Uma semana depois do início da colheita de soja em Mato Grosso, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou um documento afirmando que as plantações do grão não têm qualquer relação com os desmatamentos ocorridos no Cerrado e na Floresta Amazônica nos últimos 4 anos.
O trabalho, assinado por Antonio Salazar Pessoa Brandão, Gervásio de Castro Rezende e Roberta Wanderley da Costa Marques, afirma que a expansão da área plantada se deu basicamente sobre pastos degradados, e não sobre matas recém-cortadas. Cerca de 7,9 milhões de hectares de pastos abandonados teriam sido convertidos em plantações de soja entre 2001 e 2004. O texto soa como boa notícia quando diz, por exemplo, que “o crescimento da produção de soja não deve ser visto como antagônico à política ambiental, especialmente no que se refere à floresta amazônica”. Ou seja, a acelerada expansão do cultivo de uma de nossas principais exportações não estaria ameaçando o patrimônio natural do país.
A conclusão provocou espanto em quem acompanha de perto a evolução do plantio da soja na região Centro-Oeste e no sul da Amazônia. O Instituto Socioambiental (ISA) e o Fórum Brasileiro, que reúne mais de 800 organizações não governamentais e movimentos sociais, fizeram um levantamento sobre o que aconteceu com as áreas desmatadas durante o período de 2000 a 2003 na região conhecida como médio-norte no Mato Grosso. O estudo ainda não foi concluído, mas dados preliminares revelaram que em 70% dos casos a área foi destinada à agricultura, sendo que 54% dessas terras viraram plantação de soja. É importante ressaltar que esse dado se refere a desmatamentos ilegais, em áreas onde não foi dada autorização para se devastar. “As reservas legais não estão sendo respeitadas”, afirma André Lima, co-autor do trabalho e consultor jurídico do ISA.
Maurício Galinkin, que trabalhou 18 anos no IPEA e atualmente coordena a Articulação Soja-Brasil, uma grupo de organizações que tenta reduzir os impactos sócio-ambientais das plantações, diz não ter dúvidas de que a soja provocou desmatamento, mesmo que indiretamente. Ele argumenta que o plantio de soja sobre pastos empurra a fronteira pecuária em direção à mata. “Você tem que mandar o gado para algum lugar”, diz. O documento do IPEA reconhece que nos últimos anos houve uma expansão do rebanho bovino brasileiro, mas alega que a substituição de pastos por soja não incentivou a criação de novos pastos porque, no mesmo período, houve aumento no abate de gado, aprimoramentos genéticas e melhorias das pastagens. Mas as conclusões do IPEA não convenceram nem a imprensa internacional. Em sua edição de 14 de janeiro, o Financial Times publicou uma matéria intitulada “Exportações são culpadas por desmatamento na Amazônia”, em que contesta o estudo.
Tanto o ISA quanto a World Wildlife Foundation (WWF) garantem que tem gado ocupando áreas de mata recém-derrubada. Ilan Kruglianskas, da WWF brasileira, diz que a organização estimula o uso de pasto degradado para o plantio de soja, que tem capacidade de regenerar o solo porque fixa nitrogênio, elemento essencial para o crescimento de qualquer vegetal, até grama. O problema é que os pecuaristas estão arredando parte das suas terras para agricultores e continuam a criar gado em outras áreas. O paradeiro desse gado está sendo a mata. O relatório do ISA afirma que as áreas de preservação permanente (APPs), em locais onde se desenvolvem atividades de pecuária, encontram-se na sua maior parte degradadas.
O IPEA também foi infeliz ao afirmar que “é impossível ‘abrir’, tão rapidamente, área virgem de cerrado (e muito menos ainda de floresta amazônica!) e, no mesmo período de tempo, usar essa área nova na produção de soja”. O que chamam de “rapidamente” são os três anos agrícolas analisados pelo estudo (2001-2004). “Isso é porque eles nunca viram dois tratores arrastarem correntes pesadas, usadas pela indústria naval, e arrancarem tudo o que encontram pela frente, até raiz”, reagiu Maurício Galinkin. Ironicamente, o estudo do IPEA comenta que a compra de tratores usados nesse tipo de operação aumentou nos últimos anos, mas os pesquisadores acreditam que as máquinas foram utilizadas na conversão de pastos.
