Reportagens

Atafona, um mar de fé

Todos os anos, festa dedicada à Nossa Senhora da Penha reúne dezenas de milhares de fiéis em Atafona; Padroeira do distrito também é símbolo da resistência local

Júlia Mendes ·
14 de agosto de 2025

Atafona, um mar de fé

Todos os anos, festa dedicada à Nossa Senhora da Penha reúne dezenas de milhares de fiéis em Atafona; Padroeira do distrito também é símbolo da resistência local

Às 5 horas da manhã do dia 28 de abril de 2025, uma movimentação começa no principal santuário de Atafona (RJ). A melodia dos acordes da Banda União dos Operários marca o começo da alvorada dedicada à Nossa Senhora da Penha, padroeira do município de São João da Barra (RJ). Seguindo a banda, fiéis caminham pelas vias centrais de Atafona, enquanto outros esperam a banda passar nas portas de suas casas ou oferecem café da manhã aos devotos e aos músicos. A todo momento, uma frase é esbravejada pela multidão: “Viva a Nossa Senhora da Penha!”.

A ocasião faz parte da festa anual dedicada unicamente à santa, que reúne todos os anos uma infinidade de fiéis em Atafona e apresenta uma extensa programação religiosa de 10 missas, cavalgada, carreata, romaria luminosa e procissões fluvial e terrestre.

Alvorada de Nossa Senhora da Penha dá início ao dia da santa, 28 de abril. Foto: Thiago Freitas
Alvorada de Nossa Senhora da Penha dá início ao dia da santa, 28 de abril. Foto: Thiago Freitas

Vinte mil fiéis caminharam pelas ruas do distrito de Atafona em devoção à Nossa Senhora da Penha, durante a procissão terrestre no dia 28 de abril, dia da Santa. Tal caminhada anual foi tombada em 2014 pelo Governo do Estado como patrimônio histórico e imaterial do Rio de Janeiro. Segundo Adyvan Pedra, presidente da Irmandade, o percurso da procissão precisou sofrer alterações ao longo dos anos devido à perda de ruas e locais pelo avanço do mar no distrito. “Onde a imagem da Penha passava em procissão há 40 anos atrás, hoje é submerso pelas águas”, contou.

Outra tradição da festa, a procissão fluvial é realizada por pescadores em barcos ornamentados, que homenageiam a padroeira pelas águas do Paraíba do Sul, com o acompanhamento de fiéis em barcos no entorno ou na parte terrestre, onde acenam, cantam e agradecem à Nossa Senhora da Penha. Neste ano, foram 4 mil fiéis presentes na procissão.

Realizada pela Irmandade da Santa, com o apoio da prefeitura, a edição de 2025 aconteceu durante os dias 20 a 28 de abril.  Segundo a Irmandade, foram 35 mil pessoas presentes na festa deste ano. “Em toda festa de Nossa Senhora da Penha, não tem ninguém no mar”, disse o pescador Leandro Soares. Ele conta que quem vê de fora pensa que essa fé um dia vai acabar por conta do avanço do mar, que está cada vez maior. “Mas não vai. Desde criancinha eu vejo isso [a devoção] e só vai crescendo. Ficamos cada vez mais apaixonados pela nossa cultura”, completou o pescador. 

O início da devoção à Virgem da Penha em Atafona começou no século XIX, sem registro de data específica. Segundo dados da Irmandade de Nossa Senhora da Penha, criada em 1857, a primeira festa da santa foi realizada em 1879 e com o passar dos anos, passou a ser frequentada cada vez mais por moradores e frequentadores da região. 

A fé é o que mantém firme a esperança da população de Atafona em ver um dia os problemas socioambientais do local solucionados, como contou Adyvan Pedra. Além do avanço do mar, o assoreamento do Rio Paraíba do Sul ameaça fortemente os pescadores, classe devota mais antiga de Nossa Senhora da Penha, segundo o presidente da Irmandade. “Então, está também ameaçada a identidade cultural de um povo, como nós e os pescadores de Atafona”, disse. 

Vídeo: Thiago Freitas

A apreensão de perder o Santuário para o mar, assim como outros cartões postais que já foram perdidos, é grande entre os devotos. No entanto, é com uma fé enorme que preferem pensar que algo será feito pelo local. “Até lá, os homens e mulheres a quem compete a administração e manutenção dos bens públicos darão solução ao nosso problema. Até vermos essa realidade, nossa voz será sempre a mesma: Podemos dizer que Nossa Senhora da Penha, tanto sua devoção como seu Santuário, são a joia mais bonita da nossa praia. Se perdemos isso, perdemos nossa identidade “, completou Adyvan.

