Terra Indígena Paumari Lago Manissuã (AM) – De manhã bem cedo, a neblina cobre tudo na região dos lagos em que os índios Paumari desenvolvem projeto de manejo sustentável de pirarucu na bacia do Rio Purus, no sul do Amazonas. Avançar em direção às aldeias no começo do dia é como navegar dentro de uma nuvem; é possível avistar apenas o contorno da floresta preservada nas margens enquanto pássaros anunciam os primeiros raios de sol e bandos de bugios gritam sem parar. Conforme o dia avança, o vapor dá lugar as cores, a luz forte faz a água azul ficar toda amarela.
É neste cenário que os Paumari desenvolvem um projeto de pesca sustentável do pirarucu. O manejo foi adotado porque a espécie, antes abundante, começou a rarear frente à pesca predatória. A venda do pirarucu sempre foi importante fonte de renda local, mas, mesmo assim, os indígenas decidiram interromper totalmente a extração tendo em vista a recuperação. “Ficamos quatro anos sem pescar e agora, com os resultados da nossa quarta contagem anual, vamos começar a primeira pesca-piloto em algumas áreas”, conta Germano Chagas Cassiano Palmari, um dos moradores envolvidos no projeto. “O problema é que, com o aumento do número de peixes, aumentam também os invasores”, completa. A ausência dos órgãos de fiscalização e a pesca ilegal são o maior desafio para a manutenção de projetos de manejo. As incursões de barcos de indústrias pesqueiras baseadas em Manaus e Belém colocam em risco todo o trabalho e tornam urgente a mobilização de órgãos públicos. Com capacidade para transportar grandes estoques, tais embarcações são capazes de esgotar a população de pirarucus de lagos inteiros em questão de dias. O problema se agrava porque tais grupos não costumam respeitar o tamanho mínimo para captura, período de defeso ou as restrições impostas pelos órgãos ambientais. Atualmente, a pesca de pirarucu no Amazonas é permitida somente em áreas de manejo ou cativeiro quando o peixe tiver pelo menos 1,5 metros de comprimento. Segundo levantamento feito para a construção do Plano de Gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, em 2010, mais de 92% dos pirarucus capturados na região eram menores que isso.
E, mesmo a pesca estando proibida nos rios de todo Amazonas e sendo limitada, é fácil encontrar o prato no cardápio de restaurantes e feiras dos principais centros urbanos do estado.
O pirarucu é um peixe que pode chegar a centenas de quilos e medir até três metros. Os mais velhos contam que antigamente era comum ver centenas de peixes enormes subindo a superfície para respirar nos lagos. “Era uma fartura. Vinham os barcos e levavam toneladas de pirarucu, toneladas mesmo. E não era só pirarucu, tinha de tudo. Era tão rico que, na areia das praias, os pescadores brincavam de fazer guerra de ovos de tracajá”, conta Luís Araújo da Silva Palmari, um dos mais velhos da aldeia. O tracajá é uma tartaruga amazônica cuja carne é bastante apreciada nas cidades do estado. Assim como o pirarucu, ela não é mais tão comum como era antigamente na região.
Monitoramento
Conhecidos como “povo da água” por terem uma relação bastante intensa com os rios, os Paumari fazem o controle da população dos lagos contando quantas vezes adultos e filhotes de pirarucu sobem para respirar. Criado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, o método chegou aos lagos do Médio Purus graças a um intercâmbio entre diferentes aldeias, com índios ensinando para índios como fazer o levantamento, articulação feita com o apoio da Operação Amazônia Nativa (Opan) e do Instituto Piagaçu.
As duas organizações têm projetos baseados na capacitação dos moradores e no fortalecimento de iniciativas desenvolvidas pelas próprias comunidades. “Vemos com preocupação as invasões e temos cobrado medidas de fiscalização por parte do governo”, diz Gustavo Silveira, indigenista da Opan. Ele participou da criação do Plano de Gestão Territorial dos Paumari do Rio Tapauá e, por meio do Projeto Aldeias, têm desenvolvido com os moradores atividades de etnomapeamento do território e de seus usos, uma forma de fortalecer a conservação ambiental, a gestão dos recursos naturais e a organização dos próprios indígenas.
Além do manejo de pirarucu, outros projetos começam a surgir envolvendo as aldeias. Desde 2010, o Instituto Piagaçu tenta desenvolver um trabalho de pesca sustentável e comercialização de peixes ornamentais, variedades que podem alcançar alto valor no exterior, especialmente na Ásia. O trabalho já resultou até na identificação de novas espécies. “Precisamos ter continuidade e a invasão de pesqueiros é uma ameaça grave que merece atenção”, diz o biólogo Felipe Rossoni, do Piagaçu (foto ao lado).
Sob a ameaça de ver os resultados do manejo saqueados, os Paumari têm cobrado mais apoio e participação da Fundação Nacional do Índio (Funai), bem como ações de fiscalização por parte dos órgãos ambientais responsáveis. A Funai passou por transformações recentes e têm procurado colaborar, mas a estrutura local está bastante aquém da que seria adequada para atender às necessidades de todos os povos indígenas da região. A base responsável pela região, visitada pela reportagem, carece de funcionários, recursos e embarcações para atender de maneira adequada todas as aldeias das diferentes tribos. A estrutura do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também é limitada.
Enquanto o estado não se faz presente, os Paumari se revezam percorrendo os lagos e monitorando a entrada dos pesqueiros para minimizar o problema. Com rádios, acionam as autoridades quando acontecem invasões. A distância e o isolamento prejudicam a estratégia. As aldeias do Lago Manissuã e do Lago Paricá, no Rio Tapauá, e as aldeias do Rio Cuniuá ficam a mais de um dia de distância de barco de Lábrea, a cidade mais próxima, onde está a sede da Funai.
Violência
Não é de hoje que os índios Paumari têm problemas com invasões de terras. Assim como os demais índios do Médio Purus, eles têm sido vítimas de violências constantes por parte das frentes extrativistas desde a metade do século XIX. A população original diminuiu consideravelmente, impactada pela chegada de seringueiros, e não são poucos os índios mais velhos com histórias de exploração por parte de intermediários que compravam peixes, os chamados “regatões”. O contato e as trocas comerciais estão ligados não só a epidemias que dizimaram aldeias inteiras, como também a um processo de aculturamento na formação de novos arranjos sociais.
O sucesso do projeto de manejo depende da presença permanente do estado e de melhorias no monitoramento da pesca ilegal, mais do que de ações de fiscalização pontuais. Enquanto isso não acontece, os Paumari tentam proteger a população de pirarucus ainda incipiente. “O número de invasores têm aumentado. Fazemos a vigilância, mas nem sempre dá certo.
Alguns índios sofreram até ameaças de fortes ao reclamarem com os pescadores”, conta Germano, o representante da aldeia. Entre as reivindicações dos Paumari estão o estabelecimento de um posto de vigilância permanente na Foz do Tapauá, mais próximo das aldeias, e de um flutuante da Funai na Boca do Rio Cuniuá, para apoio nas fiscalizações.
“Temos um plano de gestão e queremos formar um exemplo de que é possível obter resultados sem destruir a natureza.”, diz o Paumari.
*Esta reportagem é parte da Expedição Cicloamazônia, projeto de Daniel Santini, Marcelo Assumpção e Valdinei Calvento, apoiado pelo ((o)) eco. Leia mais em cicloamazônia.org
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