Quando as forças armadas da Argentina invadiram as ilhas Falkland em 1982 o general Galtieri e sua torcida decidiram que o Chile seria o próximo alvo. Pinochet tomou suas precauções, que incluíram campos minados ao longo da fronteira com a Argentina. Estes existem até hoje e de quando em quando um burro selvagem vai pelos ares, para alegria de jotes e zorros.
Os argentinos fizeram o mesmo nas Falklands, o que apenas retardou a retomada das ilhas pelos britânicos. Estes se abstiveram de usar os soldados argentinos para remover as minas instaladas nos arredores de Stanley. Como resultado, grandes áreas próximas à costa permanecem cercadas, fora dos limites para os carneiros que costumavam pastar ali.
A exclusão dos carneiros resultou na recuperação da vegetação e no retorno das moitas de tussac, um capim que cresce em moitas muito densas de até 1,5 m de altura e bases que formam pilares de folhas mortas. Este é um habitat valioso para vários animais que ali se abrigam do clima hostil, incluindo pinguins fazendo seus ninhos.
Como os pinguins passam sob as cercas, o tussac minado e restaurado logo se transformou em felizes pinguineiras. Leves demais para detonar as minas, os pinguins não têm muito com que se preocupar e fazem a alegria dos muitos turistas que vão vê-los e mantém uma distância respeitosa. Afinal, nada mais efetivo que a mensagem implícita de “Não se aproxime dos pinguins. Ou perca uma perna. Ou pior”.
Quando a Guerra da Coréia terminou em 1953 com um armistício, boa parte da Península Coreana havia sido transformada em terra arrasada. Uma “zona desmilitarizada” (DMZ) com 4 km de largura e 248 km de comprimento foi estabelecida ao longo da fronteira entre os dois países. Generosamente salpicada com minas terrestres e limitada por cercas, a ausência de pessoas e mais de seis décadas de regeneração natural transformaram a DMZ em uma das áreas mais biodiversas da região, com espécies ameaçadas que incluem grous e leopardos. Não à toa, há propostas para transformá-la, formalmente, em uma área protegida.
É interessante que enquanto a ditadura da Coreia do Norte (por alguma razão admirada pelo nosso PCdoB) é um desastre social e ambiental, a Coreia do Sul pós-guerra embarcou em um grande projeto de restauração ecológica. Plantar árvores e universalizar a educação de qualidade se tornaram prioridade. A Coreia do Sul chegou a 65% de área florestada enquanto conquistou indicadores sociais e econômicos que humilham a fanfarronice brasileira. Por aqui, nos concentramos em cortar árvores e cultivar ignorância.
Começando em 1978, a guerra entre o Vietnã e o regime genocida do Khmer Vermelho no Camboja fez com que as Montanhas Cardamon se tornassem uma área onde ninguém se atrevia a ir. Refúgio dos guerrilheiros Khmer, todos acreditavam que o lugar estava cheio de minas e uma visita ali não acabaria bem. Em 1989, quando a guerra terminou os pesquisadores ficaram deslumbrados com a descoberta de que as Cardamon ainda abrigavam espécies ameaçadas, incluindo algumas extintas em outras partes da Indochina, e mesmo algumas novas. Iniciativas de conservação levaram à criação, com apoio internacional, de várias áreas protegidas.
A paz, infelizmente, também mostrou que os riscos das minas não eram tão generalizados e aumentou a pressão sobre o que se tornou uma região muito complicada onde projetos de conservação tem que apelar para instrumentos que vão desde mecanismos de REDD a bênçãos de monges. Mas o fato é que a antiga ameaça de morte certa permitiu que a região se mantivesse conservada, ao contrário de outras na Indochina.
A longa guerra da Bósnia na década de 1990 resultou em genocídios (de novo) e minas terrestres liberalmente espalhadas na área de conflito. O resultado é que as florestas daquele país se tornaram áreas protegidas de fato, senão no papel, o que tem permitido a recuperação de populações de animais como ursos e lobos.
Ano passado, estive em uma conferência onde um dos palestrantes era Azzam Alwash, presidente da Nature Iraq. Ele contou como o primeiro parque nacional do país, nos pântanos da Mesopotâmia, havia sido criado naquele ano. Drenados e quase destruídos por Saddam Hussein por abrigarem grupos inimigos do regime, a destruição de diques e a inundação das antigas áreas alagadas resultou na restauração de boa parte do ecossistema. O que, segundo Azzam, contrariou as expectativas de muitos experts…
Azzam também contou o plano para criar um novo parque na fronteira entre o Irã e o Iraque, uma área com muitas minas terrestres desde a guerra entre os dois países e de onde as pessoas se mudaram faz tempo. A ausência destas permitiu a restauração da vegetação e da fauna e, embora algum animal de vez em quando encontre um fim precoce, este é um impacto menor do que a caça, retirada de lenha e pastoreio excessivo, que são crônicos em outras partes do país.
