Faz mais de um mês que a água insalubre do Rio Negro entrou na casa de Luciano Vieira, 35, assim como na casa de todos os seus vizinhos, trazendo sujeira, destruição de móveis e doenças. Vieira mora no centro de Manaus, capital do Amazonas, e sua casa, erguida às margens do rio, é feita de palafitas, construção simples adaptada para as áreas alagadiças, pois a base da casa fica acima do nível normal de cheia do rio. A construção elevada, entretanto, não foi feita para suportar um fenômeno cada vez mais comum: as cheias históricas, que ultrapassam o nível das casas.
A bacia Amazônica possui o seu ciclo natural: de junho a novembro a água desce, ocorrendo a chamada “vazante” e de dezembro a maio a água sobe, realizando a “cheia”. De tempos em tempos ocorre uma cheia histórica, quando a água atinge uma altura como nunca antes. O intrigante é que, observados os 10 maiores níveis de água, que tem como referência o Porto de Manaus, monitorado desde 1902, metade dos recordes ocorreu só na última década (2021, 2012, 2014, 2015 e 2013, em ordem decrescente).
A maior hidrobacia existente, com cerca de 18% da água doce mundial, passa por uma drástica mudança no seu ciclo hidrológico. O processo de cheia e vazante tem se tornado mais acentuado, com níveis de água em níveis extremos. Essa mudança tem ocorrido em um curto período de tempo, mas por que tem acontecido?
Intensificação do ciclo hidrológico
A bacia Amazônica tem experimentado cheias e vazantes mais intensas nas últimas três décadas e eventos extremos ocorrem em intervalos menores. Com base nos registros feitos no Porto de Manaus, no início do século 20, os eventos de cheias severas (maiores de 29 metros, que representa a cota de emergência) aconteciam num intervalo de 20 anos. Já no início do século 21, esse intervalo diminuiu para 4 anos.
As três maiores cheias registradas no Porto de Manaus (2009: 29,77 metros; 2012: 29,97 m e 2021: 30,02 m) ocorreram nos últimos 12 anos. Sete cheias extremas (2012, 2013, 2014, 2015, 2017, 2019 e 2021) alcançaram ou ultrapassaram a cota de emergência nos últimos 10 anos. Especialistas, ao verificarem o aumento na descarga dos rios durante a estação chuvosa, chamaram esse fenômeno de ‘intensificação do ciclo hidrológico’. Por conta desse fenômeno, ao comparar com as décadas anteriores, houve um aumento significativo da amplitude anual de mais ou menos 1,5 metro.
O cientista florestal Jochen Schöngart, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica que existem três grandes mecanismos que resultam nesse fenômeno observado na Amazônia Central. “Estas recentes mudanças expressivas no ciclo hidrológico suscitam perguntas se estas tendências ainda podem ser explicadas pela variabilidade natural do regime hidro-climático ou se a intensificação já é uma manifestação de mudanças climáticas antrópicas”, conta o cientista, em uma resposta por e-mail.
Primeiramente, ele explica o papel da Temperatura Superficial do Mar (TSM); Um estudo do Inpa em colaboração com pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, associou esse aumento da frequência e magnitude das cheias com o aumento das TSMs no Atlântico Tropical e, simultaneamente, o esfriamento no Pacífico Equatorial Central-Leste no período de 1990 à 2015. É um fenômeno natural que provoca maior formação de nuvens de chuva na bacia Amazônica e consequentemente em cheias maiores.
O segundo mecanismo, evidenciado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), explica como a pluma do Rio Amazonas intensifica o ciclo hidrológico, num processo de retroalimentação; como existe uma quantidade mais espessa de água doce sendo despejada no oceano, a barreira entre a água doce e salgada (localizada mais abaixo) fica maior e diminui a mistura com a água fria, aumentando a temperatura superficial do mar, que facilita o trânsito dessas águas para o leste. “Esse aquecimento, em contrapartida, provocaria uma retroalimentação do processo de intensificação do ciclo hidrológico”, explica Schöngart.
São variabilidades naturais que, como diz o pesquisador do Inpa, ocorreriam independente das ações humanas. Porém, existe um terceiro mecanismo que não deve ser esquecido.
Efeito das mudanças climáticas
Além da oscilação natural da temperatura dos oceanos Atlântico e Pacífico, as ações antropogênicas contribuem com a intensificação do ciclo hidrológico na Amazônia.
O oceano Índico, como explica o doutor em ciências florestais, influencia esse processo devido ao deslocamento do cinturão de ventos do Hemisfério Sul em direção à Antártica. Tal movimentação permite que a corrente marítima das Agulhas importe enormes volumes de água quente do Índico ao redor da África do Sul para o Atlântico, contribuindo para o seu aquecimento, resultando em mais nuvens de chuva em cima da Amazônia.
Esse desvio do cinturão de ventos está fortemente relacionado com forças antropogênicas. Devido ao alto índice de Co2 (dióxido de carbono) na atmosfera, que vem crescendo de maneira gradativa no decorrer das décadas, além do aumento do buraco na camada de ozônio, ambos causados pela ação humana, o efeito estufa vem contribuindo para a mudança na circulação de água nos oceanos, causando enchentes mais abundantes.
No fim, são três mecanismos causando esse fenômeno no processo de cheia, representando uma mistura das ações naturais do funcionamento do planeta e resultados da poluição atmosférica. Ao ser questionado sobre o impacto da ação humana no nível da água dos rios, Jochen conclui: “Tem estudos que relacionam isso claramente com mudanças climáticas causadas pelo ser humano. Outros dois fenômenos estão relacionados à variabilidade, ainda é muito difícil de separar qual é a contribuição das mudanças climáticas nesse aumento porque é uma mistura da variabilidade natural com as forças antropogênicas”.
