Reportagens

Oxigênio escasso

Oito pessoas morrem por dia em São Paulo por causa da poluição. Pesquisas demonstram os efeitos devastadores da fumaça cotidiana na saúde dos moradores.

Gilberto G. Pereira ·
20 de abril de 2005 · 20 anos atrás

Há algo de mórbido no ar de São Paulo, e não é de agora. Há mais de 15 anos, pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP vêm estudando os efeitos dos poluentes no organismo das pessoas. Eles afirmam que todos os dias morrem em média oito pessoas na metrópole em decorrência de doenças cardiovasculares e respiratórias agravadas pela poluição. No inverno, esse índice aumenta quase 10%. As principais vítimas do ar poluído são crianças, adolescentes e idosos.

De acordo com dados da Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental), órgão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, 90% da poluição da cidade é proveniente da frota de 7 milhões de veículos que despeja no ar quantidades astronômicas de gases, como monóxido de carbono, dióxido de enxofre e dióxido de nitrogênio, além de poeira, hidrocarbonetos e gases que ao reagir na atmosfera produzem ozônio.

Esses gases provocam vários tipos de problemas de saúde, como a hipoxia (que faz com que os tecidos orgânicos recebam pouca oxigenação), o aumento de inflamações e o engrossamento do sangue. As pesquisas são feitas a partir de dados fornecidos pelo Pro-Aim (Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade no Município de São Paulo), que trabalha com informações provenientes de atestados de óbito, uma vez que todos os enterros feitos na cidade passam pelo conhecimento da prefeitura. “O que fazemos é analisar esses óbitos. A partir disso, conversamos com os médicos sobre os problemas que levaram a vítima à morte, cruzamos essas informações e vemos que muitas mortes são causadas por doenças cardiovasculares e respiratórias agravadas pela poluição”, explica Braga.

Segundo ele, os picos de poluição ocorrem pela manhã e à tarde, devido ao maior fluxo de veículos nesses períodos, mas o problema existe o dia todo, principalmente pela quantidade de ozônio produzido, cujo efeito é maior no meio do dia. “O ozônio, quando está em seu devido lugar, ou seja, na estratosfera, é benigno porque filtra os raios ultravioletas que causam câncer de pele e cataratas. Mas quando é produzido aqui embaixo, na atmosfera, ele promove envelhecimento precoce das células e o risco de doenças cardiovasculares”, observa.

Quem mede o nível de poluição do ar em São Paulo é a Cetesb. O trabalho começou em 1975, com estações manuais de análise da qualidade do ar. Em 1981 foram introduzidas 23 estações automáticas, que possibilitam uma avaliação mais precisa. Na época, a concentração de poluentes era muito maior do que a de hoje, mas em compensação a frota de veículos não pára de crescer, por isso o problema persiste.

Para Alfésio Braga, do grupo de estudos em epidemiologia ambiental do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental (LPAE) da Faculdade de Medicina da USP, se fossem adotadas medidas de substituição do combustível e da frota de veículos seria possível diminuir em 20% a poluição atmosférica e assim reduzir em uma década cerca de 64 mil mortes e 70 mil internações relacionadas a ela. Mas para o consultor em poluição veicular e combustíveis alternativos, Gabriel Branco, essas mudanças não bastam. “É verdade que um carro velho polui 20 vezes mais do que um novo, e é sempre bom ter essa renovação, mas não adianta muita coisa se não houver uma substituição dos motores atuais”. Segundo ele, já existem motores com filtros, catalisadores e controle eletrônico de consumo, feitos especialmente para combustíveis não-poluentes, como o álcool e o gás natural. E não adianta adaptar motores a gasolina para usarem esses combustíveis. “Usar combustível limpo em motor sujo não altera a emissão de poluentes. É preciso trocar ao mesmo tempo o motor e o combustível. Isso custaria um investimento da ordem de 3 bilhões de dólares. Parece muito, mas é quinze vezes mais barato do que o custo da morte de 64 mil pessoas. O investimento seria pago num espaço de 3 a 4 anos”, observa Branco.

