Entre agosto de 2004 e julho de 2005, abateu-se em torno de 16.000 km2 de floresta na Amazônia. O número, baseado nas informações fornecidas pelos satélites do Deter – programa de combate ao desmatamento do governo federal operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – não é oficial. Mas foi compilado por gente que entende profundamente de análise de imagens de satélite para identificar desmatamentos, um grupo de pesquisadores do Instituto do Meio Ambiente e do Homem na Amazônia (Imazon) chefiados por Carlos Souza Jr.
O governo, com base nos mesmos dados do Deter, também tinha um número. E tinha também do seu lado pessoas que entendem não menos profundamente do riscado, os técnicos do INPE. Ainda assim não planejava de maneira alguma divulgá-lo na manhã da sexta-feira, 26 de agosto, quando as ministras Dilma Roussef, da Casa Civil, e Marina Silva, do Meio Ambiente, iriam dar entrevista coletiva para anunciar que, percentualmente, o desmatamento dos últimos doze meses caiu em relação ao que foi registrado entre agosto de 2003 e julho de 2004. Essa decisão de não divulgar um número oficial em cima dos registros do Deter foi fruto de uma série de reuniões realizadas ao longo da semana no Ministério do Meio Ambiente (MMA) , entre técnicos do governo e do próprio Imazon.
Na noite de quinta-feira, um alto funcionário do MMA confirmou em conversa telefônica com a reportagem de O Eco que as duas ministras não mencionariam qualquer número durante sua entrevista de sexta. A única parte de toda essa combinação que funcionou foi a coletiva. Ela aconteceu. Mas ao contrário do que se esperava, Marina e Dilma, escoradas nos dados colhidos pelo Deter entre 27 de agosto de 2004 e 31 de julho de 2005 e analisados pelo INPE, apresentaram um número. E o que era para ser uma grande festa – comemorando uma óbvia redução no desmatamento na Amazônia – terminou o dia gerando alguma confusão. O número oficial divulgado por elas mostrava que o desmatamento na região ficou em exatos 9.106 km2.
Marina e Dilma também apresentaram um número para comparação, obtido também pelo Deter entre 27 de agosto de 2003 e 31 julho de 2004. O desmate da época ficou em 18.724 km2. A queda de um ano para o outro ficou então, segundo os números do governo, em torno dos 50%. No Imazon, Souza e sua turma tentavam entender o que estava acontecendo. Além do problema com o período utilizado na análise oficial, com um mês a menos, eles queriam entender como o governo tinha feito sua conta.
O que menos batia, na visão de Souza, era o desvio das informações do Deter em relação às que são fornecidas pelo Prodes, sensor que equipa o satélite Landsat, usadas há anos para compilar a taxa oficial de desmatamento na região. Segundo ele, há vários trabalhos internacionais, inclusive um de técnicos do INPE com professores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, indicando que o desvio do Deter em relação ao Lansat é, na média, de 20% para baixo. Estudos feitos pela própria equipe de Souza no Imazon confirmaram isso. “Pelo que foi dito, se você comparar os 26 mil km2 de desmatamento registrados pelo Landsat em 2003-2004 com os 18 mil km2 que o governo diz terem sido detectados pelo Deter no mesmo período, o desvio é de 44%”, contabilizava Souza na noite de sexta-feira. “Não faz sentido”.
Ele reclamava também que não estava tendo acesso, no site do Deter na Internet, aos números gerados pelo sistema para 2003-2004 e muito menos aos dados de julho deste ano. “Falta uma certa transparência. Não dá para auditar o que eles apresentaram”, disse. “Os números que foram divulgados hoje devem ser ignorados”, disse o diretor de Biodiversidade do MMA, João Paulo Capobianco a O Eco na noite de sexta-feira. Por que então, se não eram para levá-los em conta, foram anunciados? “Divulgamos os números apenas para mostrar uma tendência de queda e comprovar que o plano de combate ao desmatamento do governo na região está dando certo”, continuou. “Há uma queda e ela é significativa”. Isso já se sabia.
“É um absurdo comparar os números do Deter com os do Prodes (Landsat)”, afirmou. “O Imazon usou os números do Deter e fez uma estimativa para compará-los aos resultados do Prodes (Lansat). Ele é uma instituição privada e pode tomar este risco. Nós somos governo e não podemos fazer isto”. Capobianco informou também que este ano o governo fez um investimento de 2 milhões de reais para que a próxima taxa de desmatamento, que deve ser divulgada em julho, seja a mais próxima possível da realidade e independa de projeções. Mesmo com as imagens do Prodes, mais exatas que as geradas para o Deter, o número final dependia de cálculos matemáticos que envolviam projeções.
Elas eram necessárias porque em certas ocasiões as imagens tiradas pelos sensores do Landsat vinham com áreas encobertas por nuvens, diminuindo sua precisão. Isto obrigava os técnicos do INPE a buscarem imagens tiradas em outros meses para poder compilar, a partir de estimativas baseadas em fórmulas matemáticas, o número final. Este ano, com o investimento feito, o INPE vai poder recorrer a outros satélites de alta precisão, um indiano e outro americano, por exemplo, para compensar imagens imperfeitas geradas pelo Landsat em dias e horários semelhantes. “A próxima taxa estará livre de fórmulas matemáticas e projeções”, garante Capobianco.
