Reportagens

Memórias do fogo: Como um ambientalista transformou as queimadas da Chapada Diamantina em um romance 

Inspirado em fatos reais, ‘Contra Fogo’ mostra como brigadistas florestais usam da sabedoria popular para alertar sobre a urgência climática

Matheus Lopes Quirino ·
4 de abril de 2024

Começo de outono no hemisfério Sul. E os ventos são mais brandos no sul da Bahia, onde hoje mora Pablo Casella, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio. Por duas décadas, Casella fez parte de uma equipe que percorreu diariamente os caminhos do Parque Nacional da Chapada Diamantina, no centro do estado. Por aquelas matas e estradas de terra que se aprofundou, viu de tudo. De novas espécies da fauna e flora ao crescimento dos incêndios, os impactos do El Niño e a seca que se alastrou nos últimos anos que esteve na reserva. Ali, beleza, violência e sabedoria popular constantemente se cruzavam.

Em entrevista ao ((o))eco, o biólogo do interior de São Paulo, que lança seu primeiro romance, ‘Contra Fogo’ (editora Todavia), conta sobre sua longa trajetória na Chapada Diamantina e como a ficção se fez presente (e necessária) para mostrar a realidade de um Brasil que, até para a literatura, mantém-se indecifrável. 

((o))eco: Durante 20 anos, você fez parte da equipe gestora do Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Gostaria de saber qual era seu papel na área de conservação do parque e o que você viveu e viu, nestes anos, que provocou uma mudança em sua vida…

Pablo Casella: Sou analista ambiental do ICMBio e, em vinte anos na gestão do Parque Nacional da Chapada Diamantina, atuei em alguns temas. Fiscalização, educação ambiental, gestão do conselho consultivo, uso público e incêndios florestais.

A experiência de viver na Chapada Diamantina me transformou de incontáveis maneiras. Em especial, a generosidade e o senso de comunidade que testemunhei por lá me fizeram crer que é possível, enquanto espécie social e gregária, resgatarmos algumas desejáveis essências de nossa humanidade.

Como surgiu a ideia do livro? De onde vêm as personagens? Por exemplo, Deja, o protagonista, à frente do grupo de brigadistas, tem alguma semelhança com alguma figura que passou pelo seu caminho? 

Imagem: Divulgação.

Em diversos momentos, ao longo dessas duas décadas na Chapada, recebi algumas solicitações de jornalistas ou documentaristas interessados em registrar o movimento dos brigadistas. Eu dedicava um bom tempo transmitindo a eles os aspectos que eu julgava serem fundamentais. Os resultados sempre me decepcionavam. Até que eu percebesse o óbvio: ninguém poderia contar a história que eu considerava importante sobre os brigadistas a não ser eu.

As personagens do livro são ficcionais. Em minha intenção havia a vontade de que cada personagem do livro portasse características, elementos de várias pessoas que conheci na Chapada, incluindo o narrador. Algumas pessoas mencionadas no livro são personalidades reais da Chapada, em sua maioria pessoas já falecidas. Uma exceção foi a do meu amado amigo Joás Brandão, que aparece no livro como ele próprio, por dois motivos: ele merece essa celebração de seu legado. E, para que pessoas que conheçam mais de perto a Chapada e suas personagens, não confundam o protagonista, narrador do livro, com Joás.

Nos últimos anos, por conta do avanço do aquecimento global, temos visto florestas queimarem no Brasil e no mundo, isso em grandes proporções. Durante o tempo que você atuou diretamente no parque, essas ocorrências – incêndios, crimes ambientais – aumentaram?  Como você vê esses problemas na região nos últimos tempos?

Uma dificuldade impedidora de uma resposta mais qualificada a essa pergunta é a significativa falta de registros históricos dos incêndios na Chapada Diamantina. É impossível, até agora, conseguir apontar algum padrão histórico sem esses registros confiáveis. Incêndios florestais nos ambientes campestres, como o Cerrado e os Campos Rupestres, podem ser causados por raios, a única causa de incêndio natural registrada na Chapada, mas também podem ser causados por ações humanas. Esse segundo grupo possui uma lista de motivações. Essas motivações, ou suas importâncias no rol das causas, variam ao longo do tempo.

