
“Não queremos ir embora”
Entre ruínas que aumentam cada vez mais, moradores de Atafona mantêm intacta a memória e o senso de pertencimento
Reportagem por Júlia Mendes
Fotos e vídeos por Thiago Freitas
Nacional e até mundialmente, Atafona é conhecida como “o local que está sendo engolido pelo mar”. Mas para os moradores e frequentadores, o distrito é muito mais que isso. Há quem diga que a areia da praia é monazítica, que tranquiliza qualquer um que passe por ali. Ao pisar em Atafona, é possível sentir um vento intenso e, ao mesmo tempo, agradável. A corrente, conhecida como vento nordeste, impede que o lugar seja assolado pelo calor do Rio de Janeiro e torna os moradores ainda mais apaixonados pelo distrito. Ao caminhar por Atafona, meus braços e pernas ficam a todo momento com areia grudada, principalmente quando subimos nas enormes dunas da praia. Mas, segundo os moradores, já é de costume a areia dali fazer parte de seus corpos – algo que os parece pouco incomodar, muito pelo contrário. Apesar do avanço do mar, ninguém planeja sair de Atafona, até mesmo os jovens.
Andando pelas ruas do distrito, é quase impossível encontrar muros altos nas casas. O que vemos, no entanto, são moradores apreciando uma tarde pacata na varanda de casa, com os cabelos voando ao passar do vento nordeste. Vira e mexe, alguém anda na calçada de um conhecido, se cumprimentam e uma longa conversa se inicia. Quem é de fora, pode não ver muito o que fazer no local, se não ir à praia, revisitar amigos e família e jogar conversa fora. E é exatamente isso que encanta os moradores e frequentadores de Atafona.

Camila Hissa, de 34 anos, mora desde sempre no distrito e hoje é gerente do Restaurante do Ricardinho, posse de seu falecido pai Ricardo. O estabelecimento já teve 4 endereços diferentes ao longo dos anos, forçado pelo avanço do mar sobre cada uma das sedes. Atualmente em sua quinta localização, o restaurante é um dos comércios mais conhecidos de Atafona, frequentado por moradores, veranistas e turistas. Camila conta que, além da perda material que o avanço do mar trouxe para ela e outras famílias, o que mais impacta são as perdas das lembranças dos locais onde viveram, trabalhavam ou estudavam. “Ele [o mar] tira da gente a oportunidade de retornar para um local onde convivemos com nossos avós, onde tivemos uma infância na rua onde a gente brincava e viveu momentos”, disse.
No entanto, para ela, não há lugar melhor para se morar, senão Atafona. Apesar de ter tido muitas oportunidades, nunca cogitou sair do local. Hoje, com um filho de 7 anos, Camila pretende criá-lo em torno de memórias e vivências dela e da família no distrito. “Atafona é tão amada porque tem essa misticidade, essa coisa que é difícil de encontrar. É um lugar onde o vento é diferente e aqui você vê pessoas riquíssimas junto com pessoas simples num bar conversando, isso é algo que acontece muito. É onde tem silêncio, ar fresco e segurança”, contou. “Enquanto existir Atafona, eu estarei aqui.”

Ao conversar com moradores e frequentadores, o avanço do mar parece ser secundário diante da possibilidade de viver no distrito até quando não for mais possível. Inclusive os jovens, como no caso de Marina Leite e Kauan Amaral.
Estudante de jornalismo na capital do estado, onde vive, Marina passou – e passa até hoje – todos os verões de sua vida em Atafona e, no futuro, pretende morar no distrito. Segundo ela, o que faz o lugar ser ainda mais especial são as memórias criadas com a família e amigos ao longo do tempo. “Toda vez que eu venho pra cá, eu encontro com os mesmos amigos e a gente fica sentado lembrando das coisas que fazíamos aqui quando criança… E mesmo agora que as pessoas pensam muito em Atafona como o lugar que está sendo levado pelo mar, eu acho que é isso que fica, a memória. E a gente vai embora depois do verão mais triste porque queremos logo voltar”, contou.
Por outro lado, é difícil pensar que um dia o local onde cresceu e criou tantas memórias pode vir a acabar. “Eu e meus amigos sempre pensamos em quanto tempo Atafona ainda tem. Quantas memórias a gente ainda vai fazer? Quando tivermos netos, será que eles também vão poder criar memórias aqui?”, questiona Marina. Por isso é tão importante, segundo ela, que algo seja feito para que Atafona tenha ainda mais tempo, que mais pessoas possam viver e frequentar ali.
“A gente [sua família] perdeu a nossa primeira casa e compramos outra porque podemos fazer isso. Mas e as pessoas que perderam casas e não têm condições? Perdem uma casa e vão pra onde? Alguma coisa tem que ser feita. Todos que moram, frequentam e têm amor por esse local não querem que Atafona seja lembrada assim, só como ‘o lugar que desapareceu ou que pode desaparecer’. Porque Atafona é muito mais que isso”, completou.


