Reportagens

Como um dos últimos redutos da onça-pintada no sul do Brasil deu forma a um romance

Parque do Turvo influenciou a escritora Morgana Kretzmann, que narra o cotidiano de uma guarda-florestal contra caçadores e poderosos

Matheus Lopes Quirino ·
21 de junho de 2024

A escritora e roteirista Morgana Kretzmann trouxe elementos da realidade no Parque Estadual do Turvo, no extremo sul do Brasil, para seu novo romance Água turva. Caça ilegal, queimadas e facções marcam o cotidiano de quem vive e protege a área, um dos últimos redutos da onça pintada na região. Formada em gestão ambiental, Kretzmann mostra como projetos de poder e megaempreendimentos ameaçam a região há décadas.

“A caça é uma realidade no Parque do Turvo até hoje”, conta a escritora ao ((o))eco. Nascida e criada na fronteira brasileira com a Argentina, Kretzmann narra os dramas de quem vive às margens do rio Uruguai. Ao contar a história de uma guarda-florestal, a autora mostra os descaminhos e as burocracias que cercam quem está em campo, baseando suas personagens em entrevistas, relatos e experiências com ativistas e pessoas ligadas à conservação da área.

((o))eco – Morgana, a pauta ambiental está mais candente do que nunca e uma série de livros, não só científicos, sobre o tema têm sido publicados. Como tem sido a trajetória de “Água turva” neste contexto?

Morgana Kretzmann – Há um novo olhar sobre a literatura que trata de temas ambientais hoje em dia. Ela já vinha acontecendo desde que entramos nessa nova era dos desastres climáticos frequentes. Tanto que ao me formar em Gestão Ambiental, meu objetivo era esse: levar o tema, meio ambiente, para a ficção de uma maneira que fosse acessível e instigante a todos.

Antes essa temática era vista como uma literatura de gênero, uma literatura classificada por muitos como ficção científica. Água turva não é apenas um thriller ecológico, como costumam chamar, ele é um livro que trata de questões sociais, do poder de resistência de uma comunidade, do poder da união de três mulheres que lutam, prontas para matar e para morrer, por aquilo que elas acreditam.

Você é formada em gestão ambiental, mas nunca exerceu a profissão. Migrou para a escrita e fez dela sua bandeira. No livro, você traz a ameaça de um projeto de hidrelétrica que colocaria debaixo d’água o Parque do Turvo, se a obra fosse levada adiante, e você dá exemplos faraônicos, como Itaipu. Como você enxerga essas intersecções entre realidade e ficção?

Me formei em Gestão Ambiental num Instituto Federal Brasileiro para justamente colocar esse tema na arte. Em Água turva, fazer um paralelo entre ficção e realidade foi natural, principalmente usando como exemplo a Itaipu que fez desaparecerem as Sete Quedas, comunidades indígenas e ribeirinhas inteiras, como a Gran Roncador no livro, que na verdade é inspirada no projeto Garabi-Panambi, um projeto que realmente existe até hoje e pode ser desengavetado a qualquer momento. Não podemos esquecer nunca, a realidade sempre pode ser pior que a ficção.

Recentemente o Rio Grande do Sul foi atingido pela maior cheia deste século e muito tem se discutido sobre a catástrofe. O livro tinha acabado de ser lançado e pautou uma série de debates na imprensa, inclusive, como uma espécie de alerta. Como foi isso?

Imagem: Cia. das Letras/Divulgação.

O livro não trata de enchentes. Mas o livro trata de crimes ambientais, de recursos finitos, de preservação ambiental como preservação da vida. Há trechos que as personagens falam do insuportável calor fora de época e também das chuvas. Ou seja, falam do aquecimento global. Não vejo como não tratar disso nos próximos livros que eu vá escrever daqui pra frente. Alguns jornalistas falaram do Água como sendo um livro premonitório no sentido de ter como fio condutor na narrativa a maneira que o meio ambiente era/é tratada no Rio Grande do Sul.

Mas a tragédia que aconteceu no meu estado não começou no início de maio, ela vem acontecendo há muitos anos e envolve políticos negacionistas, progresso a qualquer custo, a devastação do bioma pampa e o sufocamento dos principais rios do estado.

Vou dar um exemplo prático e de algo que é personagem em Água turva: o Rio Uruguai. Ele sofre com cheias há muitas décadas, pois há cada vez mais barragens sendo construídas no seu percurso de 1770 quilômetros e projetos para construções de dezenas de outras. O Uruguai é um Rio que tenta sobreviver a esgotos não tratados, a agrotóxicos dos milhares de hectares de plantação de soja que estão nas suas proximidades – tanto do lado brasileiro, como do lado argentino. É um Rio que tenta sobreviver ao descaso, à falta de preservação e ao desmatamento das suas matas ciliares. As chuvas, as enchentes e os desmoronamentos que lá aconteceram no passado são consequências disso. As chuvas, as enchentes, os desmoronamentos que acontecem agora em outras regiões do Rio Grande, também são consequências das mesmas coisas, ou seja: da ganância de poucos em cima da vida de muitos.

E isso não é ‘privilégio’ do Rio Grande do Sul, acontece em todos os estados do nosso país. Seja no centro, seja no norte. Vivemos um colapso climático que está muito perto de não ser mais revertido.

