De peito vermelho emoldurado por um verde vibrante que se estende até as asas, quando de súbito surgem penas azuis que aumentam o contraste. Na cabeça, o padrão colorido se repete, com uma máscara vermelho-arroxeada que destaca os olhos e bico negro, com uma coroa azulada que desce até encontrar-se com o verde do dorso. Eis a tiriba-do-paranã, uma pequena ave de cerca de 22 centímetros que parece querer carregar em si todas as cores do mundo. Assistir a este ponto de arco-íris na floresta é um espetáculo restrito – sempre foi – nas últimas décadas, entretanto, a existência da tiriba-do-paranã está cada vez mais ameaçada pelo desmatamento, que já reduziu em mais da metade seu lar.
A tiriba-do-paranã (Pyrrhura pfrimeri) ganhou este nome justamente porque sua ocorrência está restrita à bacia do Paranã – situada na fronteira entre o sudeste do Tocantins e o nordeste de Goiás – numa pequena área de Cerrado onde ocorrem as matas secas em afloramentos de calcário. Este tipo de vegetação apresenta um dossel fechado que se despe parcialmente de suas folhas durante a estação seca. Sua cobertura, que originalmente chegava a 11.688km², hoje está reduzida a 4.693km², que equivalem a apenas 40% da sua extensão original, devido ao avanço do desmatamento.
“Só que a espécie não utiliza esses 4 mil”, ressalta Túlio Dornas, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), que utilizou os dados do MapBiomas para estimar a cobertura atual de mata seca na região. “Nosso trabalho mostra que ela tem uma ocorrência ainda mais restrita do que as matas secas”, acrescenta.
O biólogo debruçou-se sobre a espécie e foi a campo nos últimos anos para entender a situação atual de distribuição e ameaça da tiriba-do-paranã. O estudo resultou em um artigo, produzido junto a dois colaboradores, publicado na revista científica Ornithology Research em março deste ano.
De acordo com a pesquisa, dentro da área remanescente de mata seca há dois cenários de distribuição da espécie. No mais otimista, ela ocorreria numa área de 2.089 km², que inclui potenciais fragmentos que seriam viáveis para a sobrevivência da tiriba, mas que não foram amostrados. Baseado apenas nos fragmentos em que de fato houve registros confirmados, esse território ocupado pela espécie encolhe para apenas 1.636km², menos da metade do que sobrou de mata seca.
“Porque às vezes é um fragmento muito pequeno em que a espécie não tem condição de viver ali. A gente percebeu que ela está em fragmentos maiores de mata seca, com condições de suprir a espécie”, conta o biólogo.
No cenário baseado nas ocorrências confirmadas da tiriba-do-paranã, a estimativa populacional é de 14.724 a 24.540 indivíduos, com uma densidade de 9 a 15 indivíduos por km² e sendo apenas 66% destes indivíduos maduros. Considerando os fragmentos com potencial para abrigar a tiriba, mas sem confirmação de registro, o número total estimado chegaria a 31,3 mil indivíduos.
Ainda assim, este total representa um declínio de mais de 80% desde 1993, quando a espécie era estimada em cerca de 200 mil indivíduos.
Contexto de vulnerabilidade
“Na literatura você tem registros históricos bem antigos, como o do coletor da espécie, em 1920. Mais recentemente tem os avistamentos do ornitólogo Fábio Olmos, que andou na região na década de 90 e os levantamentos feitos pelo Bianchi, entre 2008 e 2010. De lá pra cá, passaram-se 12 anos e precisávamos de informações mais atualizadas sobre espécie”, explica o biólogo da UFT.
Para fazer o levantamento sobre a distribuição da espécie, além de apoiar-se na literatura existente sobre a espécie, Túlio foi a campo e percorreu quase toda extensão da mata seca em afloramento de calcário da Bacia do Paranã em busca das tiribas. O biólogo contou ainda com apoio da ciência cidadã, tanto através de moradores e guias de turismo locais – que relataram possíveis avistamentos – e páginas colaborativas dedicadas às aves (Wikiaves e E-bird) onde usuários registram fotos e os locais de observação.
