A eliminação galopante da savana brasileira complica os planos para concretizar uma rede de passagens verdes que reforçaria a conservação da onça-pintada, o maior carnívoro do continente. Ampliar a proteção ambiental, restaurar e conectar a vegetação natural abreviaria o risco.
Entidades civis querem assegurar até 2030 um mega corredor entre áreas conservadas através de países das américas do Sul e Central para reforçar a sobrevivência no longo prazo de grandes mamíferos. Além da “pintada”, serão amparados animais como a anta, o lobo-guará e o tamanduá-bandeira.
“Grandes impactos como o desmatamento fazem com que os animais se coloquem em riscos desnecessários”, alerta o biólogo Felipe Feliciani, analista e responsável pela estratégia para conservação da onça-pintada (Panthera onca) da ong WWF-Brasil.
A destruição expõe os felinos à caça, mortes por devorar gado ou atropelamentos, complica sua alimentação e também fragiliza populações isoladas pela cruza de animais aparentados. Isso aumenta as chances de que genes problemáticos passem entre gerações.
O problemão tira o sono de conservacionistas, mas o fracionamento e o corte raso da vegetação nativa aceleram no centro do país, uma ponte natural entre outros biomas e peça-chave do corredor americano das pintadas. “A falta de conectividade é um enorme desafio para a conservação”, ressalta Feliciani.
A situação se complica numa das últimas grandes parcelas íntegras do Cerrado, a Chapada dos Veadeiros, onde crescem cidades, mineração, geração de energia, lavouras e pastos. Desde 1985, a agropecuária tomou 230 mil hectares de seus ambientes naturais, quase metade da área do Distrito Federal.
O número é do MapBiomas e mostra o ocorrido até 2022 nos municípios do nordeste goiano onde se espalha a região de montanhas, campos, florestas e savanas – Alto Paraíso, Campos Belos, Cavalcante, Colinas do Sul, Monte Alegre, Nova Roma, São João D’Aliança e Teresina.
Do total, 191 mil hectares (83%) estão na Área de Proteção Ambiental (APA) do Pouso Alto, uma reserva estadual de “uso sustentável” que deveria tornar ações humanas mais amigáveis ao Cerrado e reduzir delitos ambientais ao redor do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
Um desmate regional que subirá se planos diretores municipais mudarem para ampliar manchas urbanas e atender à disparada de loteamentos e turismo. Ano passado, só o parque nacional teve 80,2 mil visitas, 900% a mais que as 8 mil contadas em 2000, aponta o Governo Federal.
Isso não enxotou delitos ambientais. Desde 2017, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) lista mais de R$ 2,7 milhões em autos de infração por desmatamento, caça e entraves à fiscalização dentro da área protegida, mostrou ((o))eco.
Já as multas aplicadas desde 2019 em Goiás pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) somam R$ 100 milhões. Em Veadeiros, os principais crimes são “parcelamento irregular do solo e uso da água sem outorga”, conta a agência estadual.
“A Semad está atenta ao crescente interesse no potencial da região nordeste do estado e tem feito fiscalizações periódicas e intensificadas (…) a fim de coibir o uso irregular e ilegal dos recursos naturais”, afirma a Assessoria e Imprensa da Semad.
Em janeiro, com imagens de satélite e comprovação em campo, a fiscalização estadual goiana flagrou quase 1.000 hectares desmatados entre a APA do Pouso Alto e o território quilombola Kalunga, onde descendentes de escravizados mantêm história, cultura e o Cerrado.
“Veadeiros está sob pressão muito forte. Qual é a capacidade de suporte dos recursos naturais da região?”, questiona Adolpho Kesselssing, dono de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) na Chapada dos Veadeiros.
Bioma apagado
O drama de Veadeiros é comum ao passado e assombra o futuro de outras porções do Cerrado. Metade dele já foi para o beleléu e o agronegócio cresce sobretudo entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O desmate do bioma é licenciado principalmente pelos estados, permite uma lei federal de 2011.
“Metade das licenças tem ilegalidades, como incidir em áreas griladas ou sem análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR)”, lembra Pedro Bruzzi, engenheiro florestal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, representante de ongs do Centro-oeste no Conselho Nacional do Meio Ambiente e superintendente-executivo da Fundação Pró-Natureza.
O CAR é um registro obrigatório da legislação florestal. A norma federal permite desmatar de 50% a 80% em fazendas no Cerrado. Já na Amazônia, as derrubadas são de no máximo 20% dos imóveis rurais. Isso é parte grossa da conta da eliminação do Cerrado, hoje superior a 10 mil km2 anuais, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
“Em média por hectare, o Cerrado estoca a metade do Carbono que a Amazônia mantém. Como o desmate no Cerrado foi de 11 mil km2 e na Amazônia de 7,5 mil km2 de de agosto de 2022 a julho de 2023, as emissões do Cerrado são quase tão grandes quanto as da Amazônia, priorizada nas políticas de conservação”, alerta Bruzzi.
Não bastando, no Cerrado a lei florestal mostra um “excedente” de 1,84 milhão de hectares em Reservas Legais. Ou seja, uma área similar a ⅓ do território da Paraíba ou à metade de Taiwan ainda pode ser desmatada. O balanço é do Observatório do Código Florestal.
“O descontrole do desmatamento no bioma é uma catástrofe”, ressalta Bruzzi. “Isso afronta as convenções de biodiversidade, clima e desertificação, mas é uma crise ainda pouco reconhecida. Podemos estar perto de um ponto de não retorno para o Cerrado”, sublinha.
