Itatiaia (1937) e Serra dos Órgãos (1939), dois dos três primeiros parques nacionais do Brasil, foram criados no estado do Rio de Janeiro não por acaso. Por um lado, havia, claro, a proximidade com a capital federal, o que conferia maior visibilidade ao ato. Mas, por outro, demonstrava o reconhecimento não só da importância ambiental e cênica daqueles maciços extraordinários, como também de que eles já eram usados por um número crescente de pessoas para a prática de atividades ao ar livre, como caminhadas e escaladas em rocha. O próprio presidente Getúlio Vargas, que os criou, era um frequentador assíduo da área que viria a ser incluída no Parna Serra dos Órgãos, com seus célebres passeios a cavalo até a “Gruta do Presidente” e além. As grandes somas despendidas na década seguinte na implantação de trilhas e de uma exemplar rede de abrigos de montanha nestes parques reforçam esta percepção.
Estas duas áreas protegidas pioneiras espelhavam no Brasil, portanto, os ideais do pai do conceito de parques nacionais, o montanhista, naturalista e escritor norte-americano John Muir, fundador da grande organização conservacionista Sierra Club e inspirador da criação dos parques nacionais de Yosemite e Sequoia, dentre outros. Para ele, parques deste tipo visavam tanto à preservação de largas porções intactas dos ecossistemas nativos e das paisagens naturais notáveis nelas contidas, quanto à oportunidade de desfrute destes ambientes pelas pessoas de forma responsável. “Todos precisam da beleza na mesma medida em que precisam de pão, locais de lazer e de prece, onde a Natureza possa curar, alegrar e fortalecer corpo e mente”, escreveu ele em defesa de suas propostas.
No Brasil, o primeiro a advogar a criação de tais áreas protegidas foi o engenheiro André Rebouças, ainda no século XIX, e aos dois já mencionados seguiram-se outros parques nacionais e, mais tarde, também parques estaduais e municipais, mostrando preocupação com o tema comum às três esferas federativas. A preocupação tornou-se obrigação quando a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, incumbiu expressamente ao Poder Público, dentre outras tarefas, a missão de criar espaços territoriais protegidos, quando necessário, para assegurar a todos “um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Já a Lei Federal nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), regulamentou a matéria, definindo com precisão as diversas categorias de unidades de conservação que integrariam este sistema e conferindo aos parques nacionais – e, por extensão, também aos estaduais e naturais municipais – os exatos objetivos preconizados por Muir: conservação da natureza e uso público.
Pioneiros
“o processo de criação de novos parques nacionais e, depois, de sua gestão, foi muitas vezes conduzido por pesquisadores com grande embasamento teórico, mas escassa vivência prática, que não raro viam com suspeita o uso público, enxergando em cada visitante um vândalo em potencial…”
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O primeiro parque estadual do Rio de Janeiro foi o do Desengano, na região serrana norte do estado, com 22.400 hectares, criado em 13 de abril de 1970 pelo então governador, Geremias Fontes, em terras dos municípios de Santa Maria Madalena, Campos dos Goytacazes e São Fidélis. De lá para cá, muitos outros parques foram criados e ampliados e, hoje, a área compreendida em parques e reservas estaduais do Rio de Janeiro é de cerca de 210.000 ha, ou 4,8% da área total do estado.
Após Itatiaia e Serra dos Órgãos, o processo de criação de novos parques nacionais e, depois, de sua gestão, foi muitas vezes conduzido por pesquisadores com grande embasamento teórico, mas escassa vivência prática, que não raro viam com suspeita o uso público, enxergando em cada visitante um vândalo em potencial, capaz de ameaçar com sua simples presença a sobrevivência das preciosas formas de vida neles abrigadas. Não surpreendentemente, daí decorreu uma política de visitação, ou melhor, de não-visitação, que foi apelidada por alguns de política dos “parques-fortaleza”, que ignorava por completo uma das duas principais funções destas áreas que é precisamente a (re)aproximação do homem, especialmente os habitantes das grandes e neuróticas cidades modernas, com a natureza selvagem da qual todos procedemos. Esta política federal, como seria de se esperar, se infiltrou insidiosamente nos órgãos ambientais estaduais, e muitos passaram também a gerir parques como se estes fossem reservas biológicas, unidades de conservação ultrarrestritivas, que só admitem a visitação com fins de pesquisa científica ou com caráter pedagógico. Em certos casos, nem isso era o bastante: segundo testemunhas, uma ex-chefe do Parque Estadual do Desengano teria declarado que, por ela, “até os pesquisadores seriam mantidos afastados de “sua” unidade”!
