A rainha do Pantanal em carne, osso e pintas
Acuada por séculos de perda de habitat e caça, a onça-pintada só se mostra sem inibição no Pantanal, onde Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e o Chaco se encontram
Por Ana Lúcia Azevedo
Fotos e Vídeos: Márcia Foletto
Na estação seca, o azul do céu no Pantanal parece derreter no vapor que emana do solo sob o sol de quase meio-dia. Mas Patrícia ignora o calor de 40ºC. Ela emerge da mata e caminha com elegância felina à beira de um rio pantaneiro. Transmite o encantamento das miragens, visão de um Brasil selvagem cada vez mais presente na imaginação do que na realidade.
Mas Patrícia é real. Mergulha na água da cor do cobre e reaparece no meio de um campo flutuante de ninfeias em flor, pintado de rosa, lilás, amarelo e branco. Há suavidade e delicadeza em forma de músculos, garras e dentes.
Patrícia desconhece ter um nome. Mas já se acostumou com as pessoas como parte da paisagem. Mal as olha, embora seja o foco das atenções. Patrícia não para. Ela é mãe e precisa alimentar a prole. Nada no rio, escala árvores para arriscar um bote certeiro. Quase flutua sobre os juncos em emboscada. Sobe e desce barrancos. E os humanos, que dominam o planeta, se rendem a ela, se esforçam para acompanhá-la e compartilhar alguns momentos com uma força da natureza em toda a sua majestade.
A onça-pintada (Panthera onca) Patrícia é uma das mais de 300 de sua espécie que fazem de Porto Jofre, no Pantanal de Poconé, em Mato Grosso, um dos poucos lugares da Terra onde ainda se pode observar animais selvagens em plenitude.
No Jofre, situado no fim da rodovia Transpantaneira, a porta de entrada do Pantanal Norte, está uma das maiores concentrações de onças-pintadas do mundo, dez vezes mais que a média estimada para a espécie. E as pintadas ali não são apenas numerosas. São, sobretudo, menos desconfiadas de seu maior inimigo e único predador: o ser humano.
Um microcosmo dos muitos Brasis
A onça-pintada é ela própria uma síntese da natureza do Brasil. Por trás dos olhos dourados das pintadas há a saga dos animais selvagens de um país inteiro. Ela está no topo da cadeia alimentar e só existe onde o equilíbrio impera.
Símbolo oficial da biodiversidade, a pintada desafia o presente, como uma visão do passado e um vislumbre do futuro. A espécie já perdeu 51% de seu território e é um indicador do estado de conservação de cada um dos biomas brasileiros. Resiste na Amazônia (onde dificilmente é visível na mata fechada) e no Pantanal, tornou-se rara no Cerrado, está quase extinta na Mata Atlântica e na Caatinga, e não existe mais no Pampa.
“Se há onça, há natureza preservada. Terra de onça é terra de esperança e de desafio de conservar a riqueza viva”, afirma Fernando Tortato, um dos maiores especialistas em onças do país, doutor em ecologia e biodiversidade e pesquisador da Panthera Brasil, uma ONG dedicada exclusivamente à conservação de felinos selvagens.
Acuada por séculos de perda de habitat e caça, a onça se recolheu às profundezas das florestas e à escuridão dos ermos. Ela se mostra sem inibição somente no coração do Brasil, o Pantanal, onde Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e o Chaco se encontram e se misturam.
Exuberâncias do Paraíso
A usina de vida pantaneira gera arranjos improváveis de exuberâncias. Presas e predadores lado a lado no paraíso. Tuiuiús e garças-mouras dividem a mesma árvore com gaviões-pretos. Capivaras, veados e jacarés compartilham os alagados.
As águas fervilham de peixes, de piranhas a ornamentais acarás. Grandes peixes, como o pacu, semeiam árvores, como o tucum, o ingá e o copari. No ar, na água e na terra há insetos em profusão, de mosquitos que infernizam a borboletas que encantam.
