Dez anos depois, pouco a comemorar do ponto de vista ambiental e social. A primeira fase do Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste (Prodetur I), iniciado em 1994 para incentivar o turismo na região, concentrou investimentos em obras de infra-estrutura.
Pelo projeto original, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) traçava, como diretrizes essenciais das ações, metas ambientais como a criação de unidades de conservação, a implementação de planos de manejo, a definição de zoneamentos econômico-ecológicos, o manejo das bacias coletoras de água e a recuperação de áreas degradadas. Também previa o fortalecimento dos municípios e da sociedade civil local para a gestão de seus territórios, de modo a arrecadar mais recursos para promover o desenvolvimento social. Tudo isso ficou no papel.
“Os maiores pecados do Prodetur I foram a concentração de verbas na pavimentação de rodovias e na ampliação de aeroportos, a falta de transparência na aplicação dos recursos e a carência de políticas de inclusão social. A população não foi convidada a participar do debate sobre a definição dos projetos, nem do gerenciamento dos recursos. Medidas de compensação ambiental também não foram implementadas”, enumera Mário César Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica.
O Programa recebeu cerca de 670 milhões de dólares. Um terço deles aplicados na Bahia. Os recursos vieram do BID e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Fruto de um contrato firmado em 1994 entre o BID e Banco do Nordeste do Brasil (BNB), o Prodetur deveria vigorar por 25 anos, mas ao final da primeira década seus métodos estão sendo reavaliados.
Segundo o relatório “Resultados e Lições Aprendidas”, 84% dos recursos foram destinados a obras de aeroportos, rodovias e saneamento. O restante em recuperação de patrimônio histórico, e muito pouco em preservação e proteção ambiental, e desenvolvimento institucional.
Érico Pina Mendona Júnior, da Superintendência de Investimentos em Pólos Turísticos da Bahia (SUINVEST/BA), argumenta que não se pode desenvolver o turismo sem dotar os destinos de infra-estrutura básica. “A relativa concentração de recursos do Prodetur I em obras de infra-estrutura decorreu das carências nos destinos beneficiados pelo programa de sistemas de abastecimento de água, rede de esgoto sanitário, drenagem, urbanização, transportes etc.”, explica.
Mas esses investimentos não se fazem notar. Segundo representantes de órgãos públicos e ambientalistas, a precariedade do saneamento básico na Costa do Descobrimento (que engloba os municípios de Belmonte, Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro, Prado, Alcobaça, Caravelas, Nova Viçosa e Mucuri) não foi solucionada, apesar de o Programa ter alocado verbas para esse fim.
Documentos do Prodetur afirmam que foram investidos em Porto Seguro, até 2001, cerca de 4 milhões de dólares em projetos de drenagem e pavimentação e mais 12 milhões em sistemas de abastecimento de água e tratamento de esgoto sanitário. “O aterro sanitário de Porto Seguro virou um lixão. A cobertura diária com material inerte não é feita. Além disso, foi construído numa área imprópria, em desacordo com o Código Florestal, atingindo diversas áreas de preservação permanente. O rio Buranhém, que abastece Porto Seguro, corre o risco de ser contaminado. No período de cheia, as águas chegam muito perto do aterro”, relata José Augusto de Castro Tosato, gerente-executivo do Ibama da Bahia. A obra foi embargada e o processo corre na Justiça. O próprio relatório parcial do programa confirma o risco de contaminação do manancial pelo lixeiro. “As favelas despejam o esgoto sem tratamento nos rios que deságuam no mar. É degradante ver as línguas negras escoando pelas areias das praias” (foto), reclama Sueli Abad, diretora do Movimento de Defesa de Porto Seguro.
Segundo Érico Pina, o problema do lixão de Porto Seguro poderá ser solucionado com a implantação, no Prodetur II, do Plano Diretor de Limpeza Urbana da Costa do Descobrimento. Ele define os parâmetros de ordenação da coleta e deposição do lixo. Quanto ao lançamento do esgoto in natura nas praias, o superintendente explica que essa situação decorre das ligações clandestina à rede de drenagem pluvial. Érico Pina garante que no Prodetur II a população de Porto Seguro será conscientizada sobre a importância da ligação às redes de esgoto.
O incentivo do turismo de baixa densidade na Costa do Descobrimento, segundo ele, será outra forma de conter os impactos negativos ao meio ambiente. “Esperamos que o turismo de massa restrinja-se a Porto Seguro, onde já se instalou. Nas demais regiões, desejamos um turismo seleto e de menor escala”, esclarece Pina.