Kauan Amaral, de 19 anos, é morador do distrito desde que nasceu. A praia, o frescor e a natureza do local são, para ele, aspectos diferenciais em lugares para se morar. Kauan conta que sente grande diferença no clima ao sair de Atafona e chegar em Campos dos Goytacazes, cerca de 38 km de distância do distrito. “Campos, por exemplo, é muito calor. Toda vez que eu vou para lá, é como se eu perdesse 5 dias de vida. Não sinto um vento e quase não vejo árvores”, contou. Ao lado dos amigos, o jovem vai à praia, ao local da antiga Ilha da Convivência, e tem como um de suas atividades prediletas ver o nascer do sol na praia de Atafona.
No entanto, segundo ele, a frustração é grande quando vê casas caindo, ruas sendo destruídas e nada sendo feito. “Em 2024, a ONU disse que até 2050 o mar vai subir 21 cm em Atafona. Então é uma coisa que a gente tem que levar a sério porque se nada for feito, vamos perder toda nossa história”, comentou. Para ele, a ação do poder público é essencial, mas os jovens também têm seu papel nesse contexto, ao entenderem a importância de preservar e valorizar o próprio território e cobrar os tomadores de decisão.
“Nós, jovens, somos o futuro. Eu acho que se a gente agir agora, num futuro próximo a gente consegue sim mudar alguma coisa. Também espero que não seja só por aqui, isso tem que ser uma coisa coletiva mundialmente, porque 1% do mundo fazendo uma coisa, é bom, mas não é suficiente. O coletivo é muito importante”, completou.
Vínculo territorial transborda para a arte
“Atafona é minha grande musa inspiradora”, conta Aluysio Barbosa, que além de jornalista, é poeta e tem no território o seu principal tema de poesias. O artista foi morador durante 11 anos e frequenta o distrito desde criança. Para ele, o amor pelo balneário é algo singular. “Atafona é igual ópera. Se você ouve a primeira vez e não gosta, você pode até passar a gostar, mas nunca vai fazer parte da sua alma”, disse. O mar, nas palavras dele, faz com que as memórias fiquem submergidas, mas não há força que as consiga apagar. A cada esquina, rua ou bar, há uma história.
muda
a memória sai da toca
sobe pela palafita
ainda escorrendo lama
e me fita
com olhos de caranguejo
entre as tábuas do piso
do bar do espanhol
quando o pontal era ponta
tinha fé de igreja
e luz de farol
na boca do mangue
passei minha rede de arrasto
mas só peguei filhotes de bagre
que me ferraram o pé
ao chutá-los de volta à água
até que pedro me ensinou
a pegar pitu de mão
entre raízes do mato
na beira do alagadiço
hoje passo no mangue
e não piso na lama
mas na asfixia lenta
dos aterros do homem
e do avanço do mar
perto das ilhas da convivência e pessanha
siamesas da mesma terra
onde ficou minha casca da muda
de caranguejo a espera-maré
atafona, 06/2000
Ines Vidipo é dona do “Casa bar erosão”, um local que, segundo ela, é bar e ao mesmo tempo uma casa para “quem quiser chegar”. Localizado praticamente na areia da praia, o estabelecimento é lugar de reunião com amigos, relaxamento e conforto, além da renda que adquire com o consumo de banhistas. Antes de abrir o Casa-bar erosão, Ines tinha o bar Birosca, que precisou ser fechado devido ao avanço do mar. Hoje, ela aproveita o tempo que tem com o atual estabelecimento. “Curtir essa natureza maravilhosa, não tem coisa melhor, um sol nascendo, uma lua e ver a luta dos pescadores entrando e saindo desse mar. Isso é muito bom, disse. “Eu sou apaixonada por Atafona. E até onde der, eu continuo aqui.”