Moradora de Atafona há 27 anos, Sônia Ferreira perdeu sua casa para o mar em 2022. Hoje, morando com sua filha ainda em Atafona, Sônia vira e mexe volta aos escombros de sua casa, relembra algumas memórias e tenta, aos poucos, virar a página. A fé, segundo ela, é a força que a faz seguir em frente. “Eu confio muito na ajuda divina que recebo. Tanto de Deus e Jesus, quanto de Nossa Senhora, mãe de Jesus. Quando eu sinto que estou desmontando, eu faço as minhas orações e eu percebo que eu estou conseguindo me levantar. Mesmo não tendo mais fisicamente aqueles espaços, eu consigo lembrar da gente [sua família e amigos] conversando, compartilhando e estando juntos ali”, contou, emocionada. 

Dona Sônia ao lado da estátua de Nossa Senhora da Penha no quintal de sua antiga casa. Hoje, a imagem da santa mora com Dona Sônia na casa da filha, há algumas ruas atrás de onde o mar está. Foto: Thiago Freitas
Dona Sônia ao lado da estátua de Nossa Senhora da Penha no quintal de sua antiga casa. Hoje, a imagem da santa mora com Dona Sônia na casa da filha, há algumas ruas atrás de onde o mar está. Foto: Thiago Freitas

Para Sônia, que já foi presidente da Irmandade durante 15 anos, a Nossa Senhora da Penha é a grande protetora de Atafona. “Deus e Nossa Senhora precisam e dão muita força para a gente, porque senão não aguentamos tanta destruição.” Segundo ela, os pescadores sempre dizem que quando entram no barco, é Nossa Senhora da Penha que os sustenta no meio do oceano. 

Foi o caso de Leandro, pescador há 15 anos e apaixonado desde criança pelo mar. Em 25 de dezembro de 2022, decidiu pescar, mesmo sabendo que não havia ninguém trabalhando naquele dia. Foi então que caiu do barco e ficou à deriva no meio da bacia de Campos por quase dois dias. Lutando contra a forte corrente marítima, o frio e fome intensos, o que o sustentava era a sua fé de que sairia dali. Desde sempre muito religioso, hoje Leandro vai às missas de Atafona apenas para agradecer e, ao pescar, leva consigo a certeza de que sua fé estará sempre o acompanhando ao enfrentar o mar que avança cada vez mais sob o distrito. “Nada é fácil para ninguém, sempre vão vir as tribulações. Mas se você tem a fé para se agarrar, você fica mais forte para enfrentar. Você vai passar aquela tempestade no mar, por exemplo, em que você vai passar 5 horas. Você tem força para aguentar”, disse.

Patrícia Abud, frequentadora de Atafona, conta que todo ano faz questão de ir à festa e agradecer. Com a blusa escrito “Atafona pede socorro”, ela acompanha a procissão até a saída para o rio e conta que sempre é um momento de muita emoção. “Todas as vezes que o andor de Nossa Senhora passa por mim, eu me arrepio e sinto a presença dela”, contou, emocionada. “Eu tenho certeza da presença de Nossa Senhora na minha vida, da minha família e de Atafona como um todo.”

O ser humano tem seu papel 

A fé e devoção em Atafona são enormes, mas a consciência de que não é ela que os salvarão é presente entre os fiéis. O ser humano teve – e tem até hoje – uma responsabilidade no cenário atual do distrito e portanto, é ele que tem a maior importância em contribuir para que o local não seja destruído pelo mar. Segundo os fiéis, a fé é importante, mas o agir é ainda mais. “O mar vem chegando por uma atitude errada do homem, como, por exemplo, em cortar o fluxo do rio em vários locais. Ele chega aqui já defasado, não tem corrente para segurar o mar. Então não é a Nossa Senhora que vai salvar tudo isso. Somos nós mesmos que estamos acabando com tudo, então nós temos que consertar”, disse Leandro. 

Integrante do Quarentena – grupo de veranistas de Atafona que se uniu à Associação SOS Atafona para lutar pelo local –, Maria Lúcia Freire diz que a fé e devoção no distrito é muito importante para lidar com toda a situação do mar: “Nossa Senhora da Penha é o que está nos segurando até hoje”, disse. No entanto, há o livre arbítrio das escolhas que, segundo ela, os seres humanos tomaram ao longo do tempo e resultou em consequências ruins para Atafona. “E muitas vezes, a gente coloca a confiança da gente em determinadas pessoas e as escolhas delas não são as certas. E aí muita gente paga por isso. Nós em Atafona estamos pagando um preço alto”, completou. 

Também integrante do Quarentena, Patrícia afirma que Atafona e São João da Barra como um todo são locais muito religiosos, a fé acaba os fortalecendo e unindo energias para lutar pelo lugar que tanto apreciam e onde construíram memórias. “É lógico que o homem estragou tudo, ou quase tudo, mas ainda acredito que tem a mão de Deus ali nos segurando para lutar e permitir que outras pessoas possam viver isso que a gente vive aqui. Todo mundo tem uma história em Atafona”, comentou. 

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

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