E, soberana, reguladora da cadeia alimentar, está a onça-pintada, rainha incontestável do Pantanal que, como ela e seus súditos, só continuará a existir enquanto houver água, base de toda a vida.
“Mais que riqueza em número de espécies, o Pantanal se notabiliza pela abundância das populações delas”, frisa Walfrido Moraes Tomas, cientista da Embrapa-Pantanal, em Corumbá (MS), e um dos maiores especialistas na biodiversidade pantaneira. Tomas é um dos autores de estudo publicado na Scientific Reports que calculou o impacto das queimadas em 2020 na fauna e estimou em 17 milhões o número de vertebrados mortos.
Além de Porto Jofre, os outros lugares com grande concentração de pintadas são a Estação Ecológica de Taiamã, em Cáceres, também no Mato Grosso e de acesso restrito; e o Refúgio Ecológico Caiman, no Pantanal Sul (MS).
“O Pantanal do Jofre é o melhor lugar do mundo para você observar uma onça-pintada em seu ambiente selvagem”, assegura Tortato.
E, soberana, reguladora da cadeia alimentar, está a onça-pintada, rainha incontestável do Pantanal que, como ela e seus súditos, só continuará a existir enquanto houver água, base de toda a vida.
Encontro com o espírito da natureza
Conhecida como o espírito das matas por ser quase impossível de se ver na natureza devido à camuflagem perfeita e aos hábitos esquivos, a onça se materializa à frente dos olhos humanos no Jofre. “É custoso homem enxergar que tem onça”, escreveu Guimarães Rosa em “Meu tio o Iauaretê” (1969).
Em carne, ossos e pintas suscita respeito e fascínio. É, ao mesmo tempo, bela e fera. Em sua caçada, Patrícia não está sozinha. Kasimir e Krishna, seus filhotes machos de quase dois anos, adolescentes para o tempo de vida das onças, também surgem de um bosque de pimenteiras, que no Pantanal são árvores, e a acompanham.
Em breve, eles a deixarão em busca dos próprios territórios. Com a mãe, procuram aprender a caçar. Mas Patrícia está acossada pelo calor sem clemência e, por ora, tenta mantê-los afastados. Sem experiência e quase do tamanho da mãe, em vez de ajudar, eles atrapalham.
A onça, diferentemente dos outros grandes gatos, leões e tigres, não persegue a presa. Sua especialidade é a surpresa. Fica de tocaia e dá um bote, seja na água, na terra ou no ar. Filhotes atrapalhados põem tudo a perder.
A missão de Patrícia é múltipla. Conseguir comida e controlar os filhos. Há ainda os humanos de plateia. Mas esses não contam. Ela age como se não existissem.
Turistas e pesquisadores que a observam se emocionam, se assombram. Algumas pessoas choram. Não é medo. É deslumbramento. A pintada encarna a exuberância, a beleza e o poder selvagens em estado puro.
Ela impõe o devido e necessário respeito sem esforço. O jaguaretê, um de seus nomes indígenas, tem a mordida mais forte entre os felinos. Se quiser, pode esmagar o crânio humano com facilidade. Suas garras são capazes de arrancar pele e músculos de uma só patada.
Porém, diferentemente do ser humano, a onça-pintada não mata por prazer. Não há agressividade nos olhos dourados da felina, indiferente aos guinchos de gaviões e à gritaria de aracuãs e curicacas, que anunciam sua presença à medida que ela avança pela margem do rio.
Uma capivara fofoqueira emite uma espécie de latido específico. Um som que Ailton Lara, do Jaguar Camp e um dos guias mais experientes do Jofre, traduz como “fuja que aí vem onça”. Mas naquele dia Patrícia não quis saber de capivaras. Seu foco estava nos jacarés que se ocultam nos aguapés.
