Puerto Maldonado, Peru – Quando Beatriz Yabar Álvarez e seu marido chegaram ao penhasco sombrio com vista para o Rio Tambopata, mal havia uma trilha lamacenta entre seu novo lar e o pequeno porto da mata do município de Puerto Maldonado.
Na ocasião, ela não podia saber que o futuro traria uma rodovia polêmica, desenvolvimento e destruição àquele canto remoto do país, onde não havia eletricidade ou telefones, e onde os rios serviam de estradas.
Seis décadas se passaram e ela criou nove filhos na fazenda, onde a família mantinha porcos, gado, galinhas e árvores frutíferas. Seu filho caçula, Percy Balarezo, se lembra de andar por uma hora para chegar à escola localizada no município de Puerto Maldonado, seguindo por uma trilha estreita.
Puerto Maldonado ainda estava na fronteira da Amazônia peruana, conectado à divisa com o Brasil numa direção e com o resto do Peru na outra apenas por uma estrada de terra. Na estação seca, até uma breve viagem deixava os viajantes cobertos por uma poeira avermelhada. Na estação chuvosa, a viagem até Cusco podia levar uma semana ou duas, dependendo da frequência com que o caminhão ficasse atolado ou que quedas de barreiras bloqueassem a estrada.
Isso mudou em 2006, quando trabalhadores começaram a asfaltar a estrada através de Madre de Dios até a divisa com o Brasil. Mas enquanto as autoridades governamentais enxergavam o projeto como uma oportunidade de ouro para a economia, os ambientalistas viam a iniciativa como um ataque à verdejante floresta tropical de um dos lugares mais biodiversos da Terra.
Ambos os pontos de vista se tornaram realidade, em uma novela que continua a ter novos e variados capítulos em toda a Amazônia. A Rodovia Interoceânica, que atravessa o continente de um lado a outro, oferece uma visão do que poderia estar à espera no futuro para outras partes da bacia da Amazônia peruana.
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Armadilhas
A pavimentação da Rodovia Interoceânica colocou uma base de asfalto sob o antigo sonho de uma rota que levaria viajantes e mercadorias o ano todo por sobre a cordilheira dos Andes e através da bacia Amazônica, entre a costa do Pacífico do Peru e os portos do Brasil no lado Atlântico.
Foi também o primeiro de uma série de projetos no Peru que fazem parte da Iniciativa para Integração da Infraestrutura Sul-Americana, também conhecido como IIRSA, que inclui mais de 500 projetos ligados a transporte, energia e infraestrutura de comunicações por toda a América do Sul.
O portfólio é hoje gerenciado pela UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), que escolheu 31 projetos num valor de cerca de US$13 bilhões como sendo prioritários entre 2012 e 2022.
Três rotas de transporte estão em planejamento para o Peru – uma conectando os portos da região norte ao Brasil, outra cruzando o centro do país e a agora asfaltada Rodovia Interoceânica, através de Madre de Dios.
Mesmo sendo a mais complicada, devido ao terreno andino e às terras baixas e pantanosas da Amazônia, para construir a Interoceânica a rota sul foi a mais direta, porque significava apenas a construção e pavimentação da estrada. As outras duas requereriam uma combinação de vias terrestres e aquáticas conhecidas como “hidrovias” que, além disso, envolvem a drenagem e a engenharia de rios, além da construção de portos.
A IIRSA foi concebida como uma maneira de “integrar” as cidades sul-americanas que estavam separadas por barreiras geográficas, incluindo a cordilheira dos Andes, o rio Amazonas e a floresta em si, além da enorme área pantaneira do Pantanal na divisa entre a Bolívia e o Brasil, disse Rosario Santa Gadea, do centro de pesquisas da Universidade do Pacífico em Lima.
“A ideia era de conectar o interior (com os centros populacionais), e isso significa atravessar a Amazônia”, disse Santa Gadea, que supervisionou os projetos da IIRSA para o Ministério das Relações Exteriores do Peru durante a última década. O país, no entanto, possuía uma agenda adicional. “A primeira coisa era integrar o Peru com o Peru,” disse ela.
De fato, as três rotas remetem a propostas de conexões por ferrovia e por estradas atravessando os Andes até o Amazonas que existem há meio século ou mais.
A rota norte da IIRSA consiste de uma estrada que parte do porto de Paita na costa norte do Peru, através das montanhas até Yurimaguas, onde uma hidrovia faria a ligação com o rio Amazonas próximo a Iquitos, proporcionando uma entrada para o Brasil, em especial, para os centros de comércio e manufatura de Manaus.
