Olmos, estudioso das aves brasileiras.

A Biodiversitas adquiriu a área há pouco mais de dois meses, em dezembro de 2007. Ainda não houve tempo hábil para iniciar os trabalhos de preservação do espaço, mas já existe uma proposta de transformar a fazenda em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Será o ponto de partida para o desenvolvimento de projetos de educação ambiental com os proprietários do entorno, de ecoturismo e pesquisa científica.

Entusiasmo

O sorriso nos rosto dos autores desta descoberta faz sentido. A última vez que um indivíduo de Merulaxis foi reconhecido no Brasil aconteceu perto da Reserva Biológica de Una, no sul da Bahia. Esse episódio já tem muitos anos. Desde então, diversas expedições visitaram o local, mas nenhuma teve o sucesso de encontrar o Entufado. “Na primeira viagem ao município de Bandeira, nos deparamos com a vocalização da ave. Como é um animal muito raro, ainda não tínhamos certeza se era ele mesmo. Ao voltar, conseguimos fazer um vídeo da espécie e classificá-la corretamente”, comemora Rômulo Ribon. Fora o grupo recém-descoberto na região do Sossego do Arrebol, há apenas três Entufados Baianos notórios em todo o mundo. Todos estão em museus.

Para se ter uma idéia da importância ecológica da área na qual está inserida a nova fazenda da Biodiversitas, a BirdLife tem um programa internacional chamado de Important Bird Areas (IBA). Ao redor do planeta, são listados os territórios com maior poder de conservação de aves ameaçadas. O Arrebol é um deles. “Agora, é preciso alcançar recursos para manter a preservação dos 392 hectares adquiridos”, comenta Pedro Develey, diretor de conservação da SAVE Brasil, uma das parceiras do projeto. De acordo com ele, é possível que a campanha “Species Champions”, da mesma BirdLife, invista recursos na idéia. “Mas não conseguiremos salvar todos os fragmentos remanescentes do Brasil comprando áreas. O município de Bandeira tem uma atividade madeireira muito forte”, completa.

Aceito como espécie de essencial descoberta por seu status de risco, o Entufado Baiano não é o único habitante do “último resquício de floresta ombrófila densa de Minas Gerais”, como diz Fabiano Melo. O local é casa de outras 17 espécies de aves e cinco mamíferos ameaçados. Lá, por exemplo, vive o macaco-prego-do-peito-amarelo, classificado como criticamente em perigo pela lista da fauna brasileira ameaçada de extinção, desenvolvida pela Biodiversitas em 2005. Ele foi encontrado por Melo em suas pesquisas de campo

Todos eles vivem nos cerca de três mil hectares que ainda estão de pé em quatro cidades: Bandeira e Jordânia, em Minas, e Macarani e Maiquiniqui, na Bahia. Fora delas, só há pasto. “A conservação é bem difícil porque são poucos hectares. Mas ainda há outros pequenos remanescentes espalhados nos dois estados. O IEF mineiro pensa, por exemplo, em criar uma unidade de conservação que pegue estas matas e o entorno da fazenda comprada pela Biodiversitas”, afirma Fabiano.

Bons exemplos

Em sua monografia de doutorado finalizada em 2003, o biólogo listou seis lugares primordiais para a proteção dos ecossistemas. Deles, quatro já viraram ou estão em vias de se tornarem unidades de conservação. No último mês de fevereiro, por exemplo, foram criados o Parque Estadual do Alto Cariri, que conta com mais de seis mil hectares, e o Refúgio da Vida Silvestre Mata dos Muriquis, com 2,7 mil hectares. Localizadas nos municípios de Santa Maria do Salto e Salto da Divisa, as áreas são fundamentais para salvar o maior primata das Américas.

A Reserva Biológica da Mata Escura, terceira unidade formada a partir do trabalho de Melo, também existe graças à descoberta de um muriqui em seus domínios. Na verdade, 30 macacos da espécie foram achados dentro dos amplos limites da UC, que possui 51 mil hectares na cidade de Jequitinhonha. Até agora, pelo menos, o Ibama tem desempenhado um efetivo papel na fiscalização dos limites geográficos da reserva.

Atualmente, a criação mais aguardada pelos ambientalistas da região é a da RPPN da Biodiversitas e American Bird Conservancy. Embora pequena, sua proteção pode ser muito importante para tirar da iminente extinção a bela ave que serve de símbolo da região. Mas, se depender da pressão que o entorno oferece para os 392 hectares, a vigia deve ser constante. “Parece que você está na Ilha de Páscoa rodeada pelo capinzal”, finaliza Rômulo Ribon. É a casa do Entufado Baiano.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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