Aprendizado mútuo
Uma série de fatores explica a alta concentração de onças-pintadas no Pantanal Norte, mostram estudos. O primeiro é a abundância de alimento. As principais presas da pintada, os jacarés e as capivaras, são numerosos.
O segundo é uma combinação de combate da caça e perseguição do Exército aos coureiros na primeira década do século XXI. Até o combate dos coureiros, que hoje ainda atuam em lugares como Vale do Javari, na Amazônia, as onças eram massacradas no Pantanal.
Diferentemente do ser humano, a onça-pintada não mata por prazer. Não há agressividade nos olhos dourados da felina, indiferente aos guinchos de gaviões e à gritaria de aracuãs e curicacas, que anunciam sua presença à medida que ela avança pela margem do rio.
Além disso, acrescenta Tortato, a grande cheia de 1974 reduziu o conflito entre pessoas e felinos, pois muitas fazendas foram abandonadas. Com isso, menos onças foram mortas por fazendeiros temerosos de perdas em seus rebanhos.
“Em 2001, elas eram uma visão, um risco que passava no caminho”, relembra Tortato.
Com menor perseguição, aos poucos elas foram reaparecendo. Ailton Lara diz que as onças começaram a virar atração pelos idos de 2007. Quando uma onça surgia, era um espetáculo para os turistas que visitavam o Jofre para pescar e observar aves. Elas roubavam a cena. Os donos de pousadas e guias captaram a mensagem. E viram ser preciso acostumar as onças à presença humana, sem risco para ambos os lados.
“As onças foram aprendendo com a gente e a gente com as onças. Sou privilegiado de acompanhar desde o início”, enfatiza Ailton Lara, de 41 anos, guia e dono da Jaguar Camp, capaz de imitar os esturros e sons que as onças fazem para se comunicar com parceiros e filhotes.
Lara destaca que cevar a onça, isto é, oferecer comida, como alguns tentaram até a prática ser proibida em 2011, é péssima ideia e não funciona. A ceva faz a onça confundir seres humanos, que não estão em seu cardápio de 85 espécies de animais, com comida. O resultado da ceva antes da proibição foram dois ataques fatais, provocados pela falta de cautela.
Os ataques de onças-pintadas são raros. Para o Pantanal não há estatísticas, mas um estudo da Universidade Federal do Amazonas listou 77 ataques na Amazônia, 13 antes de 1950 e 64 de 1950 e 2018. Quase sempre as vítimas eram caçadores e estavam sós. Como diz a sabedoria popular, não se deve cutucar uma onça com a vara curta.
A taxa no Brasil é de menos de um ataque por ano (0,94/ano), muito baixa quando comparada aos outros felinos selvagens do mundo: leopardo (29,91/ano), tigre (18,80/ano) e leão (16,79/ano).
A literatura científica mostra que não se conhece qualquer caso de uma onça que tenha se dedicado a matar sistematicamente seres humanos. Quase todos os ataques conhecidos são autodefesa. A onça, diferentemente de leões, tigres e leopardos, prefere evitar o conflito com o ser humano.
Pesquisadores, ambientalistas, guias e barqueiros descobriram que o melhor caminho era, aos poucos, acostumar as onças à aproximação humana. No Jofre isso é feito em pequenas lanchas. As onças procuram às margens rios e corixos, os riachos pantaneiros, para beber água, descansar e caçar jacarés e capivaras.
Mas não foi de uma hora para outra que elas se habituaram aos humanos. De início, explica Tortato, eram os machos os menos tímidos. Mas os machos mudam com frequência de território e o aprendizado se perde. Tudo mudou quando as fêmeas começaram a tolerar a presença humana, salienta Tortato.
“Elas veem a mãe acostumada a humanos e se acostumam também. Aprendem a não se incomodar com pessoas. Mas, diferentemente dos machos, as fêmeas ficam próximas do território da mãe. Com isso, de geração em geração, o Jofre passou a ter onças habituadas a nós”, explica Tortato.