“Os registros dos observadores estão concentrados em áreas já conhecidas pra espécie, como o Parque Estadual Terra Ronca [no município de São Domingos, Goiás] e em Aurora do Tocantins, mas ajudaram no registro temporal. Porque se você tem registros há dez anos seguidos em Terra Ronca é porque a espécie está conseguindo se manter ali”, explica.
O Parque Estadual Terra Ronca, que dá status de proteção integral a 57 mil hectares de Cerrado goiano, é uma das principais áreas protegidas que resguardam o habitat da tiriba-do-paranã. Ainda assim, as aves ocorrem apenas na porção do território em que há mata seca, que corresponde a pouco mais de 15 mil hectares do parque.
Outras quatro unidades de conservação defendem o habitat da tiriba: a Floresta Nacional Mata Grande, em Goiás, com 2 mil hectares; a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Aurora Natura, no Tocantins, com apenas 15 hectares; além de duas Áreas de Proteção Ambiental (APA), a Nascentes do Rio Vermelho, da esfera federal, com 176 mil hectares, e a do Rio Manso, municipal, com 6 mil hectares, ambas do lado goiano.
“Nós temos cerca de 90 mil hectares de matas secas protegidas por unidades de conservação. Se a gente considerar que existem 2.100 km² [o equivalente a 210.000 hectares] aptos a estarem abrigando tiribas hoje, eu tenho menos da metade do território protegido”, estima o biólogo.
O pesquisador liderou um estudo dedicado justamente a analisar a representatividade de áreas protegidas no habitat da tiriba-do-paranã, publicado em dezembro de 2022 na Revista de Ciências Ambientais, e apontar as zonas prioritárias para conservação.
“Uma preocupação que eu tinha desde a primeira vez que eu fui lá é saber onde a espécie está protegida. Porque é uma espécie Em Perigo de extinção, muito próxima do patamar de criticamente ameaçada”, alerta o biólogo.
A principal ameaça para a tiriba-do-paranã é, justamente, a perda de habitat, cada vez mais encolhido e fragmentado frente ao avanço das pastagens e do gado. Apenas no extremo sudeste do Tocantins, a área de pasto saltou de 80 mil para mais de 140 mil em 35 anos. O fogo de origem humana, associado com uso agropecuário para “limpar e renovar a terra” é outra ameaça que paira sobre o vulnerável habitat das tiribas.
Túlio destaca que a maior parte da mata seca protegida atualmente está em Goiás, o que aumenta a pressão e potencial para criação de unidades de conservação do lado do Tocantins. Já existem duas propostas pro estado que contemplariam o habitat da tiriba, comenta o pesquisador, o Parque Estadual de Aurora e o Parque Estadual Vale do Rio Palmeiras.
“Se a gente considerar que politicamente os estados têm que agir para proteger a biodiversidade, o Tocantins não tem uma proteção efetiva da mata seca e da tiriba. E Goiás tem, mas dada a situação da espécie, seria necessário fazer mais”, avalia.
Do lado goiano, há ainda outra proposta, para criação do Parque Estadual Serra da Prata, que também abrangeria uma parte de mata seca.
O pesquisador aposta, entretanto, em outros tipos de unidades de conservação, como Monumentos Naturais e Refúgios de Vida Silvestre, que não exigem desapropriação de propriedades particulares e portanto seriam mais facilmente implementadas. Além das próprias RPPNs, criadas e geridas pelo próprio proprietário particular.
“Importantes áreas de florestas estacionais deciduais [matas secas] entre o sudeste de Tocantins e nordeste de Goiás são consideradas áreas prioritárias para conservação da biodiversidade”, destaca trecho do artigo, que aponta a necessidade de aumentar a conservação das paisagens cársticas e das ameaçadas e endêmicas matas secas, em conjunto com a fauna local, em especial a tiriba-do-paranã.
