“Você é eternamente responsável pelo o que emite”. Em entrevista ao podcast Planeta A, a gerente de Políticas Climáticas do World Resources Institute (WRI), Miriam Garcia, discute o papel dos seres humanos na crise climática e as disparidades nas emissões de CO2 entre os países. A conversa abordou também os desafios e as possíveis soluções para reduzir as emissões de gases de efeito estufa no Brasil.
A entrevista, gravada em setembro de 2024, foi concedida ao geógrafo Bruno Araújo e republicada na íntegra em ((o))eco.
Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, Miriam Garcia explicou, em pouco mais de 27 minutos de conversa, como o Brasil poderia diminuir suas emissões, qual a importância da transversalidade entre as nações quando se trata de aquecimento global e a impossibilidade de pensar em transição energética sem considerar os mais atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas.
Escute o episódio completo do podcast Planeta A:
Confira a entrevista abaixo:
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Bruno Araújo: De início, Miriam, eu gostaria de te perguntar quais são as fontes emissoras desses gases do efeito estufa que provocam a crise climática?
Miriam Garcia: Quando pensamos na questão do aquecimento global e da mudança do clima, é bem importante dizer que a ciência afirma de forma muito contundente que as alterações climáticas são devido às emissões humanas de gases de efeito estufa. Quando nós olhamos o perfil de emissões de efeito estufa no mundo, o setor de energia representa mais de 70% dessas emissões. E aí você pode colocar nessa conta transporte, eletricidade, geração de calor e emissões fugitivas de queima de combustível fóssil.
A maioria das emissões de CO2 da energia, quase que 90% é proveniente do uso dos combustíveis fósseis, especialmente para a geração de eletricidade, calor, transporte, fabricação e consumo. Então, por exemplo, a agropecuária, mundialmente, representa 12% dessas emissões. Uso da Terra, mudança do uso da terra e silvicultura representam 6,5%. Processos industriais também entram na contabilidade, principalmente para produção de materiais ou para setores que a gente chama de hard to abate, que são processos industriais que por si só são muito consumidores de energia na produção, e aí a gente pensa na indústria química, no cimento e no aço.
E também é importante destacar que os resíduos têm uma contribuição, incluindo os aterros sanitários, na emissão de metano de aproximadamente 3,2%.
Aproveito aqui para falar que o WRI, como instituto de pesquisa global, tem uma plataforma que se chama Climate Watch, que permite ver toda essa evolução é das emissões, dos gases de efeito estufa e que todo ano a gente produz uma análise de quem são os top 10 emissores do mundo.
Hoje, os top 3 de gases de efeito estufa são China e União Europeia, olhando a União Europeia como um bloco de 27 países, e os Estados Unidos. Esses três contribuem para 42,6% das emissões globais. Então é muito representativo, principalmente quando a gente pensa que os últimos 100 países da lista só representam 2,9% das emissões, ou seja, quase 3%.
Então sabemos que existem responsabilidades diferenciadas para cada país, mas queria que investigássemos agora, quais são as ações concretas que cada país pode ter para reduzir as suas emissões de gases do efeito estufa na atmosfera?
É importante destacar que, em termos de resposta global para as emissões, o acordo de Paris prevê que cada país apresente ao secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança de Clima, um documento que contenha o seu plano de redução de emissões, que a gente chama de mitigação, de adaptação e, no caso dos países do sul global, as necessidades de financiamento, transferência de tecnologia ou de capacidades para implementar a sua rota de redução de emissão. E por meio desse documento, os países, que são as contribuições nacionalmente determinadas – a gente utiliza muito a sigla NDC, em inglês – apresentam a cada 5 anos quais são as suas estratégias de desenvolvimento de baixa emissão de gases de efeito estufa.
Além disso, os países também são convidados a apresentar estratégias de longo prazo, ou seja, qual é a visão do país até 2050 para redução das emissões de gases de efeito estufa.
O Brasil figura dentro do top 10 das economias do planeta. Entretanto, o perfil de emissões brasileiro é um perfil diferente das grandes economias do planeta. Como é o perfil das emissões de gases de efeito estufa do Brasil se comparado ao dessas grandes economias?

É extremamente importante entendermos qual é o perfil do Brasil, porque ele é completamente diferente das outras economias. Então, não tem receita de bolo para a questão climática, a não ser o objetivo comum, que é a busca da redução de emissões de gases de efeito estufa. Mas quando você olha para a questão da adaptação do financiamento, você precisa de várias receitas para que o dinheiro possa chegar na ponta, para estratégias de mitigação também, porque o perfil dos países é diferente. O Brasil é considerado hoje o sétimo maior emissor do mundo, mas, apesar dessa alta colocação, é importante destacar que é com uma participação aproximada de 3% das emissões anuais.
