Análises

Parasitas procuram gato ou humano para chamar de seu

Se sentindo nem aí para o que te dizem ou inexplicavelmente facinha? Cuidado, você pode ter uma família de toxoplasmas na sua amígdala

Fabio Olmos ·
23 de julho de 2013 · 11 anos atrás
Pode parecer que este balaio de gatos quer te hipnotizar, mas o que vive dentro deles já pode estar dominando sua mente. Foto: Fábio Olmos.

Parasitas e patógenos desenvolveram infinitas maneiras de utilizar seus hospedeiros para multiplicar-se e conquistar novos territórios. A evolução por seleção natural atrelada à corrida armamentista entre parasita e parasitado produziu ciclos de vida complexos onde a bioquímica do hóspede interage de forma precisa com a do hospedeiro, usado como alimento e vetor para produzir mais patógenos e parasitas.

Uma das técnicas mais sofisticadas de manipulação é o controle mental.

O vírus da raiva é um dos exemplos mais incríveis. Ele é basicamente uma cápsula proteica em forma de bala que protege uma fita de RNA com o equivalente a 12 Kb de informação que codificam cinco proteínas. Ao infectar um hospedeiro, essa criatura faz com que sua vítima deixe de ser ela mesma e se torne uma versão Mr. Hyde com comportamento agressivo e propensão a morder. Ao mesmo tempo, vírus prontos para serem transmitidos se acumulam nas glândulas salivares.

É fácil ver de onde veio a inspiração dos zumbis de filmes como Contágio e, no passado, de histórias de possessão demoníaca, vampiros e lobisomens.

Como estes 12 Kb de informação conseguem manipular um sofisticado cérebro mamífero para que Rex ou tio João se transformem em máquinas mordedoras que não conseguem se controlar é uma daquelas coisas que fazem o estudo da biologia ser algo tão incrível.

O vírus da raiva não é a única criatura capaz de controlar as mentes dos que possui. Um dos parasitas mais fascinantes controla a mente de boa parte da humanidade. E, possivelmente, a sua.

Protozoário manipulador

“Como disse um pesquisador, o Toxoplasma não mata, mas induz os ratos ao suicídio.”

O Toxoplasma gondii é um “protozoário” aparentado dos Plasmodium que causam malária que, originalmente, parasita gatos e outros felinos, vivendo e se reproduzindo nas paredes de seu intestino. Normalmente o bichano excreta cistos dos parasitas em suas fezes e estes acabam ingeridos por roedores. Os cistos eclodem no novo hospedeiro e os parasitas se multiplicam formando cistos no cérebro e vísceras do Rodentia. Quando o rato é comido por um bichano, o Toxoplasma está onde queria estar e o ciclo recomeça.

O interessante é que o Toxoplasma pode manipular a mente dos roedores para aumentar a probabilidade de acabar dentro de um gato. Ao sentir o cheiro de urina de gato um rato ou camundongo normais irão fugir. Um roedor contaminado por Toxoplasma, ao contrário, ou se torna indiferente ou é atraído pelo odor da urina de gato. O interessante é que urina de outros predadores (como cães) continua causando reação de medo e fuga, mostrando um efeito cirúrgico do Toxoplasma sobre o roedor.

Pesquisadores descobriram que os cistos do Toxoplasma se agregam ao redor da amígdala, a região do cérebro onde são processados o medo e outras emoções. E ali afetam o funcionamento de um circuito cerebral associado a comportamentos de fuga, reduzindo sua atividade quando o estímulo é felino, e outro circuito associado à excitação sexual. Os roedores com Toxoplasma sentem tesão quando há cheiro de gato no ar, com os resultados esperados pelo parasita.

Como disse um pesquisador, o Toxoplasma não mata, mas induz os ratos ao suicídio.