O projeto central da IIRSA trata de uma estrada desde a costa até Pucallpa, onde uma hidrovia faria a ligação restante para Iquitos, enquanto a estrada em si prosseguiria para Cruzeiro do Sul no estado do Acre a oeste. De lá, a estrada ainda prosseguiria para Rio Branco, a capital do estado, da mesma forma que a Interoceânica faria, levando alguns observadores a duvidar se haveria tráfego suficiente para justificar a construção de duas rotas que consumiriam quase US$1 milhão por quilometro.
Um estudo feito pelo centro de pesquisas GRADE (Grupo de Análisis para el Desarrollo) determinou que o projeto central da IIRSA somente seria economicamente eficiente caso cerca de um terço do tráfego que usasse a Rodovia Interoceânica do sul optasse por usar a rota central mais curta para a costa peruana. Mesmo assim, dizem seus autores, o projeto seria um investimento de risco.
A complexidade da engenharia necessária para se planejar e construir hidrovias e portos desacelerou os projetos IIRSA do norte e central. A estrada para Cruzeiro do Sul foi paralisada principalmente por questões ambientais – a rota contornaria a área protegida Sierra del Divisor e uma reserva onde vivem povos indígenas de hábitos nômades, que evitam contato com o mundo externo.
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De ameaça à oportunidade
Olhando para a sua vista do rio Tambopata, nos arredores de Puerto Maldonado, Víctor Zambrano encara a Rodovia Interoceânica como uma faca de dois gumes.
“Era um desejo antigo,” ele diz, sobre a estrada agora asfaltada. “Sempre estivemos isolados e queríamos essa estrada. Morar aqui era como estar noutro país.”
No entanto, ele está preocupado com a urbanização rápida e a invasão da mineração de ouro sem limites ou fiscalização na Reserva Tambopata, onde ele lidera um comitê de gerenciamento, formado por governo e comunidade.
O asfaltamento “deveria ter sido acompanhado de um plano de desenvolvimento para as pessoas que moram ao longo da rota,” disse Zambrano, cujos pais foram dos primeiros a colonizarem a área.
Dessa forma, ele e seus vizinhos resolveram tratar da questão por iniciativa própria. Boa parte desse grupo é formada por filhos dos primeiros colonos que retonaram às terras de suas famílias, como é o próprio caso de Zambrano e de Percy Balarezo. Embora temessem que o aumento da migração e o consequente aumento da área urbana terminasse por absorver suas terras, também encaravam a rodovia como uma oportunidade. Uma estrada na qual se podia transitar o ano todo, tinha o potencial de trazer outro tipo de turista a Madre de Dios – não apenas os estrangeiros abastados que pousam nos aeroportos para serem rapidamente levados a pousadas remotas na selva sem gastar tempo ou dinheiro em Puerto Maldonado, mas também visitantes de posses mais modestas, que talvez venham a negócio por alguns dias e que gostariam de desfrutar um pouco da floresta tropical.
Com dinheiro de um fundo montado para aliviar os impactos da Rodovia Interoceânica, eles formaram a Associação de Operadores de Agroecoturismo do Baixo Tambopata e o governo local reconheceu o trecho de terreno de 11 quilômetros de extensão como o primeiro corredor de ecoturismo da área.
O projeto de mitigação foi um esforço tardio iniciado pela Odebrecht e pela Conirsa, as empresas construtoras da estrada, para dar apoio à conservação e desenvolvimento sustentável local ao longo da estrada, com ajuda da entidade Conservation International e da organização peruana ProNaturaleza.
Percy Balarezo limpou trilhas e construiu algumas cabanas rusticas no terreno da sua família. Seus hóspedes podem fazer trilhas no mato ou se balançarem em redes e ficar de olho nos bandos de macacos que frequentemente aparecem para passar a noite em um bambuzal a poucos metros dali.
Zambrano com muito esforço reflorestou a propriedade da sua família – que grileiros haviam transformado em pasto para gado – com espécies nativas, cuidando delas até que suas terras estivessem aptas a serem designadas como a primeira área privada de conservação ambiental de Madre de Dios a ser oficialmente reconhecida como tal.
Pierina Zlater, filha de imigrantes russos e brasileiros que se assentaram ao longo do rio, voltou às terras de sua família depois de um divórcio e montou uma maloca, uma construção aberta e elevada de pau-a-pique, típica de grupos indígenas amazonenses – onde ela morou até poder construir uma cabana.
Agora ela, sua filha e diversas outras pessoas vivem em Kapievi, que ela chama de “ecovila”, mas que possui um ar de comuna dos anos 60 transportada para a selva, onde os visitantes adormecem ao som de cigarras e saúdam o nascer do dia com ioga e granola antes de seguirem morro acima para outro terreno adquirido por Zlater, onde ela oferece um curso de permacultura (uma técnica de utilizar a terra de maneira sustentável).
