Xapuri (AC) – Conhecida pelos quatro cantos do mundo como a terra de Chico Mendes, ícone da preservação da floresta amazônica e defesa dos seringueiros, Xapuri vive um momento de crescimento econômico baseado em princípios levantados há mais de vinte anos: o extrativismo vegetal e a manutenção das árvores em pé. Neste pequeno município acriano de 14 mil habitantes, a 56 quilômetros da fronteira com a Bolívia, foram instaladas a única fábrica de preservativos no planeta a usar o látex natural como matéria-prima e a Pousada Ecológica Seringal Cachoeira, estruturada para receber turistas durante todo o ano.
A paisagem às margens da estrada que liga a capital Rio Branco à Xapuri não é nada animadora. Durante as três horas de carro para cumprir o trajeto, o que se vê pela janela são hectares e mais hectares de pasto onde antes havia uma densa floresta tropical. Embora o secretário estadual de Turismo Cassiano Marques afirme que o Acre mantém 91% da vegetação original intacta, há resquícios bem vivos de uma época em que o governo incentivava a migração de toda sorte de brasileiros para lá. Impulsionadas pela ideia de enriquecimento fácil ao substituir a vegetação nativa por pastagens, legiões de “estrangeiros” chegavam ao estado, deslocando seringueiros e antigos moradores.
A realidade é um pouco melhor quando avista-se o Seringal Cachoeira, a trinta quilômetros do centro de Xapuri. Há três anos, em conversas com a comunidade local, a Secretaria de Turismo percebeu que aquela porção de terra recebia um número razoável de visitantes e que investir em infraestrutura seria um bom caminho. Até agora, 400 mil reais foram injetados pelo governo, divididos entre construção da pousada e capacitação de mão-de-obra local.
“Há muitos turistas em Puerto Maldonado (primeira cidade grande peruana após a fronteira), desde americanos até europeus. Depois da visita, vários deles vêm para cá” afirma Ediza Pinheiro, chefe da Divisão e da Indústria dos Serviços e Circuitos Turísticos da secretaria. “Entre 2007 e 2008, quando a pousada ficou pronta, capacitamos trinta moradores locais com cursos sobre culinária, formação de guia, recepção de clientes e serviços em geral”, completa Rita Ramos, coordenadora do Centro de Atendimento ao Turista.
O projeto, em parceria com o Instituto Dom Moacyr (uma entidade local de fomento à economia), vai continuar em breve, quando um novo treinamento para reforçar a eficiência da equipe for realizado, desta vez com apoio do Sebrae. A ideia é passar o comando da pousada integralmente à comunidade, com todos os seus lucros e responsabilidades. “Serão os eles os únicos donos, algo que já acontece, com exceção dos agendamentos dos visitantes, que ainda fazemos na sede em Rio Branco, já que aqui ainda não tem telefone”, explica Ediza.
O fato, no entanto, é que o empreendimento já é autossustentável. Ou seja, todas as contas são pagas com os recursos deixados pelos hóspedes – e funciona sob o rodízio dos funcionários. Construído inteiramente com madeira certificada, o lugar ainda receberá uma piscina e estrutura para arvorismo. “Faremos pontes suspensas que deverão estar prontas em setembro”, lembra Gustavo Soares, líder do projeto. Além disso, a água será aquecida por energia solar.
A vida no seringal
Seu Nilson Mendes explica como é a rotina de um seringueiro e mostra as técnicas para tirar o látex das árvores. (Crédito: Neco Varella) |
Rio Branco é um dos 65 destinos classificados pelo governo federal como Indutores do Desenvolvimento Turístico, e deve crescer em números absolutos de visitantes nos próximos anos. Mas o Acre inteiro passa por momento semelhante. Cidades como Brasiléia e Bom Destino também receberam incentivos, através da construção de pousadas entregues às populações. Na terra de Chico Mendes, a vida melhorou com o apoio do governo. “Basicamente os visitantes vêm aqui atrás das trilhas e oferecemos passeios por lugares onde há o manejo de madeiras, castanhas e seringas, além de plantas medicinais. Muitos biólogos vêm aprender com nossos guias”, diz Ediza.
Hoje, a Pousada Ecológica Seringal Cachoeira recebe aproximadamente cem visitantes por mês, desde pessoas em busca de um pouco de conhecimento até hóspedes ilustres, como membros de Embaixadas de diversos países. Sem coleta seletiva no município, os turistas são incentivados a levar seu lixo de volta para a capital. O restante é separado em vidro, metal, papel e plástico, mas logo misturado quando chega ao único aterro controlado de Xapuri. Já as latas de metal são vendidas pela comunidade para a única cooperativa de reciclagem do Acre, em Rio Branco.
