“Quando penso que tudo isso vai desaparecer”, diz a catarinense Miriam Prochnow, esticando o cinto de segurança para se debruçar pela porta escancarada do helicóptero, “me dá vontade de chorar”. Ela deveria estar acostumada com essas coisas. Quatro anos atrás, passou o réveillon acampada no Passo da Formiga, que uma barragem começava a engolir no rio Uruguai. Naquele ponto, o leito caudaloso, que chega a ter 400 metros de largura, espremia-se num canal tão estreito que os turistas posavam para fotografias, saltando entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Passo da Formiga sumiu. E agora Miriam está avaliando o que a fronteira dos dois estados vai perder no dilúvio, quando fecharem as comportas da Usina Hidrelétrica de Barra Grande, no rio Pelotas.
E o que se vê ali parece um ensaio para o fim do mundo. É cena para filme de catástrofe. Tão chocante, que os autores da obra preferiram blefar, quando encaminharam ao Ibama em 2001 o relatório sobre o impacto ambiental do projeto. “A maior parte a ser encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos”, eles disseram ao Ibama na ocasião, em laudo técnico assinado pela firma Engevix. Três anos depois, com os 180 metros do paredão de concreto prontos, a mentira veio à tona, bem na hora de fazer a paisagem afundar.
Mas desse pecado, que exigiu a falsificação de um documento público, crime punido com até cinco anos de cadeia pelas leis brasileiras, eles acabam de ser perdoados pelo governo. Ao descer do vôo, em Florianópolis, Miriam ouviria que, na véspera – quinta-feira, 16 de setembro – a Baesa Energética assinara um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público e o Ibama. A fraude da Baesa estava acabando em festa.
“Ibama cobra compensação milionária”, roncava o título de uma notícia sobre a capitulação das autoridades ambientais. Pelo acerto, a Baesa tem que bancar a formação de um banco de germoplasma das plantas que vai arrancar. O nome é bonito, mas na prática significa que o país resolveu trocar florestas naturais por um programa de reflorestamento, cobrindo 5,7 mil hectares. Com sorte, é só esperar alguns séculos, que fica tudo quase a mesma coisa.
A empresa – um consórcio que reúne a Camargo Corrêa, a Votorantim, o Bradesco, a Alcoa e a CPFL – compromete-se também daqui por diante a fazer o que já estava estabelecido em contrato. Ou seja, destinar a unidades de conservação 2% do que está gastando na usina. São cerca de R$ 15 milhões. Mas o Ministério do Meio Ambiente, que é o destinatário da tal multa milionária, ficou mudo, como sempre que tem um problema desse porte entalado na goela. Quem cantou vitória foi a Ministra das Minas e Energia Dilma Roussef, a dama-de-ferro do desenvolvimentismo a la Lula.
Ela anunciou imediatamente que a usina pode se antecipar ao prazo oficial de inauguração, começando a operar “talvez no fim de 2005”. Disse ainda que o remendo na fraude da Baesa atesta a sintonia entre seu ministério e o de Marina Silva, além de mostrar “respeito à vegetação sem prejuízo econômico”. Viu no desfecho do caso um sinal “muito importante” aos investidores estrangeiros de “que há uma nova postura diante da questão”, capaz de abrir “um caminho de solução para o passivo das hidrelétricas sem licenciamento”. De fato, menos de uma semana depois saiu a licença para a usina da Foz do Uruguai, que estava na fila.
De quebra, a ministra declarou que, alforriada pela burocracia ambiental, cuja implicância com hidrelétricas o presidente Lula critica há mais de um ano, Barra Grande, um investimento de US$ 1,28 bilhão, gerará até 690 MW – previamente reservados por 35 anos à Camargo Corrêa. Só faltou lembrar que a Baesa ainda precisa se desembaraçar de um processo que entrou dias antes na Justiça, tentando embargar a represa.
O governo deve achar que isso é detalhe. Pior foi descobrir, tarde demais, o que a usina custará em paisagens e florestas. São 2.077 hectares de matas primárias e mais 2.258 hectares de “vegetação secundária em estágio avançado de recuperação”. Ou seja, aquilo que o Artigo 225 da Constituição chama de “Patrimônio Nacional” e o Decreto Federal número 750, de 1993, cerca de todas as cautelas, proibindo que sejam cortadas à revelia do Conselho Nacional do Meio Ambiente. É claro que, na pressa, até agora ninguém se lembrou de ouvir o Conama sobre Barra Grande.
Somem-se a esses 4.335 de mata nativa em bom estado os 1.100 hectares de campos naturais que serão tragados, e o resultado são 5.435 hectares de oportunidades perdidas para preservar uma paisagem típica de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, que está ficando rara na região. Não é à-toa que ela consta da “Avaliação e Identificação das Áreas e Ações Prioritárias para Conservação, Utilização Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira”, um inventário feito Ibama para identificar 147 lugares onde, querendo, a flora original do país ainda tem salvação.
Ou tinha, pelo menos no caso de Barra Grande. Lá, 70% da área a ser tomada pela água ficam nos cenários que o Ibama considera “de extrema importância biológica”. Neles caberiam quase dois parques nacionais como a Floresta da Tijuca. Dito assim, já parece muito. Mas visto do helicóptero, num dia claro como aquela sexta-feira, com a água faiscando nas corredeiras e o sol destacando na mata, com fachos quase teatrais de luz, a copa escura das araucárias, não há quem confunda o terreno lá embaixo com o tal “mosaico vegetacional” onde a empresa, em 1998, enxergou “pastagens limpas” e “florestas ciliares relativamente bem conservadas”.
