Uma cadeia de montanhas que se estende por três populosos estados do Brasil, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A Mantiqueira é uma senhora com mais de 65 milhões de idade e já viu – e muito – sucessivas formas de ocupação e mudanças de uso do seu solo. A serra que chora, Amantikir, em Tupi, tem esse nome por conta dos inúmeros rios que descem das altas montanhas até abastecer importantes bacias, como a do Paraíba do Sul. Das chuvas, aos rios e nascentes, a água é soberana na Mantiqueira.
É aos pés desta cadeia de montanhas – que antigamente eram cobertas por uma Mata Atlântica exuberante, com araucárias e os exclusivos campos de altitudes, em regiões como o Parque Nacional do Itatiaia – que aconteceu também uma grande ocupação do solo para o uso de produção extensiva, como gado ou monocultura.
O desgaste do solo secou tanto nascentes quanto a terra. Em 2014, uma grande seca, a mais recente, atingiu muitos produtores de Minas Gerais, São Paulo e Rio. Muitos tiveram que abandonar suas colheitas ou perderam gado.
A questão não era apenas esperar a chuva, mas como reter e armazenar no solo a água, para que permanecesse úmida o suficiente para manter a produção.
No Atlas dos Remanescentes da Mata Atlântica, da Fundação SOS Mata Atlântica, Minas Gerais continua entre os estados responsáveis pelo desmatamento no bioma (cinco estados concentraram 91% do desflorestamento e Minas Gerais encabeça a lista).
Já São Paulo e Rio Janeiro apareceram em 2020 entre os estados que tiveram altas do desmatamento, com crescimento de 402% e 106%, respectivamente, entre 2019 a 2020, comparado com o período anterior.
Circular pelas estradas que estão aos pés da Serra da Mantiqueira é um entra e sai de pequenas cidades e estados diferentes. A paisagem constante de morros sem vegetação, ou com apenas o topo ou as margens com umas poucas árvores, começa a mudar quando adentramos nos municípios onde estão os produtores que têm trabalhado na restauração, para trazer de volta a água à região.
Unir esforços com esta finalidade ganha escala frente ao desafio que o Brasil tem no presente e pela frente. De acordo com o Relatório do MapBiomas, o país perdeu 15% de sua cobertura hídrica nos últimos 30 anos.
Fomos conhecer quem está trabalhando pela reversão desse cenário.
Plantando águas
O Plano Conservador da Mantiqueira nasceu inspirado em outro exemplo de sucesso, iniciado no município de Extrema, Minas Gerais, em 2005, o Conservador das Águas. Restaurar áreas envolve política pública, convencimento do produtor a disponibilizar uma área para recuperação, boas mudas, manutenção da área e outras ações que envolvem custos.
Quem paga pela ação são empresas, pessoas, órgãos públicos ou por compensação ambiental.
No caso da iniciativa privada, a compensação de carbono voluntária tem sido o motor responsável também pela aplicação de novos projetos de recuperação. Entre 2015 e 2016, o Conservador das Águas extrapolou Extrema e serviu de exemplo e modelo para mais quatro municípios vizinhos que compõem a Área de Proteção Ambiental (APA) Fernão Dias, dando início ao Plano Conservador da Mantiqueira que une poder público, terceiro setor, ONGs locais e iniciativa privada para plantar e restaurar paisagens.
O Plano na sua primeira fase de execução – concluída em 2019 – ampliou-se pela região da Mantiqueira. Chegou a 280 municípios, com ações em 70 deles e um potencial de restauração florestal de 1,2 milhão de hectares.
Para executar os planos localmente, além de ONGs locais, outras executoras como a Iniciativa Verde, o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e WWF Brasil, além da The Nature Conservancy (TNC) e SOS Mata Atlântica que estão desde o início da iniciativa, participam junto a municípios e produtores. Atualmente o Plano abrange 400 municípios na influência da Serra da Mantiqueira.
O grande objetivo é a produção de água com a restauração de paisagens, resgatar as nascentes nos terrenos e garantir produtividade. O trabalho dos consórcios junto aos pequenos produtores depende muito do entendimento e disponibilidade de participação do produtor. Pessoas que apostaram há alguns anos na restauração, e que hoje estão vendo a água voltar em seus territórios, ou conseguindo manter um solo produtivo, mantendo águas que podem garantir o abastecimento de importantes cidades, através dos afluentes que chegam no rio Paraíba do Sul.
Fomos conhecer alguns exemplos que integram compensação de carbono, restauração florestal com espécies nativas, recuperação de solo, viveiro de mudas, e a regeneração natural, associado à produção de pequenos proprietários de terra.
O primeiro exemplo está no município mineiro de Conceição dos Ouros, no sítio de João Storion. Engenheiro agrônomo, paulista de Bariri, produz gado, mandioca com agrofloresta e há 20 anos começou a plantar uma Área de Preservação Permanente (APP) de três hectares, que hoje já é uma pequena floresta.