Lara viu Kyra, a mãe de Patrícia, romper a fronteira que separava homens e felinos no Pantanal. Ela foi uma das primeiras onças a se habituar à presença humana na região de Porto Jofre. Foi observada pela primeira vez em 2008.
Kyra abriu um caminho trilhado nos barrancos e aguapés, nas margens do São Lourenço, do Três Irmãos e de outros rios e corixos. Seus passos foram seguidos pelos filhos.
Das filhas de Kyra, Patrícia é a mais acostumada ao bicho homem. Descansa, caça e procria como se gente não houvesse. Teve filhotes habituados, dos quais a mais observada é a Medrosa. Marcela, uma das filhas de Medrosa, herdou os olhos cor de âmbar da mãe, mais escuro que o dourado usual das pintadas.
No mesmo dia em que Patrícia, Kasimir e Krishna eram vistos no Corixo Negro atrás de jacarés, guias informavam que Rio, irmão de Marcela, também estava na área.
O horário nobre das onças
Tortato ressalta que 95% do território das onças não são observáveis pelos turistas nos barcos e isso ajuda a reduzir o impacto do turismo sobre a espécie. São lugares inacessíveis, as matas de cordilheiras e vastos campos alagadiços, onde há abundância de capivaras e jacarés.
Somado a isso, o fato de elas serem predominantemente noturnas, ativas quando ninguém, principalmente suas presas, as enxergam. Na maioria das vezes que são vistas – cerca de 60% – estão descansando nas horas quentes do dia. Acompanhar caçadas, como a de Patrícia, é bem mais raro.
“Se uma onça quiser, some fácil. Quando a vemos é porque ela assim o quis ou não ligou. Só vemos as onças que querem se mostrar”, explica Tortato.
Caso de Kasimir enquanto a mãe caçava no Corixo Negro. Ele senta numa elevação sob uma árvore e parece posar para as lentes de turistas do mundo inteiro. Não demonstra agressividade ou interesse nos humanos. Olhar distante, procura captar sinais da mãe. Sozinho, ronca, ronrona, rosna e nada. O irmão Krishna há horas já havia desaparecido por trás de uma cordilheira.
Patrícia ignora os apelos do filhote. Está no fim do corixo, em busca de jacarés. Nada com desenvoltura e sua presença sob os aguapés é denunciada apenas por uma suave ondulação. Faz mais de dez tentativas. Mas os jacarés escapam.
De repente, ela muda de ideia e resolve atravessar o corixo. Num bote certeiro pega uma biguatinga distraída, que secava as penas num galho alto de uma pimenteira. Foi o primeiro registro de uma pintada capturando biguatinga. Patrícia devora em instantes a ave, mero aperitivo, insuficiente para apaziguar sua fome e menos ainda a de seus filhotes.
Exausta após um dia inteiro de tentativas frustradas, ela descansa do almoço num tronco caído, bem à frente dos barcos. A lida é dura, mas a onça a leva felinamente. Como qualquer gato, limpa as patas, os bigodes, se lambe toda até se dar por satisfeita.
Se estica ao Sol por um tempo, parece ignorar os humanos maravilhados que a observam do rio. Com altivez que caracteriza sua espécie, senhora dos últimos recantos selvagens do Brasil, ela apenas observa seus observadores.
Então, parte de novo para onde a vista não alcança em busca de uma refeição mais substancial para os filhos. A tarde chega ao fim e a noite se aproxima. É hora de ação nas matas. Vai começar o horário nobre das onças do Pantanal.
Histórias das pescadoras fantasmas e da oncinha que enfrentou as queimadas
Patrícia e sua família estão em casa no Pantanal, mas seu futuro é de aventura em terra incógnita. No caminho das onças estão os perigos da seca e do fogo das mudanças climáticas, que em 2020 transformaram em cinzas florestas que jamais haviam queimado e cujos troncos negros e retorcidos passaram a fazer parte da paisagem pantaneira.