Ao entrar no bar, com os pés sujos de areia, vemos uma varanda com uma parede pintada de diversas cores fortes e objetos pendurados que remetem à praia. Dona Ines faz qualquer um que chega ali se sentir em casa e aproveitar cada segundo, mesmo que não saiba ainda por quanto tempo. “Atafona é resistência. A natureza vem tentando, tomando, mas eu acho que o amor que todo mundo tem por aqui segura muita coisa”, contou. Ao fundo, uma música com ritmo de reggae toca. Ines a compôs com o auxílio da Inteligência Artificial.
“Como diz ali a letra, é um encanto profundo. Na beira da praia eu me sinto no mundo. Minhas filhas me perguntam: ‘Mãe, você não vai embora não?’ Eu digo que não. Não penso em sair daqui”, completou Ines.
Sociedade civil luta pelo seu território
Criada em 2019 por moradores de Atafona indignados com a falta de uma ação efetiva em seu território, a Associação SOS Atafona tem como um dos seus principais objetivos a conscientização e mobilização em torno da preservação da região. Em abril deste ano, a “Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida Humana – SOS Atafona” foi reconhecida como Utilidade Pública pela Câmara Municipal de São João da Barra.
Atual presidente da SOS, Sônia Ferreira conta que uma das primeiras conquistas do grupo foi em relação a areias em uma das principais ruas de Atafona. A Avenida Atlântica é um dos meios de se chegar ao distrito e passou a ficar repleta de areia no asfalto por conta da formação de enormes dunas no entorno e o vento intenso, impedindo carros e pedestres de transitarem. Com ajuda do Ministério Público e por meio de uma ação judicial, a SOS conseguiu que a prefeitura tirasse periodicamente as areias da avenida – o que acontece até hoje.
“Hoje, na nossa diretoria, estamos com o foco grande na erosão”, contou Sônia ao falar sobre o processo de licitação para que haja um estudo sobre a situação de Atafona e, enfim, estruturar possibilidades viáveis de soluções. “Nós estamos apertando bastante, pedindo muito, porque Atafona não está esperando muito, a praia e o mar não estão esperando. Ele está vindo com muita força e a gente está lutando para que isso [o estudo] saia logo”, disse.

Apartidária, a SOS Atafona pretende manter o diálogo com qualquer político ou órgão que demonstre interesse em ajudar nas demandas de Atafona, segundo Sônia. “A gente não está negando a ajuda de ninguém. Nós somos completamente apolíticos e a ajuda que vier vai ser muito bem-vinda”. Já receberam até mesmo contatos de políticos de outras regiões e de deputados federais que estão olhando para o cenário do local.
Durante a pandemia, no ano de 2020, muitos moradores de Campos dos Goytacazes que eram veranistas no balneário, se estabeleceram no local e formaram o “Quarentena”. Atualmente, esse grupo juntou-se ao SOS Atafona com o objetivo de uma união de esforços para que algo seja feito no distrito.
“A gente se une para vigiar e denunciar. Estamos sempre tentando conseguir uma ajuda, seja na esfera federal ou onde quer que seja”, diz a veranista Patrícia Abud, uma das integrantes do Quarentena. Veranista em Atafona, Patrícia conta que ela e a associação SOS não pretendem parar enquanto algo não for feito. “São muitas histórias aqui, muitas amizades… E vendo essa situação toda de Atafona, a gente resolveu se manifestar e nos unir para fazer alguma coisa pelo lugar”, completou.
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