Ondas de calor, secas extremas, enchentes, perda de produtividade humana e agrícola, extinção de espécies e deslocamentos humanos forçados. O cardápio de impactos das mudanças climáticas no mundo – presentes e futuros – é extenso e preocupante. Com o Brasil não será diferente. A segunda parte do 6º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), divulgado na última semana, dedica grande espaço às regiões tropicais e alerta: a Amazônia e o Nordeste brasileiro são altamente vulneráveis às mudanças no clima.
Esta segunda parte do novo Relatório do IPCC trouxe não só o cenário de vulnerabilidades e consequências das mudanças climáticas para ecossistemas e pessoas, mas também as opções de adaptação a essas mudanças.
Para fazer a avaliação, o grupo de pesquisadores responsável pelo documento utilizou os diferentes cenários climáticos do IPCC, que incluem reduções drásticas de emissões, limitando a alta na temperatura global a 1,5°C ao longo deste século, até a manutenção das emissões nos níveis atuais, o que levaria a um aquecimento médio de 3,5°C ao redor do globo.
Atualmente, o planeta já está 1,1°C mais quente e, segundo a primeira parte do Relatório, divulgada em agosto passado, o aquecimento de 1,5°C será alcançado já na próxima década.
((o))eco fez um compilado dos principais impactos esperados para o Brasil, com base no relatório do Grupo II, entrevistas com autores e nos materiais divulgados sobre o assunto pelo Instituto Climainfo e Observatório do Clima.
Ondas de calor
O aumento da temperatura, associado à alta umidade, poderá ultrapassar os limites de sobrevivência. Se as emissões continuarem a aumentar, as mortes por calor no Brasil vão aumentar em 3% até 2050, e em 8% até 2090. Se as emissões de gases estufa forem rapidamente reduzidas, o aumento da mortalidade cai para 2%. Habitantes de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, serão particularmente expostos a níveis perigosos de temperatura, devido aos efeitos da chamada ilha de calor.
Secas
No Nordeste, a redução de chuva, que já é pouca, pode chegar a 22%. Esse cenário de seca, combinado com aumento de temperatura de 3°C a 4°C, pode tornar a região semidesértica, caso os níveis de emissões se mantenham em patamares elevados.
“Hoje já existem regiões no Nordeste onde a precipitação já caiu 20% e a temperatura média já subiu 2,4°C. Ao agravar a situação das mudanças climáticas, este quadro pode se tornar muito mais crítico para a sustentação de populações no nordeste brasileiro. O Brasil vai ter que pensar aonde e o que vamos fazer com os milhões de brasileiros que vivem no agreste nordestino e que pode ter sua capacidade de sobrevivência prejudicada naquela região”, explicou a ((o))eco o pesquisador Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de um dos capítulos do relatório do IPCC.
O cenário de seca também vai afetar áreas maiores no sul da Amazônia. Até 2100, o aquecimento pode reduzir em 27% a vazão na bacia do Tapajós e em 53% na bacia do Araguaia-Tocantins.
As secas na região amazônica, associadas ao desmatamento e queimadas, poderão transformar a floresta úmida em regiões de savana. A redução da precipitação nessas condições pode chegar a 40%, impactando de sobremaneira a circulação dos chamados rios-voadores, que levam umidade e chuvas da Amazônia para a região central e sudeste do país, diminuindo a pluviosidade geral de grande parte do Brasil.
Além disso, a floresta Amazônica, o maior reservatório de carbono do mundo, pode se tornar um vertedouro, lançando parte dos 120 bilhões de toneladas de carbono contidas no bioma, o que agravaria ainda mais o efeito estufa. Tal situação já é verificada em porções do sudeste do bioma.
Enchentes
O IPCC também projeta um aumento no número de eventos de chuvas extremas, o que implica aumento na probabilidade de enchentes e deslizamentos de terra, como os verificados em Petrópolis no início de 2022.
Os estados do Acre, Rondônia, Pará e o sul do Amazonas são citados como regiões que devem sofrer com aumento do risco de inundações mais frequentes e extremas. No país como um todo, a projeção é que a população afetada pelas enchentes dobre ou até triplique até o final do século, mesmo com o corte rápido de emissões.
Agricultura
Secas, ondas de calor, altas temperaturas e enchentes já impactam a produção de alimentos no mundo. O relatório do IPCC sugere que tais fatores vão prejudicar ainda mais a agricultura no Brasil. A produção de trigo pode cair 21% no cenário de altas emissões ou 5% com cortes rápidos de emissões.