Ousado, um macho que no fim de agosto copulou com Patrícia no Corixo Negro, quase morreu queimado em 2020.
A pintada perde território diariamente devido às queimadas e ao desmatamento, que no Pantanal é fundamentalmente para conversão de áreas naturais em pastagem e plantação.
As queimadas de 2020 destruíram uma área de 4 milhões de hectares, o equivalente a um terço do Pantanal. Nada menos que 43% das áreas queimadas não tinham histórico de fogo nas últimas décadas e algumas nunca haviam queimado antes.
Dentre essas áreas estão duas das mais importantes para as onças: o Parque Estadual Encontro das Águas, que abrange o Jofre, em Poconé, e a Estação Ecológica Taiamã, em Cáceres.
A ferocidade humana
Em Taiamã, uma ilha no Rio Paraguai, a densidade de onças pode ser ainda maior do que no Jofre. Mas a UC é pequena (11,5 mil hectares) e fora dela as onças vivem sob constante ameaça, diz Fernando Tortato, da Panthera. Conflitos com os seres humanos, quase sempre devido a ataques ao gado, as colocam em risco à volta da UC.
“Acontecem ataques a rebanhos, mas eles são relativamente poucos. A onça leva a culpa por tudo. Doença, fome, sede, acidentes, tudo entra na conta da onça e é ela que leva o tiro e morre”, lamenta Ailton Lara.
Porém, pesquisas mostram que de cada cem cabeças de gado mortas no Brasil, apenas duas são predadas por onças, sendo o atolamento na lama e doenças infecciosas as principais causas de mortalidade do rebanho.
Além dos conflitos, há caçadores esportivos, que matam pelo prazer de tirar a vida dos animais. E ainda aqueles que vendem partes do corpo das onças para o mercado clandestino para atender à medicina tradicional chinesa que usa partes de tigres como afrodisíacos. Com a proibição na China da caça ao tigre, traficantes de animais se voltaram para as onças sul-americanas.
“Muitas onças ainda são mortas no Pantanal. Mas poucos são os caçadores que exibem o resultado de sua matança. Matam secretamente e matam muito”, lamenta Tortato.
A voz da imensidão
Por isso, em Taiamã a onça é um fantasma, uma sombra, um vulto no meio da folhagem. Seu esturro ecoa pela imensidão pantaneira, mas ela permanece incógnita. Até mesmo as extraordinárias onças pescadoras, que aprenderam a capturar peixes no Rio Paraguai e seus corixos, só se mostram em raras ocasiões.
Foi numa delas que a professora de ecologia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Solange Ikeda e seus alunos se depararam com uma pintada na trilha em que estava.
“Ela nos olhou e começou a caminhar em nossa direção. Eu gelei, temi por todos. Pensei, preciso salvar meus alunos. Foi desses momentos breves que parecem eternidade, pois assim como surgiu do nada ela desapareceu em instantes. Parecia tão surpresa quanto a gente”, lembra Ikeda.
Perigos para as onças não faltam. A morte pode chegar ainda na forma de soja, cujas plantações se esgueiram aos poucos pelo Pantanal, trazendo a ameaça de secar o solo e destruir o bioma.
A onça que emergiu das cinzas
Mas as onças não estão sós em sua jornada. No Jofre e na Transpantaneira, cientistas da Panthera acompanham com colares monitorados à distância cinco delas. Querem aprender mais sobre seu comportamento e avaliar o impacto de queimadas. Entre essas onças estão Ousado e uma jovem fêmea chamada Sofia.
Sofia foi vista pela primeira vez em outubro de 2020, quando emergiu das cinzas do Pantanal queimado. Era uma bolinha de pelos, um filhote de poucos meses, nascido provavelmente em junho ou julho daquele ano. É filha da onça Pixana e tem uma irmã, batizada apropriadamente de Fênix.