Nesta mesma APP, João viu o ressurgimento de 23 nascentes.
Algo extremamente simbólico para a região e para a área de 25 hectares de João. O terreno havia sido vendido pelo antigo proprietário justamente por conta da falta de água.
“Primeiro quando acabou a água, acabou a área de pastagem e então ele soltou o gado em cima da nascente, que estava mais verde. Com o pisoteio, as nascentes secaram. Depois usou água de enxurrada e logo assoreou o bebedouro dele”, explica.
Quando adquiriu o terreno, uma das primeiras ações foi plantar uma variedade grande de espécies arbóreas na Área de Preservação Permanente (APP). “Quando comprei aqui, nem borboleta tinha”, brinca João. O resultado veio rápido: em três anos apareceu o primeiro filete de água na área.
Durante a grande estiagem que assolou a região da Mantiqueira, em 2014, conta que vizinhos vinham buscar água para o gado em uma das bicas d’água da sua propriedade. Era o único sítio na região que ainda tinha o recurso.
Dos 25 hectares de seu terreno, João e a esposa conservaram e plantaram árvores nativas na APP, e frutíferas em todo o entorno da casa principal, completando cinco hectares plantados pelo casal. Os demais 20 são para o gado e para uma plantação de mandioca, que começa a receber as mudas de nativas da Mata Atlântica para ser transformada em agrofloresta, através da Iniciativa Verde e o local Grupo Dispersores para o sistema agroflorestal.
A área não tem riacho, especificamente, mas é uma importante área de recarga. A água que umedece o solo, segue pelo lençol freático e ajuda a abastecer os afluentes que compõem o rio Paraíba do Sul. Tudo conectado.
“Escolhemos esta área porque é uma área de recarga, importante para isso. E optamos por uma técnica que concilie a produção da propriedade, que aqui é basicamente de mandioca, e fazemos um consórcio, que é a produção com linha de árvores nativas. A expectativa é que gere uma floresta no futuro, mas que o proprietário continue com o aproveitamento econômico desta área enquanto a floresta não é formada”, explica Lucas Carvalho, consultor de carbono e restauração da ONG Iniciativa Verde. Os custos das restaurações feitas pela ONG vêm da iniciativa privada, por meio de compensação voluntária de carbono.
A mandioca é uma planta que não precisa de muita água, mas o objetivo é garantir abastecimento hídrico de outras atividades da propriedade, além do consumo da família.
“Eu forneci a fertilidade, a umidade do solo, que serve para fixar. Para a mandioca, se eu não tivesse reflorestado nada, não teria influência. Mas eu não teria nada disso aqui”, se orgulha João Storion, mostrando o entorno da casa principal, verde e florido.
Com o ressurgimento das nascentes, uma parte da água é canalizada e abastece oito cochos de animais, o pomar e o tanque onde se criam peixes. O que sobra, segue seu curso, umedecendo solos e abastecendo principalmente o lençol freático.
“Eu seguro tudo aqui dentro”, explica o produtor, que há 37 anos faz o acompanhamento com dados pluviométricos da região.
Hoje, João sonha com um Corredor Ecológico para que mais espécies, além de cutia, preá, veado-campeiro e muitas aves, possam se locomover e alimentar tranquilamente na região.
Olhando árvores, agora com 20 metros de altura, ao lado do tanque cheio de peixes, ele comenta emocionado que viu cada uma delas crescer desde pequenininha. “Se você para de sonhar, você para de viver”, comenta. “Hoje a gente está vendo os netos destas árvores. A função minha, como proprietário e engenheiro agrônomo, é deixar a terra melhor do que peguei, e deixar o mundo melhor de quando eu nasci”.
Plantando sementes
De Conceição dos Ouros fomos para o município mineiro vizinho, Brazópolis, para conhecer o viveiro florestal do grupo Dispersores, uma associação nascida em 2004 e que fornece serviços de plantio, mudas e manutenção da paisagem.
Com uma produção anual de 120 mil mudas, um dos fundadores e coordenador do projeto, Evandro Negrão, que é nascido na região, relembra que via os rios irem diminuindo seu fluxo de água. O que fez mudar a visão e a urgência do pequeno produtor.
“Quando começamos com projetos de recuperação de nascentes em 2007, tivemos a dificuldade de achar dez proprietários que quisessem fazer essa recuperação. Hoje em dia, é totalmente inverso. Muita gente procura para conservar, que está tendo problema com escassez hídrica, então o que falta é recurso para atender todo mundo”, conta.
Hoje, o trabalho do grupo abrange 30 municípios de Minas Gerais e São Paulo.