A produção de arroz, segundo cenário mais pessimista, pode cair 6%, ou 3% no cenário mais otimista. A redução na produção da soja pode passar de 15% no centro-oeste e chegar a 33% nas pastagens da Amazônia Legal, caso as emissões continuem altas. A produção de milho pode cair até 71% até final do século no Cerrado, no cenário de altas emissões. Apesar dos números alarmantes, o próprio IPCC alerta que tais projeções podem estar subestimadas. A queda geral na produtividade agrícola pode ser ainda maior.
Produção de carne
O IPCC projeta que o aumento na temperatura aumenta a chance de provocar estresse térmico extremo no gado, aves de granja e suínos em grande parte do país. O estresse causado pelo calor pode reduzir o crescimento animal, a produção de leite e ovos, no caso de gado e aves, e mortalidade de animais.
Os impactos das mudanças no clima também vão prejudicar a pesca e a aquicultura no Brasil. No cenário de altas emissões, a produção de peixes pode cair em 36% entre 2050-2070, em comparação com 2030-2050. A produção de crustáceos e moluscos será quase extinta, com redução projetada de 97% no mesmo período.
Produção e economia
O IPCC projeta que a redução da capacidade de trabalho no Brasil será de 24%, principalmente na agricultura, caso as emissões aumentem rapidamente. Se as emissões forem reduzidas rapidamente, essa redução na capacidade de trabalho cai para 9%. A renda média no Brasil também poderá ser 83% menor em 2100, do que seria sem a crise climática.
Impactos vindos de fora
Além dos impactos que as mudanças climáticas trazem dentro de seu território, o Brasil também será muito afetado pelos eventos extremos que acontecem em outros países. A crise climática vai atingir cadeias de abastecimento, mercados, finanças e o comércio global, reduzindo assim a disponibilidade de bens no Brasil e aumentando seus preços, além de prejudicar os mercados das exportações do país.
“Maladaptação”
Um conceito novo trazido no trabalho do Grupo II do 6º Relatório do IPCC foi o de maladaptação, que é quando os países adotam medidas que, ao invés de ajudar no enfrentamento das mudanças climáticas, aumentam os riscos e as vulnerabilidades. Como a adoção de agricultura irrigada e a construção de hidrelétricas em regiões sujeitas a secas, ou a construção de muros de contenção de encostas que se mostram inúteis com o aumento da força das águas.
Segundo Paulo Artaxo, o Brasil está em situação ainda mais vulnerável, pois não tem aplicado qualquer técnica de adaptação climática em larga escala.
“O Brasil não está se adaptando às mudanças climáticas. Tem o Plano Nacional de Adaptação, mas ele não saiu do papel ainda. Veja a questão de reflorestamento de encostas, que é uma técnica de adaptação evitando eventos climáticos extremos, se tivesse ocorrido em Petrópolis, não teríamos tido esse desastre que a gente viu. Todo mecanismo de adaptação climática que não leva em conta o funcionamento dos ecossistemas, obviamente está fadado ao fracasso”, diz.
Lições para o Brasil
Segundo o pesquisador Artaxo, o relatório traz duas grandes mensagens ao Brasil:
“A primeira delas é que é fundamental tratar a questão da mitigação das mudanças climáticas junto, em consonância, com a preservação da biodiversidade e junto com a redução das desigualdades socioeconômicas. O relatório deixa claro que se você tratar os três tópicos de maneira integrada a sua chance de sucesso vai ser muito mais alta”, disse o pesquisador, a ((o))eco.
“A segunda mensagem é que muito do relatório foca na produção de alimentos, da qual o Brasil tem uma dependência econômica enorme e o relatório deixa claro que a produção de alimentos pode estar muito comprometida com as mudanças climáticas, em particular nas regiões tropicais, como o Brasil. E isto implica em ter que pensar qual é o modelo de desenvolvimento econômico que nós queremos implementar no Brasil, porque a dependência extrema como nós temos hoje do agronegócio pode ser um tiro no pé da economia brasileira”, finaliza.
A terceira e última parte do novo Relatório do IPCC, focada nas soluções para enfrentar as mudanças no clima, está prevista para ser publicada no começo de abril. A publicação final do 6º Relatório de Avaliação do Painel deve ocorrer no segundo semestre de 2022.
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