Pixana e seus bebês sobreviveram ao fogo. E começaram a ser acompanhadas pelos cientistas. Pixana e Sofia continuam pelo Jofre, mas Fênix não aparece há meses. Sofia trouxe esperança. Foi observada copulando e deve ter filhotes.
“A gente a acompanha desde bebê. Ela é guerreira, sobreviveu a uma tragédia no Pantanal. Vamos segui-la por toda a vida e ela pode nos ensinar muito sobre o mundo secreto das onças e como enfrentam as mudanças de nosso planeta em transformação”, afirma Fernando Tortato.
População não aumentou, o que cresceu foi o número de animais que toleram pessoa
Nada menos que 304 onças foram observadas na região de Porto Jofre e da Transpantaneira em 15 anos. O número de indivíduos diferentes registrados cresce a cada ano. Atualmente, cerca de 90 pintadas são vistas por ano.
Elas são registradas num guia virtual atualizado todos os dias e mantido pelo Projeto de Identificação de Onças (Jaguar ID Project), a Panthera e a Associação Civil do Ecoturismo no Pantanal Norte (Aecopan).
O guia é colaborativo e as onças são “batizadas” pela pessoa que primeiro fotografou um animal nunca avistado antes no Jofre e ao largo da Transpantaneira. A imaginação é o limite. A lista inclui Aju, Akwén, Aracy, Borboletinha, Constantina, Edno, Jiricambeba, Jovenita, Juma, Maria, Mick Jaguar, O’Neto, Pesquisa, Poliana, Shakira, Tainara, Van Gogh, Wilson dentre tantas outras.
As onças podem ser facilmente identificadas porque cada uma delas têm uma composição individual de pintas. Na face, as pintas compõem um padrão único daquele indivíduo, à similaridade de uma impressão digital. “Independentemente de serem pretas, amarelo-claras, escuras, ocres ou pálidas, cada onça possui em sua composição de manchas, rosetas, pintas uma identidade única. Não existe uma roseta igual em nenhuma onça-pintada do mundo. Como nossa impressão digital, esta característica é sua marca individual, estampada em seu corpo, em sua face”, ensina o livro “Panthera onca – À sombra das florestas” (Adriano Gambarini, Laís Duarte, Mario Haberfeld e Rogério Cunha de Paula. Avisbrasilis Editora).
“O que aumentou não foi a população de onças, mas o número de onças habituadas à presença humana”, frisa Tortato.
A população se mantém entre 4 mil e 5 mil pintadas em todo o Pantanal do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Amor de onça
No Pantanal o amor está no ar. Os machos de onça-pintada, andarilhos por natureza, captam o cheiro das fêmeas no cio e cruzam rios e campos alagados até encontrá-las. Foi assim que um macho que nunca havia sido observado em Porto Jofre chegou ao isolado Corixo São Pedrinho, nos cafundós do Rio Três Irmãos, num dia de tempestade de agosto. O macho desconhecido acompanhava Buhee, uma fêmea esquiva que, segundo Ailton Lara, só havia sido vista só três vezes, a última em 2019.
Um barqueiro avistou o casal de onças namoradeiras no início da manhã e logo outros barcos seguiram para o corixo, um riacho estreito que serpenteia entre aguapés gigantes e fileiras de árvores altas. As onças descansaram por horas numa área elevada, sem se importar com a plateia. Ambas são adultas, experientes, afirma Lara. Ele estima entre 7 anos e 8 anos a idade delas.
“Dá para calcular a idade pela cor dos dentes, amarelecidos pelo tempo”, explica Lara, que logo identifica Buhee e percebe que o macho é novo na área.
As horas avançam e o tempo muda drasticamente. Uma tempestade em plena estação seca transforma em noite o início da tarde no Pantanal do Mato Grosso. Rajadas de vento dobram as palmeiras carandás e fazem cambarás choverem flores amarelas na água.
