Reportagens

Todo mundo na Amazônia

Na fronteira de desmatamento, hotel de selva Cristalino (MT) ensina que investir na riqueza da biodiversidade faz bem à cultura e à economia. Falta só cativar mais brasileiros.

Andreia Fanzeres ·
27 de março de 2008 · 16 anos atrás

Dezessete estudantes suecas na faixa dos vinte e poucos anos desfrutando das belezas da floresta amazônica podem compor o sonho de muitos marmanjos. Mas, no mundo real, as centenas de picadas de insetos sobre a pele branca, o calor e a umidade da mata representaram uma prova de resistência das mais difíceis para as moças, capitaneadas por três professores da Universidade Sueca de Ciências da Agricultura. Eles pararam no Brasil por acaso. Iriam promover um curso prático de Biologia da Conservação nas matas tropicais do Quênia. Só que a instabilidade política no país mudou os planos da turma a três semanas do curso. Puseram o dedo no mapa e não pestanejaram ao optar por conhecer a Amazônia pelas portas do Cristalino Jungle Lodge, hotel de selva em Alta Floresta (MT) que há mais de 10 anos recebe pesquisadores e turistas amantes da natureza.

Graças a esse movimento constante de turistas e pesquisadores estrangeiros, as dependências do hotel de selva se transformaram em algo muito peculiar numa das principais cidades da fronteira de desmatamento, a começar pelo idioma oficial: o inglês. Alta Floresta ainda está entre as campeãs do desmate na Amazônia. Esboçou intenção de ser uma região agrícola no início de sua colonização, nos anos 70, pelas mãos do fundador Ariosto da Riva. Viveu a corrida pelo ouro na década seguinte e hoje, como suas vizinhas, sua economia depende basicamente da pecuária e da extração de madeira. Só que lá a experiência do Cristalino mostra que existe uma alternativa. E que os investimentos na conservação já estão mudando a cara da região.

Não há outra cidade na fronteira de desmatamento habituada a ver turistas (quanto mais estrangeiros) circulando pelas ruas. Jipes enlameados com o selo do hotel de selva também são uma novidade no norte de Mato Grosso. Mas Alta Floresta se acostumou à nova rotina desde que o Cristalino deixou de ser um rústico galpão com redes, visitado apenas por alguns observadores de aves dentro dos quase sete mil hectares de reservas particulares pertencentes à dona Vitória da Riva Carvalho, filha do fundador da cidade. Foram eles, na verdade, que se encantaram primeiro pela diversidade de avifauna e começaram a perceber que estavam em das melhores áreas para observação de aves do planeta, com quase 600 espécies registradas só na área do hotel. (Confira a lista completa de aves).

Convivência salutar

De acordo com Alexandre da Riva Carvalho, filho de dona Vitória, e que também administra o hotel, o Lodge recebe entre 500 e 600 hóspedes por ano. A maioria não costuma ficar mais do que uma semana – tempo suficiente para conseguir ver, com incrível facilidade, plantas e animais amazônicos de deixar qualquer brasileiro boquiaberto. Especialmente na época da seca, qualquer um pode se deparar com diversos tipos de primatas na beira dos rios ou dentro das trilhas, incluindo o macaco aranha de cara branca, endêmico daquela região. Meio dia é a hora das borboletas. Já foram identificadas mais de duas mil espécies lá. E as caminhadas durante a noite são um convite ao encontro com antas, que freqüentam o entorno do hotel. Isso parece ser um indicador de que a presença dos turistas, disciplinados para não incomodar os bichos durante sua estadia na floresta, não tem mesmo afastado os animais.

Essa garantia de avistagens depende de uma rotina rigorosa da gerência do hotel. E quem toca os trabalhos no Lodge é Plínio Menezes, um jovem turismólogo de 27 anos que há três largou a vida em Maringá (PR) para morar e trabalhar no Cristalino. É ele que recebe os turistas no deck do hotel, depois de navegarem por cerca de 20 minutos pelos rios Teles Pires e Cristalino e de terem percorrido em jipes os 34 quilômetros de estrada de terra desde Alta Floresta.

Ao passo que a cidade fica para trás, diminuem as expectativas de encontrar conforto e infra-estrutura no meio da floresta. E aí reside a fonte dos maiores encantamentos no Lodge. Os visitantes podem descansar em redes, acessar o acervo de uma biblioteca que guarda os relatórios de viagens de pesquisadores que já passaram pelo Lodge e livros de ornitologia, sem falar nas refeições cuidadosamente preparadas (é praxe perguntar se o visitante tem alguma restrição alimentar, pois se não puder comer ali não há outra alternativa) e nos 17 apartamentos dispostos muito próximos às matas em bangalôs. Os mais novos e mais caros, VIPs, impressionaram até o arquiteto belga Karel Raeymaeuers, acostumado à viajar o mundo atrás de roteiros ecológicos alternativos. “Eu não esperava encontrar uma estrutura dessas no meio da selva, é um luxo, muito mais do que pensei”, opina.

