Reportagens

Caatinga: o desafio de criar uma reserva privada

Não é fácil ser dono de uma RPPN no país. Faltam apoios técnicos para quem resolveu proteger um pedaço de terra, abundam burocracia.

Observatório das UCs ·
18 de março de 2015 · 10 anos atrás

Entrada da RPPN Almirante Renato de Miranda Monteiro. Foto: Cortesia
Entrada da RPPN Almirante Renato de Miranda Monteiro. Foto: Cortesia

A RPPN se chama Almirante Renato de Miranda Monteiro em homenagem a um amigo dos tempos de Forças Armadas. Francisco de Sales Saboia, 68 anos, a descreve como um oásis de cobertura vegetal em plena Caatinga. Foi com o propósito de mantê-lo assim, que esse cearense natural do município de Novo Oriente, a 400 km de Fortaleza, resolveu criar a sua própria área protegida.

Nos anos 50, ele viu grande parte das terras de sua família ser degradada pelos arrendamentos e mau uso do solo. Em seguida,passou mais de cinco décadas distante de sua terra natal. Até que Saboia resolveu, nos anos 2000, comprar na região uma propriedade de 650 hectares para transformá-la em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Até agora, conseguiu que 219 hectares fossem inspecionados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e reconhecidos como RPPN.

“Sou do interior do Ceará e lembro que já de criança via as matas desaparecendo. O verde agrega muitos valores e atrai espécies de vida”, disse Saboia ao Blog do Observatório de UCs.

O corretor de imóveis fala com entusiasmo de seu projeto, porém, sem esconder a decepção e sentimento de desamparo por não encontrar apoio técnico. Sua esperança é um dia receber em sua reserva a visita de ambientalistas que o ajudem, fornecendo técnicas de preservação de espécies de flora e fauna.

Baixo IDH

A reserva de Saboia fica na localidade chamada São Domingos, a18 km do município de Novo Oriente, divisa com o Piauí. O acesso é pela rodovia estadual CE-187, conhecida como Estrada da Confiança, no trecho Novo Oriente-Quiterionópolis.

A população de Novo Oriente não passa de 30 mil habitantes. A região tem o predomínio do cultivo de milho e feijão. A RPPN de Saboia é rodeada por plantações de milho e terras degradadas. “Desmatam até margem de rio e na agricultura usam muito agrotóxico”, conta.

Encravado no sertão cearense e em plena Caatinga, Novo Oriente é o retrato dos baixos indicadores sociais comuns no Nordeste. O município tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil: está na posição 4.029 no ranking nacional de 5.525 municípios, e fica também na rabeira dos municípios do Ceará, na posição 118 de um total de 184 municípios.

Bioma desprotegido

A Caatinga cobre 11% do território nacional e engloba os estados do Nordeste – Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Sergipe, além de uma porção do norte de Minas Gerais. Ocupa uma área de quase 900 mil km² onde vivem cerca de 27 milhões de pessoas, a maioria dependente de exploração dos recursos naturais para sobreviver. O desmatamento chega a 46% da área do bioma, segundo dados do MMA. No Ceará, 92% do território do estado é Caatinga.

Segundo a Associação Caatinga,  da sua área total, 7,8% da Caatinga são protegidos por Unidades de Conservação (UCs), mas apenas 1,3% por UCs de proteção integral.

O bioma abriga 178 espécies de mamíferos, 591 aves, 177 répteis, 79 espécies anfíbios, 241 peixes e 221 abelhas. É uma região rica em espécies endêmicas, isto é, que só ocorrem naquela região.

Burocracia e ameaças

A RPPN de Saboia reflete as dificuldades comuns aos proprietários de reservas particulares no Nordeste. No Ceará, a RPPN Almirante Renato é uma das 32 reservas particulares que somadas representam 14,8 mil hectares. Em todo o país, segundo dados do ICMBio, existem 647 RPPN que juntas somam uma área em torno de 512 mil hectares.

As RPPN são importantes ferramentas na formação de corredores ecológicos para unir fragmentos florestais que permitem a circulação de animais. A documentação não é simples de ser obtida e passa por um complexo sistema de regulamentação fundiária.

“É preciso estar com a propriedade livre de qualquer ônus e não pode estar hipotecada no banco. Na região, em geral as propriedades estão hipotecadas no Banco do Nordeste ou Banco do Brasil. Se você não tiver o conhecimento de ordem pessoal com alguma autoridade local é quase impossível”, explicou Saboia.

 O maior problema são os caçadores que entram armados para matar animais como o jacu e o tatu-peba. Derrubam árvores para roubar a madeira da aroeira, ipê e também exploram o mel.

“Toda hora recebemos ameaças diretas e verbais dos caçadores. A polícia militar ambiental às vezes nos dá apoio. Estamos há 15 anos nesta luta. Não somos bem vistos na região porque denunciamos quem degrada o meio ambiente”, diz Saboia.

Educação ambiental

No projeto que carinhosamente denomina de “Caboclinho”, Saboia abre a Almirante Renato para visitantes. Por ano, cerca de 300 alunos de escolas municipais a visitam, um número ainda pequeno, mas que entusiasma Saboia: “A RPPN é aberta para quem quiser visitar desde que com respeito. Faço tudo com recursos próprios”. Para ele, a maior ajuda que poderia receber seria a presença de ambientalistas. “Temos uma casa de apoio para receber visitantes e precisamos de orientação para a preservação das espécies”.

Desde junho de 2013, o Ceará passou a ter uma legislação específica para a criação de RPPNs através do Decreto de nº 31.255. A lei estabelece que qualquer proprietário de imóvel, rural ou urbano, poderá pleitear voluntariamente a transformação de sua área em RPPN, total ou parcialmente, desde que protocole requerimento no Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente (Conpam). O decreto estabeleceu um programa estadual de apoio às RPPNs fomentando campanhas de educação ambiental, assistência técnica, captação de recursos, entre outras atividades.

 

*Este texto é original do blog Observatório de UCs, republicado em O Eco através de um acordo de conteúdo.

 

 

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