Liberado do solo pela chuva grossa, um aroma morno de terra e plantas invade as narinas. Ele só não é mais intenso que o perfume do pombeiro, uma flor de cor de poeira, que produz néctar em gel e exala o cheiro do jasmim.
Por essa época do ano, o Pantanal tem as cores de uma profusão de flores. Seja nas plantas aquáticas, em lilás, branco e violeta, seja nos campos, em carmim, fúcsia e amarelo. Nas árvores há amarelo das flores em forma de castiçal do cambará e vermelho dos pompons do novateiro.
Mas o casal de onças recém-formado ignora a paisagem, o vendaval e o aguaceiro. Para elas, só importa o cheiro do amor no ar. Amor de onça, que a fêmea exala e o macho fareja.
“A onça se comunica de várias formas. Pelos odores, pelos sons. Elas têm uma voz quando se conhecem, outra quando acasalam, uma completamente diferente com os filhos”, explica Lara.
O Corixo do São Pedrinho é um lugar estreito, cheio de escuros e mistérios. E as onças entram num mato onde não podem ser mais vistas.
A tempestade espanta quase todos os seres humanos. Ficam apenas Ailton Lara e mais três pessoas. Lara e seu barqueiro sabem que elas voltarão. Não se passa meia hora e o macho ressurge na beira do riacho, a cerca de 300 metros, num ponto em que o corixo quase desaparece sob as plantas flutuantes. Logo Buhee desce o barranco e rola na frente dele. Sob a proteção da copa generosa das pimenteiras, as onças se cheiram e se olham.
Mas sedução de onça é cheia de complexidade. O macho tenta montar na fêmea, é repelido com ferocidade. Eles brigam, rosnam, urram, se embolam, mostram garras e dentes.
A fêmea sobe numa árvore e o macho fica cheirando os lugares onde ela esteve. Capta odores que funcionam como um atestado do estado reprodutivo da fêmea.
Aparentemente, não gostou do que sentiu. Se afasta e vai beber água no corixo. Então, ele levanta a cabeça e parece se dar conta que é observado. Finalmente, encara os humanos. Machos adultos acompanhando fêmeas no cio são irritáveis e potencialmente perigosos.
Ele parece tenso. Mas não é com as pessoas. Volta a beber água. E vai embora. Some num barranco. A fêmea, que o recusara, muda de ideia e vai atrás. O macho reaparece 500 metros à frente e atravessa o riacho. A fêmea o segue.
Namoro de onça dura de cinco a 15 dias. Copulam de 30 a 40 vezes nesse período. Por vezes, um segundo macho, atraído pelo cheiro da fêmea no cio, expulsa o primeiro. E o resultado podem ser ninhadas com pais diferentes.
O desfecho do casal enamorado do São Pedrinho é mistério, pois ambos desapareceram na mata. O macho que nunca havia sido avistado antes daquele dia foi batizado de Tomas, escolha do guia que primeiro o registrou ainda na manhã, quando descansava numa área mais elevada.
“As onças são assim, surgem e desaparecem. Vez por outra nos dão a chance de compartilhar conosco um pouco da vida delas. É um privilégio e nos faz lembrar que a vida pode ser muito bela”, diz Lara.
Observação de onças impulsiona turismo no Pantanal
No Pantanal, a onça-pintada move a natureza e a economia. Ela se tornou atração do turismo de vida selvagem, uma das principais vocações econômicas pantaneiras.
Em seus cerca de 151 mil quilômetros quadrados, o Pantanal é a grande vitrine da biodiversidade brasileira, o lugar do país onde é mais fácil observar espécies de animais – algumas delas quase impossíveis de serem avistadas em outras partes, caso da pintada.
A exuberância de vida é fruto de uma combinação de fatores. O Pantanal é um complexo mosaico de outros biomas, com espécies da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica, além do Chaco paraguaio. Nele, a abundância de água e nutrientes permitiu que espécies dispersas em outros lugares pudessem se concentrar em áreas menores, facilitando a observação.