O viveiro florestal nasceu em 2010 e serve para atender projetos de restauração de paisagem e florestal, com espécies de cobrimento, que são os tipos de plantas que crescem mais rápido, e o de diversidade, que são de crescimento mais lento.
Outro fundador, Piero Renó, ensina que o processo começa com a coleta de sementes de espécies nativas da região, a cada duas semanas.
“O primeiro estágio são as sementeiras, onde é feito a semeadura de tudo que é coletado em campo. Depois que germinam, é feita a repicagem, tiram as plântulas da areia e passam para o tubete. E vão para a área da vegetação, onde as plantas crescem para serem levadas para rustificação. Depois seguem para campo”, explica.
A restauração florestal é um ciclo virtuoso que une renda de diferentes frentes, melhora a qualidade do microclima, com chuvas, evapotranspiração das árvores e umidade do solo, e combate os desafios das mudanças climáticas com compensação de carbono. E é um bom negócio para a economia verde.
A Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura apresentou em novembro de 2021 o estudo “Reflorestamento com espécies nativas: estudo de casos, viabilidade econômica e benefícios ambientais”, e mostra que a taxa de retorno aos investimentos em três modelos de recuperação analisados é de 9,5% a 28,4%, a depender do arranjo.
Produção, turismo e reversão da paisagem no entorno do rio Brejetuba
De Brazópolis rumamos a Cruzeiro, em São Paulo. Nos pés do Pico de Itaguaré está o sítio Serra do Gigante. Esta é uma área de influência e passagem do Rio Brejetuba, que faz parte da caixa do rio Paraíba.
O sítio, com 53 hectares, era uma antiga fazenda de leite, onde “não tinha uma árvore”, relembra o engenheiro civil e proprietário, Luiz Roberto da Cruz, conhecido como Gentil.
Aos poucos, junto à esposa, Rita Maria Rocha Gaspar, foi plantando árvores e, principalmente, deixando a regeneração natural – outra ação importante na restauração florestal – tomar conta.
“Eu sou coadjuvante da natureza”, conta olhando para a janela, que tem ao fundo o Pico do Itaguaré e que mostra as árvores plantadas por ele e a esposa. Era um sonho antigo ter esta área aos pés do Gigante. De mata nativa recuperada na propriedade já são 15 hectares e em recuperação outros 9 hectares.
A manutenção da água, com preservação da bela mata ciliar, abriu a possibilidade também de atuar no turismo rural, com chalés quase às margens do Brejetuba.
No passado, em 2004, o produtor tentou a produção de eucalipto na região. Com cerca de 12 hectares plantados, hoje busca exemplos de reversão para mata nativa, em conversa com outros proprietários e no conselho da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Gigante do Itaguaré.
A manutenção da área é feita com renda complementar de outra atividade de baixo impacto: produção de dez quilos por dia de cogumelos, vendidos em mercados na região. Além de um vinho orgânico, com a plantação de uvas rodeada por araucárias.
Transformar este trabalho num destino turístico é a missão de Kellyns Cris e Andressa Almeida, criadoras do Mãetiqueira Regenerativa. Baseada em Cruzeiro, São Paulo, é uma agência de turismo que promove na região experiências e turismo receptivo, conectando pequenos produtores e roteiros possíveis em áreas conservadas ou restauradas.
A RPPN Gigante do Itaguaré, com 487 hectares no total, sendo 358 de área conservada, é outro exemplo de como a colaboração, o diálogo e a troca de experiências na região podem ser potentes para mudar paisagens e recuperar solos.
O gestor da reserva, Flávio Ojidos, e um dos proprietários, explica que a área de influência da RPPN acaba chegando a outros proprietários que estão na área do Rio Brejetuba. Por lá vem sendo criado, de forma piloto para a região, um plano de implementação de negócios sustentáveis, no conceito da conservação em ciclo contínuo. Regeneração natural de áreas, recuperação com plantio e reversão da paisagem que era de eucalipto entram nessa conta.
Antes dominada pela monocultura, a área do Brejetuba tem menos araucária, árvore símbolo da Mantiqueira, que eucalipto. Por enquanto. Depois que muitos produtores começaram ter dificuldades financeiras e sofrer com o empobrecimento do solo, a visão começa a mudar e oportunidades de restauração começam a chegar. A RPPN organiza reuniões com os pequenos proprietários do entorno para a troca de ideias e exemplos, explica Flávio.
“Esperamos conseguir ter uma mudança na ecologia da paisagem da região. Acho que essa é a grande missão a médio prazo e que podemos contribuir na região enquanto uma unidade de conservação”, afirma.
De todas as pessoas que conversamos para a produção desta reportagem, uma palavra era comum a todas elas. Sonho. Quem é do mato ou do campo, sabe: plantar é uma regeneração para o ser humano e para o planeta.
Plantar água é vida.
O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.
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