E por que os dados do Brasil diferem do resto do mundo? As mudanças do uso da terra, que incluem o desmatamento, não só Amazônia, mas dos outros biomas, por exemplo, como Mata Atlântica e Cerrado, representam aproximadamente 50% das nossas emissões, seguido do setor da agropecuária, que representa aproximadamente 27% das emissões brutas do país. Energia vem só em terceiro lugar.
Então, quando você olha o gráfico do que acontece no mundo de forma agregada e você olha o gráfico do Brasil, você vê que tem uma diferença, por conta da matriz elétrica brasileira, que é bem mais limpa do que o resto das matrizes elétricas dos outros países. Mas principalmente porque a gente tem um grande problema a ser enfrentado, que é a economia do desmatamento, ela é ilegal, então ela é a maior contribuidora. São importantes ações de comando e controle para inibir essa economia ilegal.
Agora, se a gente pensar em um processo econômico do Brasil, a segunda fonte de emissão, que é a agropecuária, é o setor econômico que mais contribui. E aí podemos pensar também na indústria. O setor industrial do Brasil contribui com aproximadamente 6% em relação ao perfil de emissões. É importante dizer também que o setor industrial do Brasil passou nos últimos anos por uma desaceleração, então hoje tem uma participação menor no PIB da economia.
Por isso, inclusive, nos últimos anos ficou muito em alta a discussão sobre o controle do desmatamento e a desregulação das políticas ambientais de comando e controle do último governo federal. E celebrou-se muito quando a Marina Silva assumiu o Ministério do Meio Ambiente, tendo em vista a perspectiva e a expectativa de que o Brasil passasse, a partir de então, a ter um mecanismo de comando e controle mais rígido e que pudesse ter um controle do desmatamento. Os dados mais recentes do desmatamento no Brasil são contraditórios, vamos dizer assim. Se na Amazônia a gente tem um aumento da proteção e uma redução do desmatamento, por outro lado, a gente vê que no Cerrado e no Pantanal há um aumento do desmatamento. De que maneira as políticas brasileiras de redução de emissões de gases de efeito estufa tem evoluído nos últimos anos, né? Como o estado brasileiro tem se portado diante da necessidade de reduzir as emissões?
Quando olhamos historicamente, é importante destacar que em 2009 foi, digamos, homologada, a primeira lei que se refere à política nacional de mudança do clima, né? Então, estamos completando, em 2024, 15 anos da PNMC.
De lá para cá, o Brasil teve alguns sucessos por alguns momentos em termos de redução do desmatamento, com picos em outros momentos, e agora a redução na Amazônia, mas com aumento no Cerrado. Mas de forma geral, o que o conjunto de dados indica, e essa é até uma análise trazida pelo Observatório do Clima, que é uma coalizão de organizações da sociedade civil que trabalham com a temática aqui no Brasil, é que a curva de emissões do Brasil permanece essencialmente igual antes da adoção da política nacional sobre mudança de clima.
O que é importante destacar é que há uma vontade muito grande dessa nova administração de endereçar a questão climática, de endereçar a questão ambiental. Então, em novembro do ano passado, 2023, o governo brasileiro submeteu uma atualização da sua NDC ao secretariado da Convenção-Quadro com compromissos de redução de emissões de gases de efeito estufa.
Então é importante destacar que nessa nova janela de oportunidade que temos para acelerar e a necessidade de acelerar porque já vivemos num momento de emergência climática, o compromisso do Brasil é de reduzir em 48% até 2025 as suas emissões e 53% até 2030 em relação a uma linha de base de 2005.

É importante destacar também que todos os setores precisam contribuir e para além do compromisso da NDC, nós temos visto dentro do governo federal iniciativas para deixar a agenda climática cada vez mais transversal.
A agenda climática não deve ser somente responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, do Brasil ou de qualquer outro país no mundo. É uma questão que tem impactos econômicos e sociais e por isso os outros ministérios precisam também, não só de um entendimento da agenda, mas como eles agregam a agenda na sua tomada de decisão, na formulação de políticas públicas pensando nos indicadores. Podemos destacar aqui no Brasil o plano de transformação ecológica. Esse plano foi lançado pelo Ministério da Fazenda, na COP 28, em Dubai, no ano passado, e tem por objetivo promover uma mudança nos paradigmas econômicos, tecnológicos, pensando um desenvolvimento sustentável.