Humanos também são alvos

O Toxoplasma não contamina apenas roedores. Alguns acabam no bicho errado e estima-se que 1/3 da humanidade carrega cistos de Toxoplasma na cabeça e outras partes de sua anatomia. O parasita pode causar complicações sérias, incluindo encefalite, em pessoas com o sistema imune comprometido. Felizmente, nosso sistema imune e o parasita mantém uma relação equilibrada, mas sempre tensa, com poucos estragos.

Quer dizer, mais ou menos. Como acontece com os Rodentia, há um crescente corpo de evidências de que o Toxoplasma afeta profundamente o comportamento de seus hospedeiros humanos. Por exemplo, há evidências associando o parasita a condições como esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo e síndrome de déficit de atenção.

“Como acontece com os Rodentia, há um crescente corpo de evidências de que o Toxoplasma afeta profundamente o comportamento de seus hospedeiros humanos”. Foto: Amna Sayeed/Pixabay.

Mas a influência do parasita pode ser mais sutil. Estudos que avaliaram diferenças de personalidade entre contaminados e não contaminados descobriu que os homens se tornam menos propensos a submeter-se aos padrões morais da comunidade, preocupam-se menos com a possibilidade de serem punidos por quebrar as normas sociais de conduta e confiam menos nos outros, enquanto as mulheres ficam mais afetuosas e cordiais (veja aqui, aqui e também aqui).

Há diferenças entre os sexos, mas ambos perdem uma dose do medo que os afastaria do perigo, resultado do Toxoplasma ter hackeado o cérebro do hospedeiro e estar influenciando seu destino.

Ter um parasita que está tentando ser levado para dentro de um gato vivendo no seu cérebro produz mudanças de personalidade. O problema é que como não somos o hospedeiro intermediário correto (poucas pessoas acabam na barriga de um felino) os sinais muitas vezes acabam trocados e o parasita pode produzir contradições ambulantes.

Além das características acima, hospedeiros do Toxoplasma também tendem a ser mais apreensivos, inseguros, preocupados e ansiosos, com uma queda para a autoflagelação. Ou seja, tendem a ser neuróticos.

Nem todo comportamento vem da cultura

A pesquisa de Kevin Lafferty, cientista do USGS na University of California, Santa Barbara, que arrepiou muitos sociólogos (adoro quando sociólogos ficam estressados com o que a biologia descobre), cotejou esses traços individuais com estatísticas sociais, perguntando se, nos países onde a infestação é mais disseminada, as alterações de comportamento virariam caráter nacional.

Dados de 39 países, em cinco continentes, filtrados para isolar os efeitos de variáveis como renda e idade, mostram que há uma boa correlação entre altas taxas de infecção e um menor interesse por novidades e o sentimento de culpa generalizado.

Há uma “correlação significativa” entre o Toxoplasma a “neurose agregada” da população. Segundo os pesquisadores “a variação geográfica da prevalência latente do Toxoplasma gondii pode estar por trás de diferenças nos aspectos culturais relativos ao ego, ao dinheiro, às posses materiais, ao trabalho e às normas de conduta”.

Tendemos a pensar na cultura como o resultado das ações coletivas de pessoas com livre arbítrio que agem com liberdade. No entanto, os efeitos sutis de parasitas sobre a personalidade de um número grande o suficiente de pessoas podem ter um efeito significativo sobre culturas nacionais. Afinal, há mais gente com Toxoplasma que conectada à internet.

Como os cistos de Toxoplasma no solo duram mais em climas quentes, o clima pode ter um efeito maior e mais sutil sobre a cultura do que se admite. Uma hipótese é que o parasita poderia iniciar a reação que resulta nos papéis mais divergentes de homens e mulheres em sociedades que se desenvolveram em climas mais quentes, que tendem a ser mais desiguais, quando não misóginas.

A possibilidade, muito instigante, é que parasitas (isolados ou em coquetel) podem ter uma influência muito maior em determinar da personalidade individual (no micro) a atributos de sociedades (no macro) do que mentes crentes no livre arbítrio amplo, geral e irrestrito julgavam.

