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Meio ambiente: a gilete na mão do macaco

O Brasil, tão rico na área ambiental, assumiu, em pouco mais de dois anos do atual governo de Jair Bolsonaro, os contornos de uma ameaça global

31 de março de 2021 · 4 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Ernesto Araújo, Jair Bolsonaro e Ricardo Salles, em coletiva em 2019. Foto: Marcos Corrêa/PR

Há uma década escrevi o artigo “A Gilete na Mão do Macaco”. Seu sentido figurativo dispensa apresentações. O objetivo era alertar a sociedade para as consequências decorrentes do uso irresponsável dos órgãos da administração pública.

Nada mais atual. A saída tardia do chanceler Ernesto Araújo do Itamaraty deixou um saldo negativo para a imagem brasileira no exterior, que culminou com 300 diplomatas pedindo seu afastamento do cargo. Enquanto isso, a gestão do general Pazuello frente ao Ministério da Saúde caracterizou-se pela ineficácia para prevenir centenas de milhares de mortes, o que causou forte comoção interna e duras repercussões internacionais.

De outro lado, consequências contínuas e nocivas continuam sendo amargadas pela área ambiental brasileira e deveriam exigir a substituição urgente do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, assim como para seus nomeados, a exemplo do presidente do Ibama, Eduardo Bim.

Um dos primeiros pontos a ser observado é a inadequação histórica da falta de gestão na área ambiental, já que o Brasil possui identidade própria, ligada à sua riqueza natural, o que exige um governo que corresponda, de forma responsável e lúcida, ao patrimônio ambiental.

Em função do gigantismo do Brasil, os impactos vão além de nossa territorialidade. Era de se esperar a estupefação internacional, já que as consequências da má gestão se refletem na dinâmica da sustentabilidade global, seja em função da destruição continuada da floresta amazônica ou na tragédia que atingiu o Pantanal Matogrossense, ambas marcadas pela ineficácia do Ministério do Meio Ambiente.

Aos fortes impactos negativos na proteção climática e da biodiversidade somam-se os atuais aspectos epidemiológicos de alta morbidade e da capacidade limitada para conter a Covid-19. O Brasil, tão rico na área ambiental, assumiu, em pouco mais de dois anos do atual governo de Jair Bolsonaro, os contornos de uma ameaça global.

Não se trata de episódios fortuitos ou acasos do destino. Há uma forte carga de intencionalidade declarada e explicita que vem minando a administração ambiental brasileira. Quem poderia imaginar, há três anos, que o futuro governo chegaria ao ponto de tentar destruir o que foi construído a duras penas, nas últimas décadas, na política de defesa do meio ambiente do país?

Os primeiros ataques foram dirigidos ao Ibama e ICMBio, responsáveis pela fiscalização ambiental e a gestão das áreas protegidas; seguido pela desfiguração de normativas ambientais por meio de despachos, decretos e portarias; e posteriormente a eliminação dos espaços de participação social, que são a garantia de transparência e controle social sobre os atos do governo.

“Não se trata de episódios fortuitos ou acasos do destino. Há uma forte carga de intencionalidade declarada e explicita que vem minando a administração ambiental brasileira”

Ao lado de um discurso presidencial irresponsável, como estímulo à impunidade, o Ministério do Meio Ambiente começou a trabalhar contra o meio ambiente e sofre diversos revezes judiciais diante das inconstitucionalidades que produziu, como a desfiguração do Conama e a revogação das resoluções 302 e 303/2002, que garantem proteção às áreas de mananciais metropolitanos e de restingas no litoral brasileiro.

Nos aspectos de fiscalização, o Ibama demonstra completa ineficiência para a execução de multas, que acabaram neutralizadas por meio de mecanismo recursal que favorece infratores, com morosidade e anistia. A isso se somam a acefalia na área de fiscalização e o corte de recursos e meios operacionais. Aspectos de transparência e democracia também são atingidos, pois promovem censura prévia para a divulgação de suas pesquisas científicas.

Uma boa administração pública ambiental deve avaliar seus atos em sua repercussão de longo prazo, com fundamentação e análise consistentes, envolvendo escalas de tempo muito maiores do que a do ciclo de vida de um governo – e sem admitir demagogia para iludir ou enganar a sociedade. Deve adotar e fortalecer os rumos da sustentabilidade, e esta tarefa depende de condições efetivas para o bom funcionamento de órgãos como o Ibama, o ICMBio e o Conama, cujos objetivos a serem perseguidos estão perfeitamente clarificados na Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), recepcionada pela Constituição de 1988.

É preciso identificar as influências nefastas que minam a administração ambiental brasileira na área federal. Não é difícil perceber que, como muitos já têm percebido e dito, essas instituições públicas têm sido capturadas por três fatores indesejáveis, cuja mistura é explosiva: o negacionismo, o populismo e o neoliberalismo.