Ainda aguardamos quais vão ser os próximos capítulos, mas já é um indicativo de que o Ministério da Fazenda vê a agenda de clima como de alta relevância para o seu planejamento. E podemos pensar também em outras iniciativas, como a iniciativa do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, que lança uma nova indústria do Brasil, que é um programa que busca também, através de instrumentos tradicionais de políticas públicas, pensando subsídio, empréstimos, ampliação de investimentos, mas com incentivos para que seja uma industrialização verde.
Podemos pensar também em questões conectadas ao Plano Brasileiro de Baixa Agricultura, o Plano ABC+, então toda essa agenda quando ela começa a se movimentar no que a gente chama de nível doméstico, permite a transversalidade do tema de clima.
Esse setor que promove essa economia ilegal também significa uma barreira para o enfrentamento da crise climática e para a promoção da redução das emissões. Na sua opinião, quais são as maiores barreiras que hoje enfrentamos no Brasil para a redução das emissões dos gases do efeito estufa?
Não tem uma única resposta para reduzir a curva de emissões do Brasil. Nós precisamos trabalhar com uma caixa de ferramentas. Certamente, a ferramenta do comando e controle para ação de desmatamento é essencial, sem ela não há como combater a ilegalidade.
Mas também é necessário olhar a parte de incentivos econômicos. Incentivos econômicos são necessários para conservação de áreas naturais, para recuperação de áreas degradadas e para a restauração ecológica. Você também precisa de parte de incentivo econômico para promover a descarbonização da indústria do Brasil, porque é somente com essa descarbonização que você vai conseguir. Incentivo econômico para mudar, por exemplo, a questão de aterros que existem no país e que são responsáveis pelas emissões dos resíduos. E também a necessidade de se ter um debate participativo com a sociedade sobre qual trajetória de desenvolvimento que nós queremos. Então, o debate da energia no Brasil também é um debate necessário sobre a questão dos combustíveis fósseis. Qual é o modelo de desenvolvimento que o país quer? É o modelo que vai gerar riquezas e ao mesmo tempo promover a recuperação das áreas degradadas, a conservação da biodiversidade e a redução das emissões de gases de efeito estufa?
Então, um modelo que promova inclusão social e que possa também nos colocar numa trajetória de uma economia de baixo carbono. Ou seja, as barreiras são enormes. Elas não são fáceis de serem superadas, mas é necessário. Não temos outro caminho a não ser enfrentar essas barreiras, porque se não, elas só vão aumentar e a hora que a gente se der conta, as perdas vão ser muito maiores.
(…) Quando a chuva cai e a rua inunda, ou quando a gente tem uma onda de calor muito intensa, isso tem impacto nas nossas vidas e, com certeza, impactos econômicos. O impacto econômico, por exemplo, da reconstrução de uma cidade afetada por uma quantidade colossal de chuva é muito grande. E aí o que eu queria te perguntar é justamente isso, como as mudanças climáticas podem afetar a economia brasileira se as emissões de gases do efeito estufa não forem controladas?
Temos uma ordem de grandeza, mas a mensuração deles ainda não é totalmente real porque só quando a tragédia acontece dá para entender o tamanho da dimensão dela. As modelagens econômicas tem evoluído muito para poder tentar captar os riscos climáticos, internalizar dentro dos modelos. Mas, por exemplo, a tragédia que aconteceu no Rio Grande do Sul nos mostra a perda do PIB do estado, a necessidade de reconstrução de cidades inteiras no estado, debates até se algumas cidades devem ser reconstruídas onde elas existiram desde sempre, porque elas continuarão sujeitas a outros eventos climáticos extremo. Então, tem alguns números. Por exemplo, em 2017 podemos colocar que o Brasil perdeu 2,4 milhões de toneladas da sua produção de soja e milho devido a uma infraestrutura inadequada que traz um prejuízo de 2 bilhões. A gente tem esses números, o quanto a tragédia no Rio Grande do Sul vai impactar o PIB do estado. Então, ter esse olhar é muito importante para o tomador de decisão, porque ele consegue internalizar o custo, e aí o custo da inação, o custo de não fazer nada vai ser maior do que o custo da ação.