Tiriba-do-paranã: a guardiã da mata seca
As tiribas-do-paranã vivem em bandos de cinco até 40 indivíduos. Diferente de outros psitacídeos (grupo composto por aves como papagaios, periquitos e araras), as tiribas voam sempre na altura das árvores ou no sub-bosque e são bem restritos às áreas de floresta, apesar de serem capazes de tolerar a vizinhança com áreas de pasto ou urbanas. “Eles cruzam pastagens pequenas para chegar em outra mata se for necessário, mas eles não cruzam grandes áreas descampadas”, explica o biólogo.
A proteção da espécie, associada a manutenção da cobertura vegetal nativa das matas secas em afloramento de calcário do Cerrado, pode ajudar na conservação de outras espécies da fauna e flora que também dependem deste ecossistema particular.
“Entre 2012 e 2014 eu fiz alguns campos com o pessoal da UFT para entender a dieta da espécie e seus hábitos reprodutivos e, em paralelo, eu fazia o inventário da avifauna para entender qual espécie seria protegida num efeito guarda-chuva da proteção da tiriba-do-paranã. O Vale do Rio Paranã é um Centro de Endemismo, está cercado por chapadões da Serra Geral de Goiás e Tocantins e afloramentos cársticos. Além da tiriba-do-paranã, que é endêmica, tem uma espécie endêmica de mocó (Kerodon acrobata) e outras espécies de plantas”, destaca.
O pesquisador acrescenta ainda a relevância paleontológica e arqueológica da região, que possui sítios de pinturas rupestres, inúmeras cavernas e fósseis do Pleistoceno. E que a proteção da tiriba fortalece as atividades turísticas que movimentam a economia local. “Essa proteção da tiriba tem essas consequências que vão muito além da espécie”, defende Túlio.
No município de Aurora do Tocantins, a tiriba-do-paranã foi reconhecida como ave-símbolo (Lei nº 189/2021) e ganhou um dia próprio no calendário municipal: a data de 14 de novembro.
O ato reconhece a importância regional, seu caráter de endemismo e a necessidade de conservação e/ou potencial turístico “por se tratarem de elementos representativos da geodiversidade e biodiversidade, refletidas na paisagem cárstica e na floresta estacional decidual, as matas secas, abrangentes e de destacada ocorrência nos limites do município de Aurora do Tocantins” e pressupõe esforços da prefeitura em promover campanhas de sensibilização e conservação da biodiversidade.
“O estudo que a gente fez foi um diagnóstico atual da espécie, agora a gente sabe o que precisa ser feito: que é justamente promover políticas públicas eficientes para proteção da espécie, como a criação de unidades de conservação, e fazer dela um ativo para o turismo, em especial de observação de aves”, arremata Túlio.
Uma relação íntima e ainda pouco estudada com o calcário
As tiribas-do-paranã têm uma relação intrínseca não apenas com as matas secas, mas com os afloramentos de calcário. Na sua dieta, além de frutos, flores, sementes e néctar, a ave come o próprio solo – comportamento que deu origem ao seu nome local de “barreirinha”. Esse hábito, chamado de geofagia, é típico de psitacídeos para pegar minerais que não estão presentes na dieta dela. No caso da tiriba, que rói a rocha de calcário, esses minerais ajudam a metabolizar o tanino, uma substância tóxica presente em vários outros alimentos que ela come.
Além disso, suspeita-se que as rochas de calcário possam servir de abrigo para os ninhos da espécie. Apesar deste comportamento de nidificação não tenha sido comprovado, já existem registros das tiribas entrando em túneis dentro da rocha. “A gente assume que pode ser dormitório ou ninho”, conta o pesquisador da UFT.
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Um absurdo total vindo do governo anterior e uma falta de conhecimento dos seus articuladores achar que sobreviveremos sem as florestas e a natureza. Sem floresta, não há água, sem água não há chuva e sem chuva não há alimentos. Um alerta também para o setor agrícola, porque a conta já chegou e sem nossas florestas jamais seremos capazes de qualquer produção agrícola. Está mais do que na hora de entender que Deus perdoa sempre, os homens raramente, mas a natureza nunca.