A escassez de parques e outro tipos de unidades de conservação é outro flagelo do Cerrado. Só 8,68% dele é abrigado nessas terras, sendo apenas 2,89% com proteção mais restrita. Os dados são de um painel sobre reservas ecológicas brasileiras. Mas a conta é ainda maior. Metas internacionais de conservação pedem que ao menos 30% da biodiversidade seja formalmente protegida até 2030. Pedra no caminho da proteção da onça-pintada, em terras brasileiras apenas a Amazônia se aproxima do percentual, com 28,5% em unidades de conservação.
Ligando pontos
A onça-pintada é um animal poderoso. Pode pesar 150 kg e atingir 2,5 metros do focinho à ponta da cauda. O maior felino americano só fica atrás dos leões e dos tigres. Apesar disso, a fera tem suas fragilidades, como precisar de grandes áreas para caçar e reproduzir.
Esses traços naturais explicam porque suas maiores populações estão no Pantanal e Amazônia, enquanto foram quase zeradas nos devastados Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga. No Pampa não existem mais. No continente americano, o território original da espécie já foi encolhido pela metade.
Reverter esse quadro alarmante é o grande alvo do corredor abraçado por um número crescente de entidades americanas. “A escala do projeto é tão grande que precisamos de mais apoio de ongs locais, governos e setor privado”, diz Felipe Feliciani, analista de conservação do WWF-Brasil.
Tornar real e manter essa poderosa “malha rodoviária verde” depende de uma articulação desses setores para espremer a criminalidade ambiental, conter o desmate legalizado, ampliar a área em unidades de conservação e respeitar a legislação florestal.
Com cerca de oito em cada dez hectares em terras privadas e a falta crônica de orçamento de órgãos ambientais para desapropriar esses imóveis e criar áreas protegidas públicas, as reservas privadas despontam para juntar os caquinhos do Cerrado.
É o que fez o professor de Geografia e consultor de entidades ambientalistas Adolpho Kesselssing. Mais de 40 anos de trabalho acumularam dinheiro para comprar terras e criar a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Santuário Beija Flor, em Colinas do Sul (GO).
Seus quase 9 hectares se conectam aos 90 hectares da Reserva Legal de uma fazenda vizinha, compondo um maciço rico em fauna silvestre rumo ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. “Estamos tentando convencer mais vizinhos a engrossar o corredor”, conta. Alguns fazendeiros temem perder as terras e topam com dura burocracia para criar RPPNs, que na realidade seguem com os donos, abrem alas a desconto em impostos e turismo. “Mas tem uma ordem trocada no país. É muito mais fácil desmatar do que criar uma reserva”, reclama Kesselssing.
Corredores são citados na lei federal de parques e outras unidades de conservação, de 2000, e no código florestal de 2012, mas sua implantação não foi regrada nessas normas. Isso poderia incentivar a interligação de maciços de vegetação nativa, conservada ou a recuperar.
Por isso é fundamental acelerar a implantação da legislação florestal, defende o biólogo, mestre em Geoprocessamento Ambiental pela Universidade de Brasília (UnB) e analista no Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Samuel Schwaida.
“É estratégico que os estados acelerem a validação de cadastros ambientais para disparar planos de recuperação da vegetação nativa. Esse é hoje um grande gargalo”, analisa.
Outro possível pulo do gato para conectar áreas conservadas são as grandes trilhas. Elas se espalham por milhares de quilômetros no Brasil graças à ação pareada de governos e sociedade, amparada por enquanto em portarias federais. Em outros países, elas já fazem história. Como trouxe reportagem nossa em 2018, nos Estados Unidos trajetos como a Appalachian Trail, pensada desde 1900, unem conservação de animais e plantas, turismo e geração de empregos. Ela tem 3,5 mil km. “É a mais longa unidade de conservação dos Estados Unidos”, pontua Schwaida.
Essas rotas não crescem ainda mais no Brasil por entraves legais e preconceito. Desde 2017, um projeto de lei tramita no parlamento federal para regrar o trânsito por trilhas em propriedades privadas rumo a montanhas, cavernas, praias, rios e cachoeiras.
“A cultura nacional não entende e valoriza as grandes trilhas. Muitos fazendeiros se fecham desconfiados de quem está circulando por suas terras. É importante valorizar e recompensar os proprietários parceiros das trilhas de longo curso”, destaca Schwaida.
Nesse sentido, Pedro Bruzzi, superintendente-executivo da Fundação Pró-Natureza, lembra que “conservar a natureza é um bom negócio que pode ser remunerado por exemplo com pagamentos por serviços ambientais, turismo sustentável, créditos de carbono e de biodiversidade”.
Para unir as pontas da conservação e uso sustentável da natureza, um mosaico é planejado há 6 anos na Chapada dos Veadeiros. Ele promoveria a gestão integrada e conjunta de unidades de conservação, fazendas e cidades. O modelo serve outros pontos do país, como no norte e noroeste de Minas Gerais e sudoeste da Bahia, onde o Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu foi reconhecido pelo MMA em 2019.
“É uma ação fundamental para conservar uma das últimas fronteiras do Cerrado”, pontua Pedro Bruzzi, da Fundação Pró-Natureza. Os estudos do mosaico Veadeiros-Paranã são apoiados por entidades e recursos nacionais e internacionais. Azeitar a iniciativa beneficiará de pessoas a onças-pintadas.
“A presença da espécie indica que os ambientes estão saudáveis, favorecendo a extração sustentável de recursos da biodiversidade, o ecoturismo, a produção rural e outras atividades econômicas”, destaca Felipe Feliciani, analista de conservação do WWF-Brasil.
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