Então, essa é uma forma também de chamar atenção para o problema das mudanças climáticas, para mostrar: ‘não fazer nada tem um custo econômico, um custo social, um custo ecológico muito maior do que se fizer’. Então, o que parece agora como um gasto, na verdade é um investimento que você está fazendo para evitar uma perda lá na frente.
E essa narrativa, ela é muito importante de ser utilizada para os diferentes tomadores de decisão para que ali você olhe: ‘Ah, se eu aloco o recurso de forma mais racional’, a forma mais racional de se fazer a alocação de recurso é levando em conta os riscos climáticos. Não há outra forma racional de se fazer a alocação de recursos que não seja essa.
A gente já abordou a desigualdade Internacional, em que determinados países China, União Europeia, como um conjunto de países, e os Estados Unidos representam mais do que 45% das emissões de gases de efeito estufa planetárias. Mas me parece que ainda há uma desigualdade em uma escala menor ao observar as pessoas, a humanidade, os agentes que promovem a emissão desses gases. E aí tem dados, por exemplo, que apontam que são as pessoas mais ricas, aquelas que possuem hábitos de vida que produzem e emitem mais gases do efeito estufa. Mas não só o seu hábito de vida. Essas pessoas com muita riqueza, na maioria das vezes, são donas de tamanha riqueza, porque também são donas dos meios de produção, ou seja, fábricas, indústrias e grandes comércios, que na própria atividade produtiva está associada inerentemente à emissão desses gases. Em contrapartida, ao observar as pessoas mais empobrecidas, a gente repara que as emissões advindas desse dessa classe social são muito reduzidas. Então, há responsabilidades diferenciadas. Eu queria que você tratasse um pouco dessa diferença, dessa desigualdade. Porque ao observar os impactos da crise, a gente consegue fazer um entendimento inversamente proporcional, a partir do momento em que são as pessoas mais empobrecidas, aquelas que têm maior potencialidade de sofrer com os impactos da crise climática.
Exato, é o princípio de responsabilidade comum, mas diferenciada, é o princípio norteador da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e é retomada no acordo de Paris, porque exatamente essa dinâmica. Para além de quem são os top 10 emissores do último ano, é importante olhar quem historicamente é responsável pelo acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera. É uma soma cumulativa.
E hoje, quando você vê quais são os países mais afetados, são as nações que menos contribuíram para isso. Do ponto de vista das negociações internacionais, há uma mobilização muito grande desses países que muitas vezes são países pequenos, sem muitos recursos financeiros, ou seja, não possuem grandes corpos diplomáticos que se unem. Então, por exemplo, tem Aliança das pequenas ilhas, porque há assim indicação da ciência de que a nação que eles vivem, o território que eles vivem vão desaparecer, com a subida do mar, vai deixar de existir. E de que forma aquele país contribuiu para a emissão de gases de efeito estufa?
Nós temos tido uma discussão cada vez maior também sobre a questão de perdas e danos. Não é só financiamento para apoiar ações de mitigação e de adaptação, mas reconhecendo exatamente nessa lógica de que você terá danos irreversíveis e que você terá perdas que vão acontecer. Então nós temos visto cada vez mais, e é muito importante que cresça ainda mais, o debate sobre racismo ambiental aqui no Brasil.
E como eu disse anteriormente, essa lente da justiça climática como uma lente transversal para as ações climáticas, para exatamente endereçar um desses pontos, que foram os que menos contribuíram para o problema que todos nós enfrentamos, estarão ali na linha de frente das consequências das alterações climáticas.
Então é um problema de justiça quando a gente olha do ponto de vista internacional, mas também do ponto de vista nacional e que precisa ser endereçado, de uma forma muito séria, muito robusta e com um debate participativo. Não existe um debate para endereçar a questão da justiça climática sem as pessoas mais afetadas.
Miriam, e por final queria te pedir algumas recomendações de leitura, de filme, de série, de música. Pode ser tanto a ver com a discussão sobre emissões, sobre mudanças climáticas e pode ser também um conto, uma crônica, enfim, um filme fantasia. O que que você tá ouvindo? O que que você tá assistindo?
Bom, eu acabei de ver aqui no YouTube um pouquinho antes de entrar e não é pra fazer, é um super jabá do WRI, mas é porque ficou um produto muito legal. É uma série de vídeos sobre a importância de regenerar a floresta e produzir alimentos na Amazônia. Uma composição de 4 vídeos que sistematizam brevemente a experiência de trabalhar do planejamento, implementação e a restauração e assentamentos da reforma agrária na Amazônia.
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