Na ponta do lápis, os cálculos do Imazon escorados nos dados do Deter mostram que a derrubada de árvores na região ficou entre 15.247 km2 e 16.570 km2. A média fica na casa dos 15.909 km2. O índice é 36% menor que o do biênio 2003-2004, que chegou a casa dos 26 mil km2 e ficou em segundo lugar no ranking dos piores desmatamentos da história na região. A significativa redução já era prevista desde o final de junho, um dos meses de pico de desmate, quando as lentes do sistema MODIS, que fornece imagens para o Deter, registraram uma queda de 93% no corte em relação ao mesmo período de 2004, como foi noticiado em primeira mão pelo O Eco. O resultado, seja pelos números do governo, seja pelos cálculos do Imazon, vale muitas palmas. Mas o combate ao desmatamento na Amazônia ainda está longe de merecer uma estrondosa ovação.
O tombo na derrubada da floresta deveu-se principalmente aos baixíssimos índices registrados em junho, mês em que o país viu entrar em cena na região a operação Curupira, que desbaratou esquemas de corte e venda ilegal de madeira no Mato Grosso, que continua como o campeão nacional de desmatamento. Ela foi o ato mais visível da presença do governo federal numa região onde sua timidez fiscalizadora começou a se reverter em fevereiro passado no Pará, na esteira do assassinato da freira americana Dorothy Stang, o terceiro lugar onde mais se derruba árvore no Brasil. Brasília, na ocasião, agiu rápido, decretando uma zona de exclusão administrativa de 8, 3 milhões de hectares na área da BR-163, criando unidades de conservação no estado e colocando tropas do Exército para marchar pela região.
Tudo isso, mais a queda nos preços da saca de soja e da arroba de carne, serviram para assustar e diminuir a sede dos desmatadores.O preço da saca de soja de 60 quilos caiu de uma média de 13 dólares em 2004 para 11 dólares neste ano. A carne bovina também desvalorizou, mas os pecuaristas já descobriram uma forma de continuar a lucrar mesmo com preço baixo. Pressionados, os governos do Mato Grosso e Pará, onde estão os maiores rebanhos do país, reduziram expressivamente a alíquota do ICMS sobre o gado. No Mato Grosso a redução foi de 75%. Para Paulo Barreto, do Imazon, isso estimulará desmates.Já Paulo Adário,coordenador da campanha da Amazônia do Greenpeace, acredita que o governo federal ainda tem que afinar a política de combate ao desmatamento.” Existe um descompasso entre as ações dos diferentes ministérios e órgãos de governo. Enquanto alguns implementaram várias medidas previstas, outros ainda não fizeram nada e não parecem verdadeiramente interessados no combate ao desmatamento”, afirmou.
Há também indícios de que em julho, o governo relaxou na fiscalização e as motosserras e os tratores recuperaram seu tradicional vigor de devastação. O desmatamento detectado em junho pelo Deter, que tinha ficado em magros 697km2, pulou para 4000km2 em julho, número razoavelmente próximo ao registrado no mesmo período em 2004: 5,428km2. Só em Mato Grosso, estado responsável por 60% do desmatamento ocorrido na Amazônia nos últimos 12 meses, o índice de corte quadruplicou no mês passado.
Diferentemente do que ocorria nos anos anteriores, quando se esperava até abril do ano seguinte para se obter dados sobre o desmatamento na Amazônia durante o biênio anterior, desta vez os Ministérios do Meio Ambiente e da Casa Civil puderam acompanhar pelo Deter, passo a passo, a trajetória do corte raso anual na Amazônia. O número que saiu das análises de suas imagens está sendo chamado, tanto pelo Imazon quanto pelos técnicos do governo, de estimativa. E há uma boa razão para isso. As lentes dos sensores dos satélites que trabalham para o Deter enviam suas informações mais rápido. Mas elas chegam aqui menos nítidas. Detectam desmatamentos acima de 25 hectares, embora tenham sido identificados nelas cortes em áreas menores, acima de 20 hectares.
Os sensores do Landsat, que produz as imagens que o INPE utiliza para divulgar há anos a taxa oficial de desmatamento na região Norte do país, são mais lentos no envio de dados, mas bem mais precisos: detectam desmatamentos acima de 6, 25 hectares. Um estudo dos pesquisadores do Imazon detectou que, historicamente, há uma defasagem entre 18% e 20%, para baixo, entre o que o Deter capta e o que o Landsat registra. O desvio foi confirmado ainda por outro trabalho do Imazon, este de refinamento das imagens fornecidas pelo Deter, pelo qual elas passaram a revelar desmatamentos acima de 10 hectares.
Corrigido por esses percentuais, os números do Deter para o último biênio ficaram em torno dos 16 mil km2. Em dezembro, o governo planeja divulgar a taxa calculada sobre as imagens do Landsat. Quem trabalha com as duas, garante que a diferença será mínima. O número mostra que o Deter, que entrou em operação em fevereiro de 2004, serve exatamente para aquilo que foi planejado: mostrar às autoridades, com razoável precisão, onde estão as principais fronteiras do desmatamento na Amazônia com um mínimo de defasagem. Isso permite que elas ajam de maneira mais imediata para combatê-lo. Com os números do Landsat, tem-se uma taxa mais precisa, que porém só é contabilizada quando já não há muito mais o que fazer para barrar o corte de árvores.
* Colaborou, de Brasília, Carolina Mourão.
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