O primeiro chefe do Parque Nacional da Chapada Diamantina (que foi criado em 1985), Roy Funch, tem uma frase emblemática sobre isso. Segundo ele, naquela época, um único incêndio podia assolar a Chapada por meses. Ele costumava exemplificar que um fogo poderia começar em Mucugê e só parar, semanas depois, perto do Pai Inácio (isso equivale a cerca de 60 km de distância). Esse cenário não existe mais, desde o advento das ações de combate aos incêndios, apesar de muitos percalços históricos, os incêndios não atingem mais tal proporção na área do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Mas mesmo na era dos combates, sabemos que houve períodos em que os incêndios acometeram a região de forma significativamente superior a outros anos. Em geral isso é atribuído às variações climáticas, embora não apenas. Em anos de El Niño a situação tende a ser mais grave, em anos de El Niño duplo, ainda mais. Considerando o que eu mencionei até aqui, parece que não há efeitos do aquecimento global sobre esse tema na Chapada Diamantina, não é? Mas essa afirmação seria incorreta também. Apesar da lacuna de informações mais antigas, de dados que seriam imprescindíveis para uma comparação histórica confiável, é muito possível que já estejamos enfrentando situações climáticas influenciadas pelas alterações humanas no clima do planeta. Infelizmente, repito, o que temos de exemplos são afirmações anedóticas, que podem ser influenciadas por percepções pessoais. Mas há uma percepção coletiva, social, na região que aponta, por exemplo, para uma maior dificuldade dos sistemas naturais de armazenamento subterrâneo de água em manterem um abastecimento de água superficial mais constante, por meio de córregos e rios. Percebe-se que rios que dificilmente secavam no passado estão, atualmente, mais suscetíveis à seca.

Amo uma frase que ouvi de um senhor, na zona rural de Ibicoara. Eu passava em frente à casa dele, em uma estrada rural pouco trafegada, e parei o carro, admirado pela beleza dos adobes que construíram a casa dele. Ele percebeu e se aproximou e começamos uma conversa que, para mim, foi um deleite. Ele contou que construiu, ele próprio a casa e que desde os nove anos de idade (à época dessa conversa ele talvez estivesse com seus setenta anos) ajudava o pai a fabricar adobe [tijolos de terra crua]. Então ele entregou essa pérola: “Quando eu era menino, eu lembro, pra fazer os adobo, nós tinha que esperar agosto. Só dava pra secar adobo em agosto. Agora, nos dias de hoje, dá pra fazer adobo o ano inteiro”. Esse relato, mesmo que anedótico, pra mim, é conclusivo, retrata uma percepção que não devemos menosprezar o conhecimento popular, social de que o clima vem mudando nas últimas décadas e convergindo para tempos mais secos, com chuvas mais concentradas.

Os desafios do grupo no enfrentamento dos incêndios é uma questão central no livro. Como foi transformar esse fogaréu todo em palavras? 

Durante os quarenta meses de escrita desse livro, tive sobre meu ombro, o tempo todo, um brigadista arquetípico observando, ouvindo cada frase. Mais de um, na verdade. Eu conversei muito com esses brigadistas imaginários (com alguns reais, também) e eles não me deixavam deslizar muito, não. No início de minha atuação na Chapada também fui para alguns combates, na linha de frente. E mesmo quando não estava no combate diretamente, estava no planejamento ou no apoio dos combates, sempre lado a lado com brigadistas. Não havia, portanto, dificuldades em me conectar ao tema, ao cenário, às personalidades, pois esses são todos elementos muito familiares para mim. A dificuldade – e a diversão do processo – era transformar esse conhecimento em arte, em literatura. Era necessário que as personagens falassem ao mesmo tempo do modo genuíno e belo que falam fora do livro e com recursos literários no texto.

O analista ambiental e escritor Pablo Casella. Foto: Arquivo pessoal.

Sua prosa tem uma oralidade particular. Como foi confrontar a ‘língua culta’, acadêmica, que por vezes domina a literatura que se propõe a falar de dilemas ambientais, como incêndios, etc.? 

Eu me alinho a uma intenção literária que pretende um diálogo imbricado, indissociável, entre a linguagem e a história. Que ambas se apoiam, se complementam, como uma dança ou um jogo de capoeira. E quando decidi contar a história de um brigadista voluntário de combate a incêndios florestais da Chapada Diamantina precisei encontrar o outro elemento dessa dança, a linguagem que seria necessária para se contar essa história. Toda arte é recebida pelo público em suas múltiplas significações, claro que o leitor de ‘Contra Fogo’ opinará, por si próprio, se na sua percepção esse livro proporcionou uma dança fluida, um bom jogo de capoeira, com ação e reação coerentes entre a história e a linguagem. Minha intenção com ‘Contra Fogo’ foi honrar e celebrar muitos patrimônios, a Chapada, os brigadistas, a luta ambientalista da região, exuberâncias culturais do lugar e, entre elas, as oralidades das gentes.