Artesanato cresce no Acre
No Centro de Rio Branco, capital do Acre, a Casa do Artesão é um belo exemplo de como é possível aumentar a renda da população local sem derrubar ainda mais a floresta. Há quatro anos, o Sebrae e a Secretaria de Turismo decidiram incentivar o artesanato da região, que à época não usava qualquer referência da cultura ou do meio ambiente acrianos. A partir de novas técnicas e cursos de empreendedorismo, eles agora usam de castanhas e outros produtos extraídos da floresta. “A nossa renda pode chegar a quatro salários mínimos mensais. E, a partir do próximo ano, só compraremos sementes de áreas certificadas. Existem organizações não-governamentais fazendo isso”, explica Carlos Taborga, coordenador da Casa. |
“O bacana é que a pousada segue a lógica de coletividade das reservas extrativistas (o hotel fica no interior da Resex Chico Mendes). Todos trabalham juntos, sem individualismo”, explica Marcus Vinicius Neves, secretário de Cultura de Rio Branco. Uma das principais atrações da região, claro, é a extração do “leite” (como é chamado o látex) nos seringais. Até poucos anos, a atividade estava praticamente desaparecida, depois de ciclos da borracha (no começo do século e durante a Segunda Grande Guerra) serem interrompidos pela queda acentuada nos preços em virtude da concorrência da Malásia. Este país é especialista na monocultura de seringas graças aos ingleses, que levaram para lá sementes da Amazônia na segunda década do século XX.
O cenário mudou com a chegada da Fábrica de Preservativos Natex à Xapuri, outro investimento público de cerca de 30 milhões de reais. Pronta em 2008, ela recebe o látex de 430 famílias do estado. Seu Nilson Mendes, primo de Chico, é um dos seringueiros-guia da pousada ecológica, membro de uma das famílias que trabalham para a usina e um dos responsáveis por levar os visitantes à estrada de extração do leite. Nela, é possível conhecer uma das profissões mais antigas da Amazônia.
Em média, cada seringueiro recolhe 15 litros de látex diariamente em três estradas formadas dentro da selva. Ninguém pode entrar na rota do outro. A rotina não é nada simples: ele sai de casa às duas da manhã e, durante cerca de cinco horas, faz um corte em 150 árvores – o leite é recolhido de um mesmo exemplar apenas duas vezes na semana. “Quando corta a primeira vez, a árvore não cresce mais. Só que é preciso esperar para que ela continue sempre dando leite. Por isso, é melhor não machucá-la muitas vezes seguida. Caso contrário, ela morre”, explica Nilson.
O esforço, no entanto, é ainda maior. Como a seringa tem alto potencial para contrair doenças, só há um exemplar da espécie em cada hectare da floresta. Esta foi a forma encontrada pela distribuição natural para afastar eventuais pestes. Isso significa que o trabalhador precisa andar cerca de 150 hectares por dia dentro da selva amazônica para atingir a meta de 15 litros de leite.
Preservativos naturais
Vista da Pousada Ecológica Seringal Cachoeira, em Xapuri (AC). (Crédito: Felipe Lobo) |
Basicamente todo o látex extraído da Resex Chico Mendes, e também de outras regiões do Acre, é vendido para a Natex, cuja primeira leva de preservativos ficou pronta em dezembro, um ano após o início do treinamento dos funcionários. A proposta é simples, mas eficiente: o ministério do Turismo criou a fábrica, testou a matéria-prima em uma empresa baiana em 2000 e 2003 e contratou 130 moradores de Xapuri e arredores.
A usina produz 100 milhões de camisinhas masculinas por mês, todas vendidas para o governo federal a onze centavos por unidade e distribuídas gratuitamente nos programas contra as doenças sexualmente transmitidas (DSTs) espalhados pelo país. Este montante significa 10% de todos os preservativos doados no Brasil. Os demais são importados da Malásia, nação com clima perfeito para o desenvolvimento das seringueiras, e de outros países, a nove centavos a unidade.
Antes de a usina começar a funcionar, os seringueiros foram treinados e receberam kits para o trabalho. Nele consta uma tigela preta de plástico para recolher o leite, bica para ajudar em sua captação, duas bombonas (espécies de baldes) com a quantidade exata de hidróxido de amônia para que o látex não coalhe e a faca, conhecida como cabrita. A ideia é que, ao todo, 700 famílias vendam a matéria-prima. “Criamos também centenas de Postos de Recolhimento, onde os seringueiros deixam o produto. Lá, um gerente analisa se ele está em boas condições e faz a pesagem”, explica Kelma Castro, coordenadora operacional da fábrica.