Parasitas nacionais

O Brasil é o campeão mundial de Toxoplasma gondii, com 67% da população infectada (incluindo eu, simpatizante de gatos desde sempre). Talvez tenhamos aí a raiz do caráter nacional, de nosso pouco caso pelas regras, de nossa vontade de apreciar a vida acoplada à culpa (o que enche as igrejas), de nosso jeitinho, da forma como pulhas são afetuosamente perdoados e reeleitos.

A parasitologia talvez complemente o que Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta e tantos tentaram explicar. Ou talvez não. Uma correlação não é suficiente para indicar uma relação causal. Talvez…

“A sociedade brasileira sustenta uma parcela parasitária que fez boa parte da população acreditar que mudariam tudo que aí estava, e trariam progresso como nunca antes na história do Brasil.”

Algumas meditações filosóficas são inevitáveis. O fato de criaturas “simples” como vírus e protozoários alterarem a personalidade, a forma de pensar, as ansiedades, a forma de lidar com o mundo, os desejos, etc, etc (em resumo, o “eu”) das pessoas que contaminam, juntamente com dados sobre pessoas com lesões cerebrais (quem não leu O Erro de Descartes de Antonio Damasio deveria) é uma evidência robusta de que o “eu” é resultado da estrutura cerebral e dos processos eletroquímicos que acontecem ali, e não alguma coisa imaterial.

Em resumo, você é seu cérebro e mudanças na carne resultam em mudanças na alma. O software emerge do hardware. Se o “eu” de cada um fosse, na essência, algo imaterial como uma alma dissociada da carne, como é que um vírus de 12 Kb ou um protozoário (ou um dano cerebral) poderiam, literalmente, te transformar em outra pessoa?

Parasitas que manipulam as mentes de hospedeiros de outra espécie para melhor explorá-los também lembram os parasitas que manipulam as mentes de membros de sua espécie para melhor explorá-los. Regimes populistas baseados em um salvador da pátria idolatrado que acabam em autoritarismo cleptocrático dominado por um partido (ou quadrilha), uma tradição latino-americana, são um bom exemplo.

A sociedade brasileira sustenta uma parcela parasitária que convenceu muitos de que mudaria tudo que aí estava e traria progresso como nunca antes na história do Brasil. Ter a 7ª economia do mundo acoplada ao 85º Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) resume a história tão bem quanto o que se vê gasto em estádios e publicidade, em oposição ao que temos nos quesitos saneamento, saúde, áreas protegidas, transporte e educação públicos. Algo está muito errado.

Temos uma democracia disfuncional contaminada por corrupção em todos os níveis e que não representa a sociedade. E não apenas porquê as bancadas estaduais não refletem o número de eleitores de cada estado. A coisa é muito pior, já que, 1/3 dos deputados e senadores tem processo tramitando no STF. A proporção da população brasileira com problemas na justiça, acredito, é muito menor.

Nossa classe política é formada por uma parcela desproporcional de bandidos que, pelo caradurismo sem medo de ser feliz, devem ter muito Toxoplasma na cabeça.

Livrar-se de parasitas que nos exploram enquanto nos fazem acreditar que vivemos no melhor dos mundos não é fácil. A maioria das vítimas da raiva morre, enquanto livrar-se dos toxoplasmas encistados pode ser impossível (nossos congressistas me fazem pensar se lobotomias não seriam úteis).
Desparasitar nossa democracia e termos governos realmente representativos talvez seja mais fácil. Talvez…

Nota – este artigo é uma homenagem a Marcos Sá Correa, um dos fundadores do ((o))eco e com quem tive divertidas conversas sobre o Toxoplasma e a política brasileira. Sua visão sobre o Toxoplasma pode ser degustada aqui. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas.

 

 

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 1

  1. Eliana diz:

    Texto que faz pensar, obrigada!