E como foi construir uma voz que vem de um rincão do Brasil? Quais dificuldades você encontrou? Digo isso porque você é do interior do estado de São Paulo e, no livro, os personagens estão longe dali

Particularmente, me associo aos que entendem que não existe voz que não venha de um rincão. Mesmo a voz de um metropolitano sudestino transmite este seu rincão, a metrópole (ou a fração dela) sudestina. Da mesma forma como não concebo que haja alguma arte que não seja regionalista, pois que toda produção cultural reflete sua região.

Sobre o meu desafio de construir uma voz no texto que seja de um rincão que não o meu de origem, pondero dois aspectos. Sinceramente, não sei se construí uma voz. Se o futuro trouxer elementos mais convincentes de que sim, terei uma grata surpresa, porque considero esse uma elevada ação literária. Por ora, no entanto, eu consigo identificar apenas que meu processo foi o de ter ouvido essas vozes, com atenção genuína, com sincero deleite, desde minha chegada na Bahia. E esse ouvir se deu por vinte anos. Quero crer que, pelo exercício de ouvir, me familiarizei intensamente a essas vozes que busquei celebrar no livro. 

‘Contra Fogo’ pode ser lido, também, como um alerta para os nossos tempos. Como a literatura pode conscientizar as pessoas para a pauta ambiental? 

Embora eu não entenda, até onde o alcance da minha consciência permite, que havia em mim o objetivo de criar um livro com uma pauta ambientalista, no sentido de um texto panfletário ou didático, o panorama ambientalista está presente intensamente na vida das personagens do livro – e do autor também, admito. Entendo compreensível que alguns leitores, talvez mais sensíveis a esse tema, saiam da leitura com uma percepção de que há uma espécie de alerta embutido no livro. E viva as diversidades, biológica, cultural e de significados. Natural que algumas pessoas associem a difícil missão dos brigadistas aos efeitos da crise climática que já nos acomete, nada de equivocado nisso. De minha parte, adorarei saber das várias percepções e entendimentos que leitores farão do livro e resta-me torcer para que além desses entendimentos diversos, também esteja palpável a tentativa de um mergulho literário na alma humana, por meio das personagens e seus contextos.

Sou convicto de que nós, humanos, temos uma característica intrínseca a nossa espécie, a necessidade básica pelo lúdico, por fabular e criar ficções. Em minha opinião, um poder elementar da literatura e de todas as artes é o de garantir, ao menos, mínimas doses de fabulação transcendente e, dessa forma, nos manter salvos da monstruosa e constante pressão pela nossa desumanização.

Este é seu primeiro romance. Como é a sua relação com a escrita? 

Suspeito que a escrita desse romance foi um tributo pago com muito atraso – e, portanto, com seus devidos juros – às sagradas divindades da Arte, essa força à qual devoto tanto afeto e paixão. Por décadas padeci de um retraimento constrangedor, durante o qual a principal vazão a esse impulso latente eram os textos técnicos e burocráticos que redigi em meu emprego. Sou dos poucos privilegiados que puderam, no período de isolamento social da pandemia, realizar com algum conforto alguns mergulhos íntimos em busca de algumas correções de rumo da vida. Então, sim, ‘Contra Fogo’, e minha nascente carreira como escritor, é fruto desses mergulhos e do isolamento pandêmico. 

Como você desenvolveu a sua escrita? 

Meu regime de escrita, portanto, é errático e sem um padrão reconhecível. Após quarenta meses na escrita de ‘Contra Fogo’, durante os quais minha escrita se dava predominantemente em um terceiro turno do dia, após as funções empregatícias e familiares (começava a escrever por volta das dez da noite e adentrava um pouco na madrugada, repetidas vezes até o corpo reclamar e me garrotear adoentado no final de semana), após esse heterodoxo e pouco saudável período passei a me dedicar à leitura de obras que ou estavam numa vergonhosa e infindável lista de pendências literárias, ou eram novidades que eu quis muito conhecer. 

Você sempre quis se tornar um escritor?

É possível reconhecer que algum ânimo literário me acompanhava desde muito cedo, minha professora da terceira série [atual quarto ano], por exemplo, profetizou minha carreira como escritor. A questão é que a meta adolescente era me tornar um Hermann Hesse ou um Saramago e a vida adulta me trouxe uma acachapante e indesejável autocrítica que deve ter contribuído com essa retração na escrita. Fico feliz por ter conseguido dar uma banana para esse juiz severo que me habita e me permitido fazer o que os humanos todos devem fazer, arte porque sim.