Voando baixo sobre o rio Vacas Gordas, um afluente do rio Pelotas, a poucos quilômetros da nova barragem, o helicóptero atravessa um corredor de araucárias. Que o Vacas Gordas não se perca pelo nome. Ele é bonito, encachoeirado e consta do roteiro turístico de Urubici, no planalto de Santa Catarina, como adequado à pesca da truta, sinal de que ainda está bastante limpo. “Aquele grupo de araucárias deve ter pelo menos 200 anos”, aponta o botânico João de Deus Medeiros. Do banco de trás, ele guia o piloto pelas bordas ainda secas do futuro lago artificial. Por enquanto, essas marcas só existem no GPS. Mas, transferidas para os instrumentos de bordo como códigos de navegação, parecem traçar nitidamente no terreno verde a orla da devastação.
Até onde a água deve cobrir aquele ponto? “Até ali em cima. Neste trecho o rio vai subir uns 130 metros”, responde João de Deus. Ele é doutor em Botânica. Dá aula na Universidade Federal de Santa Catarina. E preside o Grupo Pau-Campeche, uma ONG ambiental que neste momento ajuda o governo a mapear as últimas manchas de araucárias no Paraná e Santa Catarina, desenhando o corredor de reservas mais ou menos contínuas que Brasília fala em implantar ainda este ano. Mas a Pau-Campeche, assim como a Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí, de Miriam Prochnow, integram a Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses. E, por causa de Barra Grande, a federação se aliou à Rede de ONGs da Mata Atlântica para levar aos tribunais o Ibama e a Baesa.
Trata-se da Ação Civil Pública 2004.72.00.013781-9, que chegou à 3a Vara da Justiça Federal de Florianópolis às vésperas do acordo com o Ministério Público. Pode ter um certo cheiro de causa perdida. Mas contém a história didática do que pode rolar por trás do paredão de uma hidrelétrica, quando elas começam a se queixar muito da intransigência dos ambientalistas. Se o presidente Lula tivesse o hábito de ler longos documentos, este seria um texto para dormir em sua cabeceira, pelo menos para evitar que ele acordasse com com vontade de tocar no assunto.
O texto deixa muito claro que usina é filha de uma trapaça. Dois anos depois de informar ao governo que só alagaria pastos, roças e capoeiras descartáveis, a empresa entrou no Ibama com o pedido de licença para “limpeza da bacia de acumulação”. É o desmatamento regulamentar, para evitar que as árvores mortas contaminem o reservatório com excesso matéria orgânica em decomposição. Mas dessa vez as autoridades ambientais, sempre tão distraídas, estranharam que o “Projeto de Supressão de Vegetação para o UHE Barra Grande” quisesse tirar daquela franja de matas ralas nada menos de um milhão de metros cúbicos de madeira. A Beasa passara a falar a verdade. E a verdade era alarmante.
Pela “simples leitura” da proposta, diz o processo, “verifica-se que 25%, ou seja, ¼ da área a ser inundada é composta de vegetação primária, ou seja, de Mata Atlântica – principalmente de florestas de araucárias – em ótimo estado de preservação, de áreas que nunca foram suprimidas ao longo de suas existência e representam mais de dois mil hectares; 26%, ou seja, outro ¼ da área a ser inundada está composta por vegetação secundária em estágio avançado de regeneração, em ótimo estado de conservação e riquíssima em biodiversidade”. Conclusão: o erro era tão grande, que não podia ser produto da incompetência de um consórcio capaz de se meter numa empreitada daquele tamanho. Logo, era fraude. Erguida sobre uma licença nula, a represa deveria ser enquadrada na Lei de Crimes Ambientais e demolida. Mas isso não se faz. Como disseram as autoridades, garantir a qualquer preço o funcionamento da hidrelétrica é questão de interesse público.
Ou se faz? Dias depois de sair no Brasil o acordo que cobriu o escândalo com panos quentes, o jornal The New York Times publicou a história da represa de Cuddebackville, no rio Neversink. Foi a primeira a cair por razões estritamente ambientais. Impedia a viagem dos mexilhões correnteza acima. Mas os Estados Unidos têm planos de derrubar este ano 60 represas. Já se livrou de 145 desde 1999.
Coincidência: a ONG americana The Nature Conservancy, que promoveu a demolição em Cuddebackville, é a mesma que, em parceria com o WWF, bancou o vôo em Santa Catarina, para fotografar as matas do rio Pelotas antes que elas acabem.
Na volta, a equipe trazia a bordo, em arquivo digital, mais de duas horas de filmagem daquilo que “os órgãos ambientais não conseguiram ver”. Eles devem mesmo ser muito míopes. Porque, no caminho para Florianópolis, o helicóptero pega um rota que parecia escolhida para provar que nem tudo está perdido. Passa pelo Parque Nacional de São Joaquim e pela serra do Corvo Branco. E lá de cima, entre uma maravilha natural e outra, dá para ver a fumaça saindo dos fornos de carvão vegetal em clareiras cercadas de florestas, queimadas roendo pelas bordas as encostas da serra e as fileiras de pinus avançando sobre a mata nativa. Isso tudo em Santa Catarina, um dos poucos estados do Brasil que ainda guardam mais de 30% de sua paisagem original.
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