Na década de 90, o processo de desmatar e preparar o solo para a plantação de soja demorava cerca de cinco anos. Mas o levantamento feito pelo ISA constatou casos em que essa conversão foi feita em menos de um ano. A técnica empregada é cara, mas o preço excepcional das sacas de soja faz valer a pena o investimento. “O clima e o solo em áreas de transição entre Amazônia e Cerrado são bons. Com o preço do grão lá em cima, dá para custear troca de mata por soja”, explica André Lima. “Mesmo com a queda dos preços mundiais, ainda vale a pena”, complementa Ilan Kruglianskas.
Seguindo a linha de raciocínio de que a soja é uma aliada do meio ambiente, o estudo do IPEA defende explicitamente o asfaltamento imediato da BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA) cortando uma das áreas mais preservadas da Amazônia, e o plantio de soja em suas margens. “A razão básica para não se temer o asfaltamento dessa rodovia é que, muito ao contrário do que se pensa, a viabilização da soja nessa região permitirá que a política de preservação ambiental se torne mais eficiente na consecução de seus objetivos”, alega o IPEA.
Os autores do trabalho acreditam que a presença da soja na região aumentará o preço da terra e inviabilizará as atuais atividades predominantes na região, que seriam: “a agricultura itinerante, de baixo nível tecnológico e usuária do fogo para abertura de área; a extração irracional de madeira; e atividade pecuária de baixo nível técnico e destruidora dos recursos naturais”. Os ambientalistas apontam outra solução para acabar com essas formas de degradação: “Lá tem que ter área de reserva, não soja”, afirma Ilan. “Os governos e as diversas organizações da região precisam de estímulo para montarem uma estratégia de conservação. A soja atropelaria essa história”, completa. Aliás, já está atropelando. Embora ainda existam áreas razoavelmente preservadas na região da BR-163, o estudo do ISA não deixa dúvidas de que a soja já chegou lá.
As discordâncias não terminam aí e chegam à questão fundiária. Para o IPEA, a soja pode ajudar até mesmo no combate à grilagem, por regularizar as terras e facilitar a fiscalização. Maurício Galinik, da Articulação Soja-Brasil, condena tanto a construção da BR-163 quanto os argumentos do IPEA em sua defesa. “A BR-163 é um total equívoco como via de escoamento de soja. A solução seria uma ferrovia”. Para ele, o peso dos caminhões carregados de soja vai liquidar com o asfalto em menos de dois anos. Fora o custo de se transportar grandes safras por rodovias. “Além do mais, não é a soja que vai trazer a presença do estado para a região. Grileiro não desmata na beira de estrada. Ele atua no interior da mata e isso vai continuar a acontecer”, afirma.
Outro argumento curioso utilizado pelo IPEA diz respeito à fiscalização ambiental, que poderia se tornar mais eficiente com a chegada dos grandes produtores de soja à região. Segundo o estudo, “ a soja não dá lugar à atuação paternalista por parte de agentes do Estado (incluindo membros dos três Poderes), que, geralmente, deixam de cumprir a legislação ambiental quando os infratores são pobres”. Para os ricos, presume-se, a aplicação da lei é implacável.
Segundo um dos autores do estudo do IPEA, Gervásio Castro de Rezende, o objetivo foi questionar a fama da soja de ser inimiga do meio ambiente. Mas para especialistas o estudo tem lacunas importantes. “O documento tenta sustentar que não houve desmatamentos, mas não tem indicadores sobre esse tipo de ação. O INPE tem um estudo que revela que 6 milhões de hectares de Floresta Amazônica foram desmatados durante os anos analisados pelo IPEA. Dois milhões só no Mato Grosso. Grande parte dessa área foi ocupada por pastagens e soja”, diz André Lima.
Maurício Galinik ressalta que o texto do IPEA não diferencia as pastagens naturais das plantadas. A transformação de uma pastagem natural, degradada ou não, em área para a agricultura comercial implica em desmatamento, inclusive é necessário licenciamento. È curioso pensar também que se a soja não precisa ocupar áreas de floresta para se expandir, por que o governo do Mato Grosso reduziu em 2003 o Parque Estadual do Xingu em 39 mil hectares e entregou a terra nas mãos de agricultores? Em 2004, houve uma campanha no mesmo estado para reduzir o Parque Estadual Serra de Ricardo Franco em 100 mil hectares (o parque tem 158 mil de extensão) e condenar a floresta desprotegida ao mesmo fim. Fica a questão em aberto.
O documento do IPEA tem menos de 30 páginas e está disponível na internet.
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