Um brigadista em ação na Chapada Diamantina. Foto: Sergio Carvalho/Bral

Na comunicação, em geral, vemos uma série de discursos criados para conscientizar o público acerca das adversidades ecológicas, mas nem sempre eles funcionam. Existe um beabá, um didatismo – em peças publicitárias, documentários, livros – que domina o mercado. Mas seu livro vai na contramão disso. Humaniza as personagens, traz as cruezas da vida, as imperfeições, mostra as muitas frentes dos incêndios. Enfim, levando em conta tudo isso e os problemas que cercam essas questões, o que você espera do seu livro? Qual caminhada ele está seguindo? 

Em um devaneio otimista, o máximo que eu esperava que o livro pudesse instigar para além da literatura era uma ampliação no conhecimento que o restante do país tem sobre essa forma de existência, a dos brigadistas voluntários. Essa é uma agenda das primeiras, admito. Uma eventual efervescência sobre a temática ambiental não estava deliberadamente em meus planos com o livro, mas se ela vier a acontecer, talvez ficará óbvio o quanto me interesso por essa discussão e entenderei como um irrecusável chamado de Pachamama para contribuir.

Quais suas referências na literatura e no ambientalismo? Como elas se cruzam? 

Ao invés de referências, pois se assim fosse estaria admitindo um certo contorno no qual pretendo inserir minha literatura, considero que eu tenha admirações. E elas transcendem o que se entende mais pacificadamente por literatura, pois tocam as histórias fabuladas em tempos ancestrais, cuja autoria é impossível definir. De tão vasta, uma lista de exemplos seria inútil. As histórias de cosmogênese de povos tradicionais, os poemas védicos e épicos indianos e chegando nos formatos mais familiares a nós, eurocentrados, Dom Quixote, Herman Hesse, Saramago, Machado. E para não ficar apenas no conforto de citar os que já não estão entre nós, ouso citar Daniel Galera como literatura que pode ser um estímulo à minha. O ambientalismo, confesso, influenciou minha vida muito por meio dos documentários de televisão, na infância até a adolescência. Boa parte da literatura infantil que consumi (Monteiro Lobato e Francisco Marins) talvez provocasse, no máximo, uma certa transposição imaginária para um ambiente rural. Foi com ‘Primavera Silenciosa’, de Rachel Carson, que o ambientalismo mais explícito se avizinhou à literatura dentro do meu alcance cultural. Hoje eu considero que poemas sufis, haicai e literatura budista são bons exemplos de mergulhos profundos e lúdicos no que me parece necessário para um despertar ambientalista.

Gostaria de comentar sobre projetos futuros? 

Os projetos literários aos quais tenho dedicado energia, no momento, estão voltados para apresentar e conversar sobre ‘Contra Fogo’ tanto com pessoas já afeitas à literatura e que naturalmente não me conhecem, quanto com um público ampliado, não necessariamente familiarizado com o universo literário, mas que eventualmente se interessariam pela história do livro. Acalento, por exemplo, o sonho de alcançar brigadistas de todo o país.

Em termos de novos  textos, na verdade tenho me debruçado sobre um texto que escrevi há uns vinte e cinco anos, pensando em finalmente publicá-lo. Sob uma rápida e despretensiosa observação poderia ser considerado um texto voltado às crianças, mas tenho a esperança de que seja entendido como uma expressão lúdica que alimenta as almas de qualquer idade. Estou precisando me despir de algumas couraças para acolher esse impulso, para não pensar em supostas regras de um percurso autoral. Espero vencer esses bloqueios e que ao final dessa revisita eu reconheça que esse texto seja bom e interessante para seguir ao mundo.

  • Matheus Lopes Quirino

    Escritor e jornalista. Escreve sobre cultura e meio ambiente. Tem textos publicados em veículos como Mongabay, O Globo e O Estado de S. Paulo.

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Comentários 2

  1. CRISTINA RAPPA diz:

    Gostei bastante da entrevista e já vou encomendar o livro do Casella. Que ele tenha muito sucesso!


  2. Parabéns, pela introdução da arte para conservação das unidades de conservação!
    Fico, contente pq o plano de manejo da flona Palmares, 2022, traz um poema de nossa autoria e do qual derivou o hino da floresta Palmares. Somos defensores da arte que permeia todas as instâncias profissionais! Parabéns, Pablo. Como adquirir o livro? O nosso tá na Amazon. Miscelânea.