Calor desigual: por que bairros são mais quentes que outros?
Nos grandes centros urbanos, o calor impacta de forma desigual a população, segundo estudo. Os bairros mais pobres são os mais afetados
Por Daniella Mendes e Julia Mendes
Denise Gomes é moradora do bairro de Bangu, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, há 27 anos. Durante todo este tempo vivendo na região, ela relata que nunca sentiu tanto calor como nos últimos anos. A região é quente, e muito. “Aqui costumava ser mais fresco, mas agora não mais. Com o passar dos anos, nós sempre comentamos que parece que a cada ano o verão fica pior aqui”, afirma.
Não à toa. Além das mudanças climáticas, Bangu é desfavorecido pela sua localização quando se trata de calor. Situado em um vale entre dois maciços, da Pedra Branca e do Gericinó-Mendanha, o ar “fica preso” e não circula, o que torna a região cada vez mais quente, principalmente em áreas mais asfaltadas e pouco arborizadas. O asfalto e as estruturas urbanas esquentam e produzem calor, que dificilmente se dissipam. Por isso, Bangu é um local favorável para a formação de ilhas de calor.
Para além da condição geográfica do bairro, Denise não estava errada quando disse que a cada ano os verões em Bangu pareciam piores. Isso porque as ondas de calor estão cada vez mais frequentes, mais intensas e mais longas em todas as regiões metropolitanas do Brasil, o que afeta diretamente a saúde da população, segundo um estudo do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Na prática, significa que a população brasileira está cada vez mais exposta a dias sucessivos de stress térmico, que tem impactos diversos na saúde, principalmente devido ao agravo de doenças cardiovasculares e doenças respiratórias”, explicou o pesquisador Djacinto Monteiro, do Lasa.
O estudo analisou as taxas de mortalidade durante as ondas de calor entre 2000 e 2018 nas 14 principais regiões metropolitanas brasileiras, que representam mais de um terço da população nacional. Foi constatado que o Brasil experimentou de três a 11 ondas de calor por ano na década de 2010. Em contrapartida, nas quatro décadas anteriores, não havia ou chegava no máximo a três os episódios de altas temperaturas. Durante o período em análise, 48.075 mortes podem ser atribuídas a ondas de calor, sendo as doenças circulatórias ou respiratórias e o câncer as causas de morte mais frequentes.
Segundo a pesquisa, as taxas de mortalidade relacionadas variam entre regiões geográficas do Brasil, que os pesquisadores vincularam às desigualdades Norte-Sul relativas a indicadores socioeconômicos e de saúde, incluindo a expectativa de vida.
As taxas de mortalidade relacionadas às ondas de calor foram maiores entre pessoas do sexo feminino, idosas, negras, pardas ou com níveis educacionais mais baixos. Esse aumento de mortalidade é maior para esses grupos que foram identificados como mais vulneráveis. Isso significa, de acordo com Djacinto, que as desigualdades sociais, de gênero e socioeconômicas agravam o impacto que as mudanças climáticas propagam. “Isso mostra que primeiro nós precisamos de políticas de adaptação urgentes, desde sistemas de alerta integrados ao sistema de saúde e Defesa Civil a também estratégias de adaptação”, completou o pesquisador.
Foto: Julia Mendes
Desigualdade social
A vulnerabilidade desses grupos não acontece de forma arbitrária, a segregação espacial se expressa cada vez mais através de fenômenos climáticos. O bairro da Gávea, na Zona Sul do Rio de Janeiro, tem o maior IDH municipal, com proximidade da praia e da Floresta da Tijuca, alta taxa de arborização e grande espaçamento entre as residências. O local possui o que os pesquisadores chamam de “ilha de frescor”, por conta da sua infraestrutura urbana, que prioriza materiais sustentáveis, e da proximidade com amenidades de temperatura, como os parques, a floresta e a zona costeira.
Já Bangu ocupa a 166ª posição no ranking municipal carioca, e concentra uma das piores ilhas de calor do município, que chega a alcançar temperaturas de 3,7°C acima da média às 21h.
Entre os principais problemas estruturais públicos, Barbara, moradora da Vila Kennedy, comunidade da Zona Oeste carioca, destaca a baixa taxa de arborização, o difícil acesso às áreas de lazer em locais mais frescos e o custo da conta de luz para o uso de ar condicionado e ventilador. “Um ar condicionado não é um artigo de luxo, é o mínimo que você consegue para viver bem e para ter uma boa qualidade no sono”, afirma.
Denise Gomes conta que passa mal de calor em diversos momentos do dia e que, por ser hipertensa, precisa driblar a sua rotina para não sofrer com o calor extremo e não precisar gastar acima do que a sua baixa renda permite. No entanto, diz que já precisou pagar mais de R$ 1200,00 em conta de luz, cerca de 95% de um salário mínimo em 2024.
“Os meus gastos com luz e água são enormes, por conta da maior frequência de banhos ou, quando o tempo está muito seco, as queimadas aumentam e ficam aquelas cinzas no quintal, tem que lavar com muita água. Às vezes a geladeira também não dá vazão e precisamos usar mais o freezer. É uma dinâmica que uma coisa leva a outra e quando vejo as contas estão arrebatadoras”, disse Denise.
A qualidade de vida e o bem-estar da população estão diretamente ligados com a exposição do ser humano ao calor. Durante o Seminário Internacional “El Niño: Efeito e impactos na saúde dos países do Mercosul” no ano passado, a professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ e coordenadora do LASA, Renata Libonati, explicou que passar dias e dias sob estresse térmico causa sobrecarga no organismo humano, podendo causar infarto, derrame e crise renal.
De acordo com a banguense Barbara Barros, faltam políticas públicas que pensem no bem-estar climático dos moradores. “Acho que a gente deveria iniciar com um plano de adaptação às mudanças climáticas, que seja colocado em prática, e pensar em como a gente consegue fazer para que a população consiga viver com melhor qualidade de vida”, disse a moradora de Bangu.
Foto: Karime Xavier/Folhapress
Cidade como poluente
Medidas públicas de acesso a instrumentos de bem estar climático, mesmo que em escalas menores, são primordiais para que a população não adoeça. No entanto, não são soluções eficientes para o principal problema que tende, em larga escala, a intensificar esse mal-estar em ambientes urbanos: o aquecimento global.
Responsável pela principal parte do montante de poluição, gestão de resíduos e produção industrial, os ambientes urbanos entram na equação como causadores do aumento da temperatura global. As ondas de calor são uma consequência das mudanças climáticas, agravadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, prática muito presente nas cidades. “As cidades têm uma grande responsabilidade, sendo uma das principais fontes emissoras de gases de efeito estufa devido às emissões veiculares e a própria produção de energia. Também são regiões extremamente urbanizadas e com baixa disponibilidade de árvores, por exemplo”, disse Djacinto, do Lasa.
Além disso, o maior contingente populacional brasileiro está concentrado nas cidades. De acordo com o IBGE, 61% da população do Brasil mora em concentrações urbanas, o que faz a emissão de gases poluentes ser maior, e consequentemente, o calor também. “As pessoas acabam vivendo em regiões pouco ventiladas e com grandes aglomerações”, completou o pesquisador.
*Foto de capa: Ronny Santos/Folhapress
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Como citado na reportagem “As taxas de mortalidade relacionadas às ondas de calor foram maiores entre pessoas do sexo feminino, idosas, negras, pardas ou com níveis educacionais mais baixos.”, o impacto dos eventos extremos atingem alvos especifícos não por uma coincidência e é importante salientar isso. Matéria muito bem elaborada e necessária, visto o cenário climático que se contorna.