Os dois primeiros dispensam comentários, já que podem ser perfeitamente identificados nas falas e motivações explícitas do presidente Jair Bolsonaro, que se refletem em escolhas questionáveis para o primeiro escalão do governo.

Há uma tentativa palpável de deslegitimação da ecologia como ciência, conhecimento, cultura e informação. “A gilete na mão do macaco” decorre intrinsecamente da institucionalização da ignorância, por meio de critérios ideológicos negacionistas, orientados pelos objetivos do populismo eleitoral e da manutenção do poder a qualquer custo.

Sem ter conhecimento e informação como prioridade na tomada de decisão, o processo de administração pública ambiental sofreu severos retrocessos ao deixar de considerar direitos fundamentais constitucionais, permitindo influências retrógradas dos piores representantes de segmentos econômicos como do agronegócio, da exploração de madeira e da mineração, que passaram a produzir influência política decisória.

Este neoliberalismo cru, dissociado da informação certificada e movido por populismo eleitoral, está sangrando o Brasil e o coloca na retaguarda da comunidade internacional. Os acordos internacionais se transformaram em letra morta, negados em conveniências abjetas por adjetivos como “globalismo” ou “comunismo”.

O retrocesso instalado apenas se retraiu diante das consequências econômicas que o Brasil passou a colher, frente à falta de regularidade ambiental de suas commodities no mercado internacional.

Diante das consequências, a reação esboçada pelo governo não foi corrigir a ineficácia, mas concentrou-se no sofisma de “mudar a narrativa”, levado a cabo por ex-chanceler Ernesto Araújo, que por meio de desvios negacionistas aprofundou a crise de imagem e descrédito diante da comunidade internacional.

Da mesma forma, uma custosa operação militar acabou fracassando para proteger a Amazônia contra o desmatamento, em função de falta de expertise e de uso de métodos inadequados, em substituição à atuação especializada do Ibama.

Resta lembrar que o imponderável efeito da gilete na mão do macaco não foi um fato isolado. O governo de Donald Trump já tinha dilacerando diretrizes de sustentabilidade da agência de proteção ambiental americana (Environmental Protection Agency – EPA) e só foi refreado pela insurgência de Estados americanos progressistas como a Califórnia. A presença de Donald Trump no cenário internacional favoreceu e ampliou o negacionismo populista e neoliberal brasileiro. Felizmente, este ciclo foi interrompido com a ascensão de Joe Biden ao poder, como contrapeso na política ambiental internacional, que trouxe maior exigência em requisitos ambientais.

Ressalto ainda a ascendência, no seio do governo, da pobreza de critérios na decisão dos rumos da sustentabilidade brasileira em sua relação com o desenvolvimento econômico, permeada por um sofisma que tenta colocar, em um mesmo plano, o ambiente e a economia. Confunde, de forma proposital, o que é essência e o que é processo, sem uma visão ecossistêmica que possa sustentar o processo civilizatório.

O negacionismo trazido pelo neoliberalismo ignora de forma proposital os critérios do desenvolvimento sustentável, ao igualar interesse econômico aos direitos constitucionais sobre bens indisponíveis representados no patrimônio ambiental público.

A falta de conhecimento sobre os aspectos basilares da capacidade de suporte ambiental, dos limites aceitáveis de alterações nos ecossistemas naturais e as consequências e riscos provocados à incolumidade da vida e da saúde pública não são elementos subjetivos à luz da ciência, especialmente dentro desta era do Antropoceno. Mesmo assim, o MMA, por meio do Ibama, vem tentando subverter a boa normatização com a justificativa de liberdade constitucional da economia e da importância de “simplificar e desburocratizar” (leia-se facilitar) o sistema ambiental.

Gerir bens públicos apresenta sérias incompatibilidades quando lançados aos interesses privados. Este é outro desafio, já que o Ministério do Meio Ambiente vem promovendo concessões de áreas ambientalmente protegidas para o setor privado, sem linhas de corte, e de forma antagônica aos seus atributos naturais.

Diante deste conjunto de fatores negativos colocados à guisa de políticas públicas ambientais, temos vivido no Brasil um contínuo estelionato da razão, onde o papel de nossas instituições e das salvaguardas legais e democráticas encontram-se em jogo.

Há uma ligação umbilical entre ciência, proteção ambiental e saúde pública. O negacionismo, o populismo e o neoliberalismo inviabilizam bons sistemas de gestão. O mesmo processo notado na devastação ambiental reproduziu-se na pandemia, com dramáticas consequências para os brasileiros.

O imponderável aflige nossa história ambiental. Há salvaguardas constitucionais, onde se nota que o acionamento dos gatilhos legais não ocorreu, mesmo diante de limites há muito ultrapassados. Essas salvaguardas devem cumprir sua função, para fazer cessar o inaceitável retrocesso e desfiguração da administração pública no Brasil.

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