Não é exagero dizer que o projeto reinventou uma atividade paralisada pelo tempo. Se, há dez anos, o preço de um quilo de borracha no mercado não passava de 70 centavos e fez sumir os homens dentro do seringal, hoje dois litros de látex (equivalentes ao quilo de borracha) são comprados pela Natex por 3,40 reais. Somados aos um real e 40 centavos investidos pelo governo em forma de subsídios, cada seringueiro recebe 4,80 reais. Um salto no rendimento que, somado à extração de castanha e outras economias, pode chegar a seis mil reais/ano. Vale dizer que cada uma dessas funções tem época específica na temporada. A coleta de castanha, por exemplo, acontece entre dezembro e março.
Seringueiras no meio de Rio Branco
No meio de Rio Branco há um parque municipal chamado Capitão Cirico, onde fica a sede da Secretaria Municipal de Cultura. No lugar, 400 seringas, plantadas ou primárias, formam o mosaico do terreno de 4,2 hectares. É lá onde trabalha seu Aldenor, seringueiro que cresceu nas matas de Juruá (AC) e recebe um salário da prefeitura para explorar o leite do local. Ele faz o processo de defumação para transformar o látex em pelas (bolas) de borracha, exatamente como os seringueiros faziam nos dois primeiros ciclos da borracha. “Depois, elas não são vendidas, mas destinadas a museus e casas de cultura”, afirma Marcus Vinícius Neves, secretário de Cultura. Há também uma pintura da Mãe das seringas. Trata-se de uma lenda contada na floresta que explica: quando alguém faz um corte profundo em alguma árvore, a Mãe aparece e promete leite em abundância para toda a vida. Em contrapartida, exige apenas a paralisação eterna das atividades pelo culpado para que o exemplar se recupere. |
“O látex cultivado, usado em todo o mundo, tem qualidade única (já que todos os exemplares de seringa vêm da mesma semente). Para que o natural também seja bom o suficiente, contratamos um profissional paulista com trinta anos de experiência em preservativos”, explica Arthur Ferreira, encarregado de expedição e relacionamento com clientes da empresa, ligada à Fundação de Tecnologia do estado e administrado pelo governo. Trata-se da única usina do planeta a usar o leite de seringas que vivem na floresta em meio a outras espécies, e não em monoculturas. De acordo com os funcionários da Natex, o resultado é um produto quatro vezes mais resistente.
A filha de Chico Mendes
Xapuri, no entanto, tem mais histórias ambientais a contar do que o baixo índice de desmatamento e o acréscimo do extrativismo sustentável. Elenira Mendes, filha do líder seringueiro mais importante do país, assumiu no início do ano a Secretaria Municipal de Meio Ambiente cheia de expectativas. Com 25 anos, até sete verões passados ela sequer pensava em seguir a vocação do pai. Achava que era justamente o assunto responsável por lhe tirar a vida. Até que, determinado dia, recebeu de um parente uma foto sua ainda jovem, ao lado de Chico. Atrás, a dedicatória famosa. “És a vanguarda da esperança. Elenira, darás continuidade um dia à luta que seu pai não conseguirá vencer”.
Criadora do Instituto Chico Mendes, organização não-governamental erguida para fortalecer a luta dos seringueiros e ambientalistas, Elenira estruturou um projeto na secretaria para cuidar da bacia do igarapé Santa Rosa, um dos mais importantes afluentes do rio Acre. “Ele está muito poluído, tem todo tipo de esgoto lá. Mas nasce num manancial lindo na entrada de Xapuri”, explica. O problema era que ele ficava dentro da propriedade de um fazendeiro. Com bom papo, porém, a jovem conseguiu que ele abrisse as portas de suas terras para um programa de reflorestamento.
“Por enquanto, plantamos 150 mudas, cuidadas pelos alunos e professores de um colégio ali próximo. Até setembro, vamos começar um processo de limpeza e recuperação, para desobstruir o curso. Trata-se de um projeto-piloto”, avalia. Elenira questiona o manejo de madeira, pois sabe que uma árvore, quando cai, pode derrubar dezenas de outras. Mas acredita no extrativismo de plantas medicinais, por exemplo. E, com o sonho de preservar a floresta e dar uma vida digna aos seringueiros, ela empunha com orgulho a bandeira que seu pai, há algumas décadas, foi um dos primeiros a levantar.
* o repórter viajou a convite da Braztoa (Associação Brasileira das Operadoras de Turismo ) e do Ministério do Turismo.
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