Reportagens

Um nariz, duas versões

Secretário diz ter sido espancado por índios do Morro do Osso, em Porto Alegre. Eles garantem que foram mulheres agindo em legítima defesa. O caso vai longe.

Renan Antunes de Oliveira ·
10 de junho de 2005 · 21 anos atrás


A confusão começou em fevereiro do ano passado quando um bando de caingangues invadiu o Parque Natural do Morro do Osso, na Zona Sul da capital gaúcha. Eles alegaram direitos ancestrais sobre a área. A prefeitura petista da época não quis papo.

Os índios foram expulsos pela Brigada Militar em abril, mas voltaram em setembro com o apoio do Movimento de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Além de incomodar os ricaços das encostas do morro, ninguém mais prestou atenção neles até a confusão com Moesch, no dia 4 de junho.

Os caingangues primeiro acamparam na entrada do parque, na terra de ninguém que começa onde termina o calçamento – e aos pouquinhos foram avançando seus limites.

A prefeitura, agora sob administração PPS/PTB/PMDB/PFL, manteve a orientação de retirar os índios do morro. Os vizinhos se organizaram numa associação anti-índios, vigiam os caingangues e protestam pelos jornais. A Funai está paralisada, temendo abrir o precedente de criar uma reserva em área urbana.

Pela última contagem, já são 23 famílias no pedaço, com 54 crianças de zero a 6 anos. O acampamento principal é o caos num lote de 24m por 30m, onde cabem apenas 12 barracas de plástico. Estas “ocas” são abastecidas de energia por um gato, servidas de esgoto por uma cabine tipo pipi-room e de água por um tanque de plástico – a prefeitura cortou a água da turma. O centro da aldeia tem sofás sem pernas na calçada, fogões improvisados, cães vadios e galinhas soltas, tudo emoldurado por muito lixo.

Na semana passada, preparando-se para o rigoroso inverno gaúcho, os caingangues começaram a construir casebres, derrubando alguns arbustos. A construção da primeira maloca foi a gota d’água: os vizinhos chamaram o secretário do Meio Ambiente para impedir “desmatamento e devastação”. Eles chamaram o homem certo: Moesch, quando vereador, era o campeão da causa anti-índios na tribuna.

O secretário foi conferir e se deu mal. Há duas versões para o incidente. Moesch convocou a imprensa para dizer que foi agredido “pelas costas”, recebendo golpes com “porretes e barras de ferro” por parte de um grupo de “cerca de 20 índios” que “de índios não têm nada”, classificando a turma de “traficantes e bandidos”. Mais: “Eles são bandidos e vou provar”.

Na sexta, dia 10, os caingangues desceram o morro para participar da sessão extraordinária da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Porto Alegre (CDH), convocada para investigar a confusão – e vieram acompanhados de advogados, jurando processar o secretário por “calúnias” e “racismo”.



Na versão dos indígenas, o secretário teria chegado ao parque dizendo “Hoje vou tirar esta bugrada daqui”. Na confusão, ele é que teria agredido uma das índias, provocando a ira das amigas. Uma delas reagiu com um cadeiraço, outra entrou no rolo com um sarrafo e a terceira dando-lhe chutes na canela.



Teria o secretário sido injustiçado por um bando de caingangues quando tentava proteger a natureza, dentro de suas legítimas atribuições? Os caingangues apresentaram então à Câmara de Vereadores cópia do processo que corre na 6ª Vara Federal, aberto em maio do ano passado, onde reivindicam a área e a homologação de uma reserva. Assim, a ação do secretário não teria amparo legal.

Mais: o comando da Polícia Militar informou à Câmara que o secretário tinha pedido força policial para sua ação naquele sábado, mas ela lhe fora negada porque o pedido não estava amparado em medida judicial.

Na sessão, Moesch recebeu outro golpe, agora em sua imagem: a CDH fez constar na ata dois incidentes em que ele esteve envolvido enquanto vereador, registrados nos anais da Câmara. Um deles descrito como de “truculência” com uma funcionária da casa e o outro por ter insultado um procurador do Ministério Público Federal, no ano passado, em audiência sobre o tema.

Afinal, de quem é a terra? A antropóloga Ana Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depôs à Comissão explicando que foram encontrados na área vestígios de um cemitério indígena – o que daria à comunidade indígena o direito constitucional de reivindicar seu uso.

É aí que a coisa pega. A decisão de entregar aquela área nobre da cidade aos caingangues enfurece o mundo das incorporadoras. No ano passado, empresas privadas ofereceram à Prefeitura uma área maior, noutro local, pela possibilidade de construir um condomínio horizontal no parque. A troca emperrou quando os índios ocuparam o alto do morro.

Convém esclarecer que o lugar é altamente valorizado. Está a apenas cinco minutos do estádio do Internacional, o Gigante da Beira-Rio. Um lote pequeno nas encostas é avaliado em mais de 400 mil reais.

De “parque natural”, o Morro do Osso só tem o nome. A reserva foi criada em 1979, deveria ter 114 hectares e jamais saiu do papel. A Prefeitura nunca teve dinheiro para desapropriar a área dos brancos – e o que sobra são os 27 hectares agora reivindicados pelos caingangues.

Os índios não têm outro lugar para ir? Eles reclamam que saíram da reserva de Nonoai, no interior do Rio Grande, porque lá foram agrupadas etnias rivais. É uma pequena insensibilidade da Funai que seria como a ONU querer juntar judeus e palestinos num camping.

Que força eles têm para resistir às pressões? O cacique Jaime garantiu que a turma vai pedir o apoio de ongs internacionais, citando uma americana e uma espanhola.

A encrenca do Morro do Osso está apenas começando.

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