“O Lodge não é um hotel de luxo, mas de bom gosto”, defende Alexandre. Mas no Cristalino, a rusticidade das construções confundem os sentidos dos visitantes. “Não é luxo porque não temos ar condicionado, televisão, nem telefone ou serviço de quarto. Prezamos pelo conforto e pela sustentabilidade”, diz o sócio do empreendimento, que cita o sistema de tratamento de efluentes à base do plantio de bananeiras próximas a cada bangalô, o uso de placas de aquecimento solar e a separação do lixo como exemplos de cuidados com os impactos do próprio hotel.

A energia dos geradores só é ligada entre 12h e 14h30 e das 18h às 22h30, horários estabelecidos a partir da rotina média dos visitantes. Eles saem de manhã cedo para as trilhas, retornam para o almoço e durante a tarde costumam sair novamente para outras atividades como passeio de barco, caiaque, arvorismo, subida na torre de observação de 50 metros de altura no meio da mata, ou ainda um refrescante mergulho nas águas escuras do rio Cristalino.

Para quem tem que estar dia após dia nesse paraíso, a convivência se transforma no maior dos desafios. “É um Big Brother sem câmeras”, brinca Plínio. Ele conta que a equipe de cinco guias locais, um barman, três cozinheiras, e três camareiras tem que estar sempre muito afinada para superar o isolamento sem atritos. “Até dois meses atrás não tínhamos nem internet aqui. Eu já passei períodos totalmente alheio ao que acontece no Brasil. Não faz mais parte da rotina saber, passa a não importar mais”, lembra Plínio, que em plena flor da idade pensa basicamente em comer, vestir e fazer bem seu trabalho no hotel. “Com o tempo eu percebi que para viver não preciso de muito, as coisas acabam perdendo a necessidade”, completa.

Os cinco guias que trabalham no hotel, ex-garimpeiros e extremos conhecedores da região, se profissionalizaram com o passar dos anos. O contato com pesquisadores os fez aprender como poucos a identificar diversos animais na mata. Mas a barreira da língua ainda é um empecilho. É por isso que o Cristalino tem até lista de espera de estrangeiros interessados em serem guias voluntários, como David Sumares, que passou três semanas no Lodge. Português, ele tem mestrado em políticas ambientais pela Universidade de Coimbra. Não recebe salário, mas sim alimentação e hospedagem no Cristalino e, claro, a dura missão de acompanhar os turistas nos passeios para traduzir as informações passadas por guias como Sebastião, nascido na Barra de São Manoel, na junção dos rios Juruena e Teles Pires, que há três anos orienta os visitantes nas trilhas.

Nem tudo tem preço

Pelo conjunto da obra – contato com a natureza e muito conforto – Plínio conta que já viu pessoas com lágrimas nos olhos ao se despedirem da experiência na floresta. Os estrangeiros, então, nem querem saber quanto precisaram gastar para terem aquilo. Simplesmente não tem preço. Mas a maioria dos brasileiros, incluindo quem vive ali bem perto, na cidade de Alta Floresta, ainda sonha em um dia poder conhecer o local. E o preço, para muitos, é salgado.

Segundo Alexandre, o valor das diárias está de acordo com que é cobrado no mercado de ecoturismo mundial, e varia com a época do ano. Na alta temporada, a diária do apartamento VIP custa mil reais. Na baixa, cai para 840 reais. “Estão incluídos serviço de transfer, três refeições, os guias e os barcos”, explica Alexandre, que abre mais opções para quem é menos exigente. “O apartamento standard na baixa temporada pode ficar a 616 reais. Sai 308 por pessoa por dia. Com todos os serviços, não é tão inacessível quanto as pessoas pensam. Basta se programar”, considera Alexandre, que ainda cobra uma taxa de preservação de 50 reais a cada grupo. O dinheiro é repassado integralmente à Fundação Ecológica Cristalino (FEC), que desenvolve trabalhos de pesquisa, educação e comunicação ambiental na região. Apesar disso, ele dá um alento a quem ainda assim não pode pagar. “Estamos desenvolvendo preços para a população local na baixa estação. Será preço de custo por apartamento, e pretendemos começar em 2009”, avisa.

“O valor da natureza pode ser maior no futuro. Queremos ver isso concretizado como uma alternativa econômica para cá”, diz Alexandre. A certeza de que estão no caminho certo, mesmo cercados por pressões de desmatamento, é renovada a cada despedida no Cristalino. Um livro de visitantes registra a impressão dos privilegiados. “Cada pessoa que sai satisfeita daqui reforça nossa vontade de continuar o trabalho. É como se tivéssemos plantado uma sementinha”, avalia Plínio. Hoje ele sabe que essa sementinha já circula livre pelo mundo. Mas precisa mesmo é se espalhar pelo Brasil.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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Comentários 1

  1. Nati diz:

    Artigo esclarecedor, já compartilhei com amigos.