Há no Pantanal cerca de 3.500 espécies de plantas, 124 de mamíferos, 650 de aves, 80 de répteis, 60 de anfíbios e 260 de peixes.
Mas, como observa o cientista Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa-Pantanal, em Corumbá, mais do que o número de espécies destaca-se o tamanho das populações. Além da onça-pintada, são exemplos as ariranhas, os veados-pantaneiros e as araras-azuis, só para ficar nos mais emblemáticos.
“O Pantanal representa menos de 2% do território brasileiro, mas aqui está tudo junto e misturado”, salienta Tomas.
Viva a onça vale bem mais do que morta, comprova a ciência. Pesquisadores estimam que só na região de Porto Jofre, as onças tragam lucros de US$ 10 milhões por ano e movimentam a economia local.
Um estudo que já se tornou referência, de autoria de Fernando Tortato e pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e da Universidade de East Anglia (Inglaterra), mostrou que em 2015, o turismo de onça trazia US$ 7 milhões para Porto Jofre. O cálculo considerou o número de turistas, o tempo médio de estadia e o valor das diárias.
Tortato diz que após a pandemia, o número de leitos aumentou quase 40%, puxando a economia da onça para a faixa dos US$ 10 milhões. A estimativa sequer considera a atividade de observação de animais no Pantanal Sul, onde o exemplo mais conhecido é a Associação Onçafari e seu trabalho no Refúgio Ecológico Caiman, no Mato Grosso do Sul.
O turismo poderia ser mais lucrativo e sustentável, dizem cientistas. Mas, além de enfrentar limitações logísticas, a atividade precisa ser ordenada. Tortato observa que faltam coisas como definir capacidade de carga (quantos visitantes uma determinada área consegue suportar num dado momento sem impactar negativamente o ambiente), distância do animal, rodízio de barcos, investimento em educação e formação da população local, além de incentivos a empreendimentos sustentáveis
Outro estudo recente de Tortato e cientistas da UFMT, de East Anglia, da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Juruá (AM) e da Universidade de Montana (EUA), avaliou como minimizar a perda de habitat e conflitos de seres humanos com animais selvagens.
As duas principais atividades econômicas do Pantanal, a pecuária e o ecoturismo, direta e indiretamente, afetam a persistência das onças. O estudo analisou ainda o impacto das mudanças climáticas e das queimadas de 2020, as maiores da história no Pantanal Norte.
Os cientistas consideraram a distribuição de fazendas, da rede hoteleira e a densidade de onças e de cabeças de gado. Também foram estudadas as grandes áreas queimadas em 2020. Publicado na Scientific Reports, o trabalho revelou que 64% do Pantanal são apropriados para as onças-pintadas.
Numa descoberta promissora, os cientistas viram que as áreas favoráveis às onças coincidem com as de ecoturismo e menos com as usadas para o gado. São áreas que permanecem inundadas e isoladas por muitos meses todos os anos.
A conclusão é que o Pantanal é fundamental para a conservação das pintadas, mas as queimadas são uma ameaça tanto para elas quanto para as atividades econômicas pantaneiras.
As secas, cada vez mais frequentes e intensas, têm diminuído a extensão das áreas inundadas, nas quais vivem as duas principais presas da onça, a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) e o jacaré (Caiman yacare).
*Essa reportagem faz parte do especial Pantanal em Foco do ((o))eco e foi realizada em parceria com o jornal O Globo
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Bom dia. Maravilhosa reportagem,agora falta conscientização de nossa parte os chamados seres ” conscientes” para que isso não se acabe jamais.
Para que isso tudo continue nos enchendo de emoção, FORA BOS-TA-NA-RO 👉🤡💩🤮👎
Isso mesmo, para que haja um equilíbrio na natureza é necessário que esse ser desprezível saia do poder.
Fora Bolsonaro!