Esta visão estreita, demófoba, previsivelmente só gerou ressentimentos. De uma hora para a outra, moradores locais se viram privados do acesso a áreas de lazer que seus pais e avós frequentavam há décadas. Áreas designadas como reservas, ou mesmo parques, ficaram fora de qualquer possibilidade de geração de renda, empregos e pequenos negócios locais, o que gerou a antipatia generalizada dos prefeitos, que passaram a vê-las como economicamente mortas. Montanhistas e outros usuários habituais foram de uma hora para outra transformados em foras-da-lei. Um caso emblemático ocorreu quando o acesso às montanhas da parte alta do Parque Nacional da Serra dos Órgãos foi proibido por quase 13 anos, e todas as (poucas) caminhadas e escaladas que ocorreram ali no período foram, assim, clandestinas. No entanto, poucos anos antes estes mesmos montanhistas haviam se mobilizado intensamente, através da União Brasileira de Excursionismo (UBE), para que a Fazenda Garrafão, onde estavam situados nada menos do que o Dedo de Deus e outras imponentes agulhas graníticas ao seu redor, fosse incorporada ao parque, afastando o risco de loteamentos no local e protegendo o seu mais famoso símbolo. Foi, portanto, com compreensível indignação que tomaram conhecimento dos “interditos proibitórios de frequência” que os afastaram por mais de uma década, sem razão plausível, daquilo que tanto lutaram para preservar!
Efeitos colaterais
“Devido à notória deficiência de verbas, funcionários e fiscalização efetiva, nos “parques-fortaleza” a parte da fortaleza é reservada apenas para os visitantes regulares, para as pessoas de bem.”
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Tal política constritiva, que surpreendentemente ainda encontra alguns poucos defensores empedernidos, produziu efeitos tremendamente nocivos e até contraditórios com os objetivos que pretende alcançar. Para começar, pisoteia em uma das máximas do conservacionismo, sintetizada no slogan “Conhecer para preservar”. A essência deste lema é que ninguém se sente compelido a preservar, ou dar suporte à preservação, de algo que não conhece, e a partir do momento em que os visitantes, sejam eles habitantes locais ou turistas de terras distantes, são considerados personas non gratas e mantidos afastados de tais áreas – salvo em escassos pontos preestabelecidos de alguns parques –, como esperar que se preocupem caso alguma ameaça surja?
Devido à notória deficiência de verbas, funcionários e fiscalização efetiva, nos “parques-fortaleza” a parte da fortaleza é reservada apenas para os visitantes regulares, para as pessoas de bem. Pois para caçadores, palmiteiros, passarinheiros e outros criminosos assemelhados, áreas assim “geridas” se convertem em verdadeiros parques de diversão, onde podem delinquir com mais tranquilidade, pois não serão vistos e denunciados por outro visitante. Isso ficou bem patente no caso mencionado acima, do Parna Serra dos Órgãos, em que os poucos montanhistas que entraram na clandestinidade durante aqueles 13 longos anos muitas vezes queriam, mas não podiam, denunciar a localização de bem providos ranchos de caçadores, sob pena de serem punidos pelo “crime” de caminhar por trilhas que haviam sido abertas por eles próprios nos saudosos tempos do antigo diretor Gil Sobral Pinto, que recepcionava os visitantes com inigualável atenção e carinho.
Ademais, essa postura contraria ostensivamente o SNUC. Seu artigo 11º não poderia ser mais claro nesse sentido: “O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.” (Grifo nosso). Não raro, aqueles que advogam parques sem ampla visitação, salvo em poucas e limitadas “áreas de sacrifício” (no peculiar jargão de tais técnicos), omitem da sua argumentação a parte acima destacada, o que só pode ser entendido como um deliberado exercício de má-fé intelectual.
Falsa dicotomia
“A expressão “área de sacrifício” pode inclusive levar os incautos a acreditar na existência de um falso dilema: o de que só podemos ter preservação ou visitação”
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A expressão “área de sacrifício” pode inclusive levar os incautos a acreditar na existência de um falso dilema: o de que só podemos ter preservação ou visitação, quando a verdadeira tarefa do gestor de um parque público é assegurar que haja preservação e visitação para atender a todos os aspectos da lei e, sobretudo, porque assim, a despeito da evidente complexidade inerente ao trato com um público diversificado, obterá, no médio e longo prazo, mais conservação, e não menos, como alegado.
Não é de admirar, por conseguinte, que a perspectiva de criação de um parque nacional ou estadual qualquer sofresse pesada pressão contrária dos prefeitos municipais, que enxergavam no gesto, às vezes com razão, a imobilização completa de largas porções do território municipal para atividades produtivas, mesmo as menos impactantes. Quando em 1992 foi decretada a criação da Reserva Ecológica da Juatinga, no município de Paraty, extremo sul do Rio de Janeiro, o prefeito à época ligou para o então presidente do Instituto Estadual de Florestas, Axel Grael, que havia feito o encaminhamento da proposta, para perguntar o que ele tinha contra a cidade!