Como desminar a área (e para quê?) é caro, a ideia era só limpar as trilhas a serem utilizadas pelos turistas e deixar o resto como está. Este plano foi interrompido com o avanço do Estado Islâmico, os modernos imitadores dos cruzados cristãos, sobre o Iraque e o reinício de uma guerra.
Não me entendam errado. Minas terrestres são uma arma cruel que causa tremendo sofrimento humano e que dizimou populações animais em conflitos como em Angola. Até hoje matam e mutilam quem nada tem a ver com as guerras. Mas nada é preto ou branco, o mundo tem bem mais do que 50 tons de cinza. O que é instrumento de morte em alguns lugares é o que permite a vida em outros.
Gostando ou não, e apesar do que dizem antropólogos que não distinguem um pardal de um tico-tico, biodiversidade e gente tendem a ter correlação negativa. Enquanto nossa população cresceu de 4 para 7 bilhões entre 1974 e 2014, as das outras formas de vida sofreram colapsos.
“Parques involuntários” resultam do fato de uma alta probabilidade de morte ou mutilação ser um dos incentivos mais efetivos para manter as pessoas na trilha. Eles existem em diferentes formas; usei áreas com minas terrestres como exemplo, mas há outras versões do mesmo princípio, que vão da zona de exclusão de Chernobyl (assistam isso) a algumas terras indígenas onde madeireiros, garimpeiros, etc., têm o hábito de desaparecer. E áreas militares onde o braço forte e a mão amiga ajudam a natureza, apesar das eventuais explosões. Por exemplo, Guantanamo é uma das áreas com melhores populações de espécies ameaçadas que fora dali acabam na panela, como a hutia e a iguana cubanas.
Aqui no Brasil, entre outras, há o espetacular Campo de Provas Brigadeiro Velloso, na Serra do Cachimbo (PA), e o Arquipélago de Alcatrazes em SP, onde a proibição da pesca e visitas às ilhas pela Marinha resultou em uma das maiores colônias de aves marinhas do Atlântico brasileiro e populações de peixes praticamente inigualadas na região Sudeste. Por isso, há décadas se propõe a criação de um parque nacional ali.
Essa experiência é uma das razões pelas quais defendo que nossas Unidades de Conservação – quase sempre sem o número de funcionários adequado – deveriam ter destacamentos militares designados para sua proteção e manejo. Como, aliás, fazem outros países.
A realidade crua e eventualmente explosiva me remete ao fato de vivermos em um país onde elites e coitadinhos desmatam, incendeiam, pescam, caçam e extinguem espécies em áreas protegidas porque privilégios, pobreza ou “dívidas históricas” justificam qualquer coisa, incluindo destruir o suporte ambiental de regiões metropolitanas. Nisso somos muito igualitários.
Áreas de mananciais e de risco são ocupadas por pessoas que depois reclamam da falta d’água ou choram porque o morro desceu, a casa caiu e sua família morreu. E sofremos com governantes néscios demais para compreender a importância das áreas protegidas (ou, aliás, Economia básica) que, na mesma toada de seus governados, criam heranças malditas para quem virá depois.
Talvez reste apelar para sistemas de proteção que sempre estarão ali para pegar quem pisa fora da trilha. Que ignorem o “sabe com quem você está falando” e conversinhas sociológicas. Que funcionem independentes de leis serem respeitadas, da boa vontade política ou de orçamentos, sempre contingenciados porque é preciso pagar por apoio e por contratos de publicidade.
Nem que dependam da civilidade das pessoas de um Brasil onde este item é mais raro do que ver um político se preocupar mais com o futuro do país do que com seu bolso.
PS – O Brasil era um produtor e exportador de minas terrestres. Minas brasileiras foram usadas pelo “irmão” Kadafi na guerra civil de 2011. Em 2011 o Brasil tinha o terceiro maior estoque de minas, aparentemente para “treinamento”.
PPS – Ratos-gigantes-da-gambia treinados são os melhores detectores de minas. Você pode adotar (e batizar) um rato herói e ajudar a desminar áreas em Moçambique, Angola e outros países através da APOPO.
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