Como é sua relação com sua terra, com o meio-ambiente e com o Parque Estadual do Turvo? Por que escolhê-lo?

Escolho o Turvo pois nasci naquela região de fronteira, pois meus antepassados nasceram naquela região do Turvo, pois minha família ainda vive lá, na Região Noroeste, no Alto Uruguai do Rio Grande do Sul. Encontro no Parque do Turvo a geografia perfeita para contar a história que eu queria contar, uma história que falasse de crimes ambientais, dentro de uma Unidade de Conservação numa região de fronteira do Brasil, cerceada por tantos outros crimes. Quero deixar claro que, despretensiosamente, tudo que queria era escrever um livro policial, com uma linguagem acessível, para todos lerem, e que tratasse do assunto mais caro para mim nos últimos anos: o meio ambiente. Tudo que produzo em termos literários vem daquele interior profundo do Brasil, daquele lugar onde acontecem as histórias mais fantásticas, onde muitos descrevem como realismo mágico, mas para nós que nascemos e nos criamos lá, foi e ainda é, realidade.

Quando ando pelas estradas do Turvo e sou cercada por um Panapaná, não estou descrevendo uma cena de realismo fantástico que ficou conhecida em Cem Anos de Solidão, do [Gabriel García Márquez] Gabo, estou falando da realidade, de centenas de borboletas amarelas que voam ao redor do meu corpo sem se afastarem ou se assustarem com a minha presença ali.

Você foi ao Parque Estadual do Turvo recolher elementos da realidade para utilizá-los no livro. Como foi o trabalho de campo? Quais referências na área de conservação, no parque e fora dele, você ouviu para compor sua ficção?

Morgana Kretzmann. Foto: Reanto Parada

A maioria das referências vêm da faculdade de Gestão Ambiental e das saídas de campo que fiz durante aquele período, principalmente com os bons professores daquela instituição pública (infelizmente tivemos também os péssimos professores, e com esses, a gente não aprende nada). Entre eles eu posso citar o João Quoos, que muito me ensinou, pois além de excelente profissional, ama o que faz.

No parque há um trabalho incrível e um grande conhecimento de campo dos guardas-florestais que deram verdadeiras aulas em cada visita que eu fazia. Como o chefe do parque, Rafael Diel, e o guarda-florestal, Vilmar Grutzman. As informações que eles passaram sobre a caça exploratória dentro do parque foram fundamentais para a descrição de determinadas cenas no livro.

A caça ilegal é um tema onipresente no livro e uma realidade dura nas regiões de fronteira do Brasil. Você, uma gaúcha nascida na fronteira, pode falar com propriedade sobre o tema. Como foi crescer com essa sombra à espreita? Como o assunto era tratado?

A caça é uma realidade no Parque do Turvo até hoje. Algumas cenas do livro, que para alguns pode parecer ficção demais (adoro quando usam esse termo) são as cenas mais reais, inspiradas em histórias reais que me foram relatadas por guardas-florestais, por moradores e pessoas que viveram a vida toda lá.

Meu avô, minha avó, minha mãe e tios nasceram e foram criados ao lado (e dentro) do Parque, pois a morada dos meus avós era apenas separada por uma estrada de chão. Eles conviviam com muitos animais silvestres dentro do pátio. Muitas vezes um susto enorme. Outras o encantamento total. Caçadores passavam por lá a toda hora, caçadores passam pelas propriedades que fazem divisa com o parque até hoje.

Há um Clube do Livro numa cidade próxima ao parque, onde o Água é a obra escolhida deste mês. Pessoas que ainda vivem nas proximidades de Unidade de Conservação e que participam do Clube me escreveram pelo instagram após a leitura. Relataram que certas situações descritas no livro que tratam do passado (os trechos que se passam na década de 1950), aconteciam e continuam acontecendo até hoje.

Política, negacionismo e narrativas fantasiosas sobre o noticiário climático têm perdurado nos últimos anos, mais do que nunca. O livro toca nessas questões ao mostrar o jogo de poder entre grandes caciques, você se inspirou em alguma situação específica para construir essa rede prejudicial à preservação do Turvo no romance?

Tivemos um dos governos mais extremistas das últimas décadas. O governo anterior acabou, mas os políticos que o apoiavam e pensavam com ele, não. Temos um parlamento negacionista ainda maior hoje. A extrema-direita e seus deputados e vereadores negacionistas estão aumentando no mundo todo.

Trabalhei na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul no início dos anos 2000. Foi um show de horrores. Eu era muito jovem, uma menina mesmo, e vi o que há de pior naquele lugar e naqueles homens. Convivi com verdadeiros monstros que cometiam todos os tipos de atrocidades para se manterem no poder. O que acontece em termos climáticos no Rio Grande do Sul e no Brasil não começou hoje. A tragédia começou já naquela época, e também antes dela. O livro é também uma denúncia a tudo que ainda pode piorar em termos sociais e ambientais no nosso país e no mundo. Barragens e hidrelétricas continuam sendo construídas como elefantes brancos, obras faraônicas superfaturadas para enriquecer poucos e trazer novas tragédias para muitos.

  • Matheus Lopes Quirino

    Escritor e jornalista. Escreve sobre cultura e meio ambiente. Tem textos publicados em veículos como Mongabay, O Globo e O Estado de S. Paulo.

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