Em Itacaré, litoral sul da Bahia, ambientalistas conseguiram com grande dificuldade sensibilizar as autoridades públicas para a implementação de algumas medidas de compensação ambiental. As principais foram o estabelecimento de duas Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e de um Parque Estadual.. A Estrada-Parque Ilhéus-Itacaré (BA-001) foi construída buscando reduzir o impacto ambiental. Além de alguns túneis subterrâneos para o trânsito de guaiamus (caranguejos) e de apenas uma passarela entre as copas para os macacos sagüis, a estrada foi idealizada sem faixa de domínio (área lateral de 20 metros de largura nas margens). Não obstante, o desmatamento é grande na região, a própria estrada carece de mirantes e muito do material residual da construção ainda não foi retirado das bordas da via.
A pavimentação da estrada-parque nos moldes atuais só foi possível diante da constatação do prejuízo econômico que a degradação poderia causar. “Entrevistamos turistas, na época da construção, em 1995, para saber se voltariam ao sul da Bahia caso as florestas fossem desmatadas. A negativa foi maciça. O turismo perderia US$ 60 milhões por ano. Isso favoreceu a aprovação do projeto. A BA-001 é um marco de ruptura nos costumes da Bahia. O verde foi valorizado em contraponto ao imaginário coletivo de que desmatar representa progresso”, comenta Rui Rocha, professor de Ciências Agrárias na Universidade Estadual de Santa Cruz e diretor do Instituto Floresta Viva.
Medidas mitigadoras para atenuar o impacto da construção da estrada-parque ainda não foram implementadas integralmente. Entre elas, o Parque Estadual da Serra do Conduru, criado com a finalidade de proteger os remanescentes da Mata Atlântica, mas que não está em pleno funcionamento. Ainda existem propriedades privadas dentro da área do parque.
“É preciso desapropriar as terras particulares do Parque do Conduru. Efetuar a regularização fundiária. Uma boa fonte de receita para promover as necessárias desapropriações seria a criação do ICMS ecológico pelo governo da Bahia”, afirma Mário César Mantovani, da SOS Mata Atlântica. “Apenas 15% das terras do parque foram adquiridas pelo governo baiano. A fiscalização também é insuficiente”, complementa Rui Rocha.
O relatório conclusivo do Prodetur faz uma autocrítica, concordando com as objeções dos ambientalistas. Reconhece que faltaram consultas à sociedade civil, transparência nas decisões e controle adequado de proteção ambiental.
Ambientalistas e empresários também reclamam da falta de projetos que estimulem o turismo de baixa densidade em comunidades carentes, como é o caso da vila de pescadores de Tremembé, no município de Maraú, também no litoral sul da Bahia. “A vila não foi beneficiada com a rota de desenvolvimento do Prodetur I, apesar do potencial para o turismo ecológico. É necessário que as entidades públicas olhem para essas comunidades desassistidas e elaborem projetos específicos, para emergir o ecoturismo ainda latente”, pede Mário César Mantovani.
“A ausência de assistência pública no vilarejo é flagrante. O atendimento médico mais perto está a duas horas de distância. Não há asfalto na BR-030, que liga Tremembé a Ubaitada, onde se encontra o hospital mais próximo. No período das chuvas, a estrada fica intransitável. O turismo seria o primeiro passo para mudar esse quadro. A renda gerada pelos turistas reverteria na melhora da qualidade de vida dos pescadores de Tremembé”, ressalta Flávio Hauser, empresário de operadora de turismo na Península de Maraú.
“Tremembé não era prioridade do Prodetur I, embora integrasse a regionalização turística da Bahia. A implantação de um atracadouro e a capacitação da população estão previstas na segunda fase do programa. Mas sem o interesse empresarial não vamos a lugar algum”, enfatiza Érico Pina.
No Prodetur II, nada será como antes. É o que afirma o relatório da primeira etapa. Haverá uma gestão participativa, com a sociedade discutindo os projetos prioritários, e estão previstas auditorias ambientais periódicas. Segundo o documento, o BID continuará apoiando obras de infra-estrutura, mas privilegiará projetos que visem à melhoria da qualidade de vida da população e à geração de emprego e renda.
Para esta segunda etapa, os investimentos devem chegar a 400 milhões de dólares. O estado do Rio Grande do Norte já assinou o primeiro contrato de subempréstimo (contrato específico por investimento), no valor de US$ 21,3 milhões. Ainda não foram iniciados desembolsos financeiros, apenas licitações de algumas ações. A Bahia também deve assinar em breve seu primeiro contrato de subempréstimo, no valor de US$ 10 milhões. A autorização para contratação está tramitando na Secretaria do Tesouro Nacional.
Só resta esperar para saber se a partir de agora as diretrizes do BID visando à inclusão social e à adoção de medidas ambientais serão cumpridas à risca. Ainda mais com tanto dinheiro em jogo.
* Michelle Glória é fotógrafa e escreve para o Jornal do Brasil.
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