Paris, França – A ausência de políticas públicas para a proteção do Cerrado no Brasil põe em risco um dos maiores hotspots de biodiversidade, especialmente quando as projeções climáticas mais pessimistas indicam um aumento na temperatura da Terra de até 4°C no final do século – caso ações não sejam tomadas para frear o aquecimento global.
O alerta foi dado pela bióloga do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), Mercedes Bustamante, uma das maiores estudiosas do Cerrado brasileiro, tido como a savana mais diversa do mundo. Neste bioma existem mais de 10 mil espécies de plantas nativas catalogadas.
A bióloga conversou com ((o))eco em Paris, durante a conferência científica sobre mudanças climáticas (“Our Common Future Under Climate Change”), que aconteceu na semana passada na sede da UNESCO, na capital francesa. Ao longo de quatro dias da conferência, cerca de dois mil cientistas e estudiosos sobre mudança do clima estiveram reunidos na capital francesa numa prévia para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21) que ocorrerá no fim do ano.
Bustamante coordenou o Volume 3 do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Ela ainda participou do último relatório do IPCC liderando o grupo dedicado a florestas, agricultura e mudanças do uso do solo no capítulo de mitigação.
Na sua opinião, o Cerrado – que ocupa quase 25% do território brasileiro – deveria ser levado mais em conta na hora de traçar estratégias de adaptação do bioma frente ao eminente aquecimento global.
Impactos e projeções
Em um cenário mais otimista de elevação da temperatura, de 1,5°C a 2°C até o fim do século, as regiões de Cerrado no Nordeste seriam as mais impactadas, especialmente as localizadas na transição para a Caatinga.
“É uma região com maior vulnerabilidade, pois são áreas que ainda têm menor desenvolvimento econômico. Este é um aspecto que precisamos considerar, a desigualdade que existe no Cerrado está numa região onde há o maior remanescente de cobertura vegetal”, disse Bustamante.
Já num cenário mais negativo de elevação de 4°C, o bioma sofreria ainda mais, uma vez que o período de seca ocuparia boa parte do ano favorecendo as queimadas, tanto em frequência como em intensidade, além de reduzir a cobertura de árvores que são importantes reguladoras da temperatura e sugam a água que está profunda no solo.
Fonte de água
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O Cerrado é um distribuidor de águas para as principais bacias hidrográficas do Brasil. Das 12 que existem no país, oito são abastecidas por este bioma. As mudanças climáticas em curso podem afetar essas bacias.
Alguns modelos científicos indicam que o Cerrado no Nordeste seria o mais prejudicado em razão não apenas da redução da precipitação, como do aumento do período seco. Ou seja, choverá menos e haverá mais seca. “Isso mudaria o funcionamento do ciclo hidrológico e da captação de carbono”.
O Cerrado funciona como um “dreno” de carbono durante a estação chuvosa de outubro a maio e, no final da seca, como fonte emissora. A equação é simples: se aumentar a estação seca, por mais tempo o Cerrado vai emitir mais CO2 e, por menos tempo, vai captar o carbono na estação chuvosa. “Hoje o balanço é positivo, o Cerrado assimila mais carbono que emite. Mas se houver alguma mudança na distribuição da chuva, haverá o risco de transformar o que seria um dreno de carbono em uma fonte geradora de carbono”, diz a cientista.
Abaixo da meta de proteção
A proteção integral do Cerrado está longe de alcançar o mínimo desejado, não passa de 3% da área do bioma que está sob proteção integral. Bem abaixo da meta que o Brasil indicou na Convenção da Biodiversidade, que seria de 10%.
Contabilizando todas as áreas protegidas do Cerrado, a soma não passa de 8%, sendo que a maioria é de Áreas de Proteção Ambiental (APAs), motivo de alerta para Bustamante.
“Uma boa parte de áreas protegidas do Cerrado está dentro de APAS e elas têm se mostrado um instrumento pouco poderoso para proteger as áreas nativas”, disse. “Até hoje não conseguimos implantar um sistema de monitoramento para o Cerrado que gere dados anuais importantes para a gestão de políticas ambientais”.
Potencial para preservar
A grande brecha que existe para preservação a savana brasileira é potencializar a conservação nas propriedades privadas. A maior parte da terra no Cerrado é privada, predominantemente propriedades de médio e grande porte.
O principal uso do Cerrado continua sendo a pastagem. A agricultura também é um componente importante do uso da terra e da economia deste bioma. “São grandes extensões que ainda podem ser aproveitadas para a conservação”.
Dentro destas propriedades privadas, grande parte das Áreas de Preservação Permanente (APP) representa um passivo ambiental que pode ser recuperado. As APPs podem ser somadas às áreas de reserva legal, que respondem a 20% da área da propriedade.
“O potencial é grande para incluir no sistema de conservação, mas o caminho ainda é longo, pois o próprio Código Florestal autoriza desmatar até 80% da propriedade, há muita perda de cobertura vegetal que é legalizada pelos órgãos ambientais”.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR),que recentemente teve seu prazo adiado, pode contribuir para este passo na conservação. A ideia é que, a partir das informações do CAR, seja possível construir um escopo de uma estratégia para aumentar o potencial de conservação de biodiversidade. “Não deveríamos nem esperar terminar o prazo final de cadastro do CAR para começar a planejar”.
Ainda sem dados precisos, Bustamente diz que o Cerrado continua sendo um componente importante das emissões brasileiras.
O próximo inventário nacional de emissões de gases de efeito estufa já está sendo concluído e deverá ser anunciado em breve. O documento pretende acompanhar as emissões de 2002 a 2010.
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