Numa região rica em termos de diversidade biológica, mas atormentada pelo crescimento não planejado, a dedicação dos habitantes transformou o Corredor Turístico do Baixo Tambopata de Isuyama numa zona de amortecimento e, também, uma região empreendedora, diz o operador de ecoturismo Kurt Holle, do Rainforest Expeditions, que assessorou o projeto.
Para Zambrano, que já transferiu legalmente a área de conservação à sua filha adolescente, o projeto é um compromisso com o futuro – seu “legado”, como ele definiu. Para Balarezo, é o retorno às terras onde sua família fincou raízes. “Quando estou na mata,” disse ele, “não quero ir embora.”
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Infraestrutura versus conservação
Os pontos coloridos no mapa do ecólogo tropical Greg Asner contam uma história de desmatamento que tem seguido o caminho asfaltado da Rodovia Interoceânica através da região de Madre de Dios na Amazônia peruana.
Asner se preocupa com o desmatamento não somente porque significa a perda de vegetação – e, possivelmente, de espécies da fauna – de uma das áreas mais biologicamente diversas do mundo, mas também porque vê um padrão que reflete uma floresta que está sendo derrubada para formar segmentos cada vez menores – o que os ecólogos chamam de fragmentação.
Florestas fragmentadas possuem bordas mais expostas que ressecam mais rapidamente e, portanto, são mais suscetíveis a incêndios quando as queimadas feitas por fazendeiros para limpar uma área de pasto ou plantio ficam fora de controle pela ação dos ventos.
Duas intensas estações de seca que propiciaram incêndios, uma em 2005 e outra em 2010, mostraram o perigo, especialmente se considerarmos que as mudanças climáticas podem significar menos chuvas. Mesmo hoje, depois de três anos após a última grande seca, vistos do ar, o dossel das árvores de algumas regiões de Ucayali e Madre de Dios, antes verdes, ganhou uma coloração manchada marrom-acinzentada, conta Asner, que têm sobrevoado a Amazônia peruana com instrumentos que mapeiam a biodiversidade e os estoques de carbono.
Na medida em que as mudanças climáticas forçam a vida selvagem e a vegetação a mudarem para áreas mais frescas ou úmidas, as estradas também podem ser barreiras que aceleram a extinção das espécies que não conseguem se adaptar, dizem os ecólogos.
Rosario Santa Gadea, da Universidade Pacific Research Center em Lima, que supervisionou a Iniciativa para o projeto de Integração da Infraestrutura Regional da Sul-Americana (IIRSA) do Peru, reconhece as preocupações dos ambientalistas, mas diz que estes não podem ficar no caminho da construção de uma infraestrutura de integração.
Ela cita duas visões opostas para o futuro da Amazônia peruana. A primeira dá ênfase à conservação da floresta e baseia o desenvolvimento econômico na compensação pelos serviços ambientais proporcionados pela floresta, tais como água, recursos renováveis, biodiversidade e turismo. O segundo enfoque centraliza seus argumentos em torno do desenvolvimento de uma infraestrutura que conecte os municípios Amazônicos com os mercados de porte seja nas terras altas ou na costa.
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A segunda opção ganhou impulso com a publicação no início deste ano de um estudo feito por Richard Webb, ex-presidente do banco Central do Peru, que argumenta que a construção e pavimentação de estradas tem feito mais do que qualquer outra providência para reduzir a pobreza no Peru nas últimas duas décadas.
Santa Gadea admite que planejar melhor e suavizar os impactos das estradas são providências necessárias, “Mas não se pode impedir a interconectividade por isso”, diz ela. “Fazer nada até que tudo esteja no lugar, tem como resultado certo que nada será feito.
A lei peruana exige que cada região projete e implemente seus planos de zoneamento e uso da terra que regulam os tipos de atividades econômicas permitidas em cada tipo de solo, mas o processo é desajeitado e têm progredido com muita lentidão, segundo Manuel Glave, diretor da GRADE e um dos autores do estudo de custo-benefício da estrada proposta para ligar Pucallpa a Cruzeiro do Sul.
Planejamento, melhores informações, fiscalização efetiva do cumprimento das leis e relatórios estratégicos de impactos ambientais que avaliem os efeitos combinados de múltiplos projetos de desenvolvimento são cruciais, na medida em que a população da região Amazônica cresce e as atividades econômicas expandem, disse.
Pesquisadores que têm estudado a derrubada da floresta para atividades agropecuárias ao longo da Rodovia Interoceânica em Madre de Dios e no estado brasileiro vizinho do Acre também recomendam que o governo adote medidas para limitar a quantidade de terras que os moradores locais podem desmatar, seja através da fiscalização das leis ou por meios indiretos, tais como restringir a construção de estradas secundárias e disponibilizar crédito somente para atividades econômicas que não resultem em mais desmatamento.
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