Outra forma de combate à poluição é investir nos serviços de transporte coletivo e na criação de vias exclusivas para ônibus. Gabriel Branco, que foi secretário estadual de Transportes de São Paulo na década de 80, cita o ônibus elétrico (trólebus) como uma alternativa viável de transporte rápido e não poluente.

A ação dos poluentes é mais prejudicial para as crianças e os idosos, mas afeta todas as faixas etárias. “Morre mais gente por doença cardiovascular, principalmente idosos, mas as crianças sofrem mais com os problemas pulmonares. Além disso, a poluição faz aumentar a tosse, a dor no peito, o número de consultas, internações e mortes”, diz Alfésio Braga. “O idoso sofre mais porque já tem outros problemas de saúde, como asma, por exemplo. E as crianças, principalmente as de 0 a 5 anos de idade, mas também os adolescentes, sofrem porque seu organismo ainda não é forte o bastante para suportar a agressividade desses elementos químicos”. Uma pesquisa realizada pelo doutor Paulo Saldiva em 1991 mostrou que a segunda causa de mortes de crianças de até 5 anos era a poluição, atrás apenas dos óbitos neonatais. Em todo caso, até os adultos em perfeito estado de saúde sofrem com a ação dos poluentes. Foi o que comprovou o dr. Ubiratan de Paula Santos, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP, em pesquisa com os controladores de tráfego, conhecidos por marronzinhos. Expostos a um alto nível de poluição, eles sofrem alteração na freqüência dos batimentos cardíacos.

“A poluição prejudica a capacidade que o coração tem de se adaptar às exigências de funcionamento, como o poder de variar sua freqüência ao longo do dia para se adaptar a situações de estresse, por exemplo”, avalia Braga. Segundo ele, há uma substância no sangue que aumenta em situações atípicas, chamada de marcadores inflamatórios, e essa substância também é alterada pelos poluentes.

O LPAE da Faculdade de Medicina da USP vem fazendo esse tipo de pesquisa desde o final da década de 1980, e já publicou mais de 50 estudos e 30 teses de doutorado sobre a poluição em São Paulo. Segundo Alfésio Braga, desde então os níveis de poluentes no ar da cidade mais cinzenta do país já amenizaram bastante. “Mas o grande problema é que a frota de veículos só cresce a cada dia, e desse modo fica bem mais difícil combater o problema”, avalia.

Vários programas já foram criados para diminuir a poluição paulistana, como o Programa de Controle da Poluição no Ar por Veículos Automotores (Proconve) e o Fumaça Preta. Este último desenvolve campanhas de conscientização de frotistas de caminhões e ônibus para reduzir as emissões de fumaças pretas. Já o Proconve foi criado em 1986 pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para impor limites na emissão de poluentes veiculares, e obriga a certificação de motores, que precisam ter catalisadores e injeção eletrônica, o que diminui as emissões de poluentes dos veículos novos.

A partir do histórico das emissões em São Paulo, a Cetesb criou dois padrões de qualidade do ar: o primário e o secundário. O primário refere-se ao máximo tolerável de poluentes em grandes áreas urbanas. O secundário visa uma qualidade do ar suficientemente boa para preservar a vegetação, a fauna e a flora. Segundo Jesuíno Romano, gerente da divisão de tecnologia e avaliação da qualidade do ar da Cetesb, o padrão secundário é uma meta para o longo prazo. “Na grande São Paulo, não há nenhuma área com esse padrão de qualidade do ar”, informa. Ou seja, nenhuma área verde da cidade se salva do efeito dos poluentes.

Veja as taxas de emissão de dois gases poluentes, entre 2003 e 2004, comparadas ao padrão primário de qualidade do ar exigido pela Cetesb:

Substância / Ano             2003              2004                Padrão primário
Monóxido de carbono       14,4 ppm       10,2 ppm          9 ppm
Dióxido de nitrogêncio      391 µg/m3      291 µg/m3       320 µg/m3

ppm: moléculas de monóxido de carbono por milhão de moléculas de ar
µg/m3: microgramas de dióxido de nitrogênio por metro cúbico de ar


* Gilberto G. Pereira é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mora em São Paulo. Já respirou ares mais puros no norte de Goiás, sua terra natal, hoje Tocantins.

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