Felizmente no Rio de Janeiro, na gestão de Carlos Minc à frente da Secretaria de Estado do Ambiente, subverteu-se por completo esta visão equivocada, e foi estabelecida uma política de visitação para os parques estaduais fluminenses que enxerga as pessoas, em princípio, como potenciais aliados da causa da preservação de nossa exuberante mata atlântica, e não como inimigos a serem afastados, perseguidos e penalizados. É, portanto, uma postura demófila, que convida as pessoas a visitarem, de forma ordenada e responsável, consoante o disposto nos respectivos planos de manejo, magníficos parques como Desengano, Três Picos, Ilha Grande, Costa do Sol, Pedra Selada e tantos outros. Nem mesmo a inexistência de um plano de manejo pode servir como desculpa: da mesma forma que o atendimento aos requisitos da preservação não pode ficar suspenso por anos, décadas mesmo, até que este instrumento seja enfim elaborado, da mesma forma a população não pode ficar alijada dos seus vastos espaços naturais protegidos por igual extensão de tempo.Desta forma, acreditamos firmemente que pelo menos uma parcela destes visitantes, caso tenha tido uma experiência positiva de acordo com o seu interesse e a sua aptidão física, levantará a voz em defesa dos parques visitados, exigindo mais verbas, mais estrutura e mais fiscalização contra os verdadeiros criminosos. Na mesma linha, as pessoas que desenvolverem um vínculo afetivo com parques desfrutados através da experiência direta, serão aquelas que oferecerão o necessário anteparo político para barrar propostas legislativas que visem a reduzi-los, extingui-los ou “flexibilizar” suas regras de proteção para atender a poderosos interesses econômicos sempre à espreita.
Em contraponto, o que esperar de visitantes escorraçados da entrada de uma área que deveria ser um bem de uso comum do povo, ou então que tiveram seu ingresso condicionado à dispendiosa contratação compulsória de alguém que lhes vigiará os passos em poucas “áreas de sacrifício” como os de uma criança travessa e inconsequente?
Bem-vindos
A política de visitação em áreas protegidas praticada no Rio de Janeiro a partir de 2007 se beneficiou, é certo, do espírito aberto e libertário que é marca do carioca. E o Decreto Estadual nº 42.483, de 27 de maio de 2010, que “estabelece diretrizes para o uso público nos parques estaduais administrados pelo INEA”, se constitui na retaguarda legal de uma mudança paradigmática que visa resgatar não apenas o espírito da máxima “Conhecer para preservar” como, ainda, como vimos, o disposto no próprio texto legal que rege com propriedade a matéria.Para tanto, fizemos amplo levantamento dos atrativos consolidados e potenciais de cada parque estadual; identificamos os segmentos de visitantes atuais e possíveis (moradores do entorno, esportistas de aventura, turistas de aventura, turistas convencionais, grupos religiosos, grupos escolares, artistas etc.); e traçamos planos de ação específicos voltados para cada um. Seria um erro grave tratar interesses tão diversos de forma homogênea, e para um visitante a sensação de ter tido uma experiência satisfatória está diretamente vinculada à disponibilidade de programas que atendam a expectativas tão diferenciadas quanto um piquenique em família ou enfrentar um rio turbulento de caiaque, passando pelo exercício de sua fé em contato direto com a natureza ou, ainda, simplesmente, a possibilidade de tirar fotografias de plantas, animais e paisagens bonitas em paz, sem ser tratado como um pirata da alma daquela unidade.
Milhões de reais foram gastos na implantação ou melhoria de trilhas, mirantes, centros de visitantes, placas, folheteria e, ainda, na confecção dos primeiros guias de trilhas bilíngues impressos e em mídias digitais dos parques estaduais do Rio. Para ordenar e monitorar esta nova realidade, bem como para prevenir e combater com eficiência os incêndios florestais, foi criado no Instituto Estadual do Ambiente (INEA) um Serviço de Guarda-Parques integrado, por ora, por 280 profissionais muito bem treinados e equipados, que são a interface mais visível da administração da unidade com a sociedade. Para reprimir os verdadeiros criminosos e oferecer uma melhor condição de segurança aos visitantes, foi desenvolvido, em parceria com a Secretaria de Estado de Segurança, o programa das Unidades de Polícia Ambiental (UPAm), destacamentos da polícia militar florestal que têm por atribuição precípua o cuidado com as unidades de conservação de proteção integral estaduais e suas zonas de amortecimento. E planos de manejo realistas e compatíveis com a categoria “parque” (e não “reserva biológica”), oferecem um roteiro conciso e objetivo para que os gestores de tais áreas tenham como lidar adequadamente com o desafiante leque de problemas que o mundo real nos impõe.
Assim encarada, a visitação deixa de ser considerada como um tema periférico e incômodo para assumir papel estratégico na sensibilização de parcelas crescentes da população, de forma lúdica e prazerosa, quanto à necessidade de se preservar a natureza. Talvez esta seja a única chance realista de sobrevivência do SNUC no sombrio ambiente legislativo dos dias atuais.
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