População à mercê das águas
Quando a água avança para a cidade, moradores de áreas próximas aos igarapés ficam em situação de extrema vulnerabilidade. É o caso de Luciano Vieira, que vive junto com sua esposa e seus dois filhos no centro de Manaus, próximo ao Porto e uma das áreas mais afetadas. Ao ser questionado sobre a situação, acha graça, encara com ironia por sempre ter alagação, mas nunca mudança.
“Eu gastei mil reais só com madeira pra fazer minha maromba desde lá da cozinha até aqui ó, gastei mil reais do meu bolso mesmo, porque se fosse depender dos órgãos públicos eu tava ferrado. A maioria das minhas coisas vai estragar aqui e se não tivesse a maromba estragava mais ainda. Todo ano alaga tudinho mas não dessa forma”, comenta indignado.
O alagamento significa vulnerabilidade, perda de bens e doenças. Ao andar pelas pontes quilométricas, construídas com madeira para possibilitar o deslocamento das pessoas, o cheiro da água contaminada invade o nariz e não é difícil avistar os ratos andando pelo lixo que flutua ao redor das casas.
Luciano, com o pé ferido, conta que se machucou em algumas das diversas vezes que caiu dentro d’água: “Vixi, perdi as contas já”, e em dois momentos precisou adentrá-la para construir a maromba dentro de casa. Ao suspender o chão, é necessário ceder ao desconforto de andar envergado, com a cabeça encostando no teto, e morar durante aproximadamente dois meses com o rio poluído dentro de casa. Ele conta que o filho está doente, sofrendo com diarreia e suspeita ser por culpa da água, pois é a mesma situação que ele ficou em 2014, quando também adoeceu.
“Meu filho tá meio ruim. Em 2014 eu adoeci e meu filho agora eu suspeito que ele adoeceu por causa da água, tava com vômito e diarreia, eu acho que foi da água porque foi assim mesmo que eu fiquei em 2014”, declara.
Luciano mora no mesmo lugar desde os 5 anos de idade, quando chegou para ficar com a sua mãe na palafita, há 30 anos. Mas destaca que não era ruim naquela época: “Aí era tudo limpo, não tinha essa bagunça, essa sujeira, pessoal tomava banho aqui dentro, o barco entrava aqui, pegava um peixe na canoa pra nós… Agora vai tomar banho aí que vai pegar é uma doença”
A necessidade do olhar público
A 3,6 km do Porto, no bairro do Educandos, zona sul da cidade, Gil Eanes observa uma situação parecida com os moradores. Há 56 anos ele mora no bairro e há 12 tornou-se líder comunitário, sendo, atualmente, uma das principais e mais atuantes lideranças. Ele explica como é claro perceber onde há políticas públicas: “Tem ruas asfaltadas, meio fio, calçadas, uma rede de comércio muito variada, o transporte público e segurança para dirigir, mas também tem uma área, que justamente ficam as margens do igarapé do rio negro, onde existe a ausência completa desses caracteres humanos”.
“Na época da enchente, e nem precisa ser uma enchente que se aproxima de 29 metros, já há problemas, já há necessidade de fazer pontes e de liberar recursos financeiros para que as pessoas possam, em pouquíssimos casos, se mudar. São mais de 1000 famílias (no Educandos) morando nessa condição, que necessitam de auxílio para que as pessoas possam comprar madeira e fazer aquele assoalho mais elevado onde são as marombas”, declara.
Neste ano, a Prefeitura de Manaus, por meio do Comitê de Enfrentamento das Cheias Fluviais, criado pelo prefeito David Almeida (Avante), atuou na operação “Cheia 2021”, buscando auxiliar a população por meio da construção de pontes, obstrução de bueiros, retirada de lixo dos igarapés, distribuição de cestas básicas e o auxílio aluguel. Fazem parte do comitê a Casa Militar, Seminf, Semulsp, Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Semmas), Semasc e o Fundo Manaus Solidária. Além disso, o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM) busca, desde 2003, contribuir com a melhoria da qualidade de vida dos habitantes das Bacias Educandos e do São Raimundo.
No entanto, a população reclama que as ações não acontecem em tempo ágil. Manaus é uma cidade entranhada pelo Rio Negro, com cerca de 150 igarapés poluídos e famílias morando à sua margem.
“O que a prefeitura fez foi distribuir cestas básicas e agora ela está pagando o primeiro lote de auxílio aluguel no valor de trezentos reais. A exemplos de cheias passadas, a prefeitura não age em tempo ágil. Ela não faz as pontes antes que as áreas fiquem alagadas, então a defesa civil quando vem e faz as contas, mas precisa receber ordens da prefeitura, precisa receber recursos. Quando essas ordens e esses recursos chegam, as áreas de igarapé já estão alagadas, então eles já trabalhavam com metade do corpo dentro da água e até que isso aconteça as pessoas improvisam”, esclarece o líder comunitário.
Essas moradias na capital do Amazonas são resultado de um crescimento desordenado. No apogeu da borracha, tendo seu auge em 1912, Manaus expandiu rapidamente, recebendo milhares de imigrantes num curto período de tempo. Nessa corrida, as pessoas mais marginalizadas montaram suas casas aterrando os igarapés e construindo por cima, colocando barro e qualquer medida que fosse rápida.
Como ressalta o pesquisador Jochen Schöngart, nesse período, no entanto, a cidade vivia uma situação diferente. O nível dos rios não subia 30 metros e as cheias extremas não tinham um intervalo tão curto como atualmente, inundando a cidade e colocando seus moradores mais pobres reféns da poluição ambiental. Desde então, o nível médio do rio já subiu um metro e, segundo ele, as pessoas precisam sair dessa situação de vulnerabilidade.
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