Vida de migrante não é fácil. Em busca de pastagens mais verdes muitos se dispõem a enfrentar dificuldades imensas. A travessia perigosa expõe o retirante a riscos e muitas vezes termina mal, com cadeia, exploração e até morte. Mesmo para os que conseguem fincar pé em território estrangeiro, onde as oportunidades são melhores e a grama mais viçosa, ainda há muitas privações e riscos. Fora de casa, o migrante normalmente acomoda-se na base da cadeia alimentar, onde é vítima fácil dos predadores e abutres. O triste caso do brasileiro Jean Charles de Menezes em Londres é o exemplo extremado de uma realidade que todo migrante enfrenta no seu dia-a-dia: a lei da selva que, despida de moral e mais antiga que qualquer civilização estabelecida, sempre vitimiza o mais fraco.
Na África também há muita migração. Todos os anos, na época das chuvas quenianas, cerca de um milhão de gnus fogem das terras ressequidas do Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia, cruzando a fronteira em busca do mato suculento da Reserva Nacional do Masai Mara, no sudoeste do Quênia. Não existe data precisa para o início da migração, mas deve-se ficar atento aos meses de julho a setembro. Como as chuvas atrasaram este ano, o início da passagem dos animais também foi brevemente adiado.
Na segunda semana de agosto, começamos a ouvir, na cidade de Nairobi, rumores de que o show dava sinais de ter começado. Sem pestanejar, organizamos a viagem para o Masai Mara junto com outros oito membros do Kenya Mountain Club, divididos em três caminhonetes 4×4. Durante o trajeto, a expectativa só aumentava: a fauna daquela reserva natural é abundante. Como em nenhum outro parque queniano, o Masai Mara proporciona fácil visualização de todos os felinos africanos. Em um mesmo dia de game drive (game é o nome dado aos animais selvagens e drive ao passeio feito de carro), é comum avistar leões e leoas tomando banho de sol, mesclando-se com a savana dourada, namorando em dança de acasalamento, amamentando seus filhotes e, só para mudar de gato, casais de guepardos à espreita de caça. Ainda assim, os felinos são os animais de mais dificil apreciação pois, estando no topo da cadeia alimentar, existem em menor número.
Outros animais encontrados no Mara em maior profusão são os elefantes, hipopótamos, rinocerontes, diversas espécies de antílopes, hienas, avestruzes, zebras, babuínos, chacais e facocheros (porco selvagem africano que se parece com o nosso queixada).
O percurso de carro de Nairobi ao Mara pode se tornar cansativo. São quase quatro horas de viagem, sendo que a última é de estrada de terra, ou melhor, como acontece normalmente durante a migração, de lama. Apesar de haver outros acampamentos dentro do Masai Mara, além de opções de hotéis cinco estrelas, decidimos acampar em uma reserva particular limítrofe, às margens do rio Mara. Ela está em local privilegiado. É no rio que se dá toda aventura da migração. Originalmente, a totalidade do território do Masai Mara pertencia à tribo Maasai, de tradições pastorais. Entretanto, com a criação da Reserva, no início da década de 1960, eles foram deslocados de suas terras para as bordas externas do Mara em prol da sobrevivência e proteção dos animais selvagens. A emenda talvez não tenha melhorado o soneto, mas pelo menos, através do turismo, a Reserva proporcionou uma grande fonte de renda para a tribo Maasai. Hoje os nativos prestam serviços de guias, alugam suas terras para acampamentos, vendem artigos de confecção local e proporcionam visitas às suas vilas com direito a performance com música e dança.
Além disso, parte substantiva dos ingressos cobrados pelas prefeituras de Trans-Mara e Narok, que administram e manejam da Reserva, são investidos em obras de infra-estrutura nas vilas Maasai. Graças à Reserva, todos os anos novos poços artesianos são furados, escolas são construídas, estradas são melhoradas, implementos agrícolas são adquiridos.
Mas não é só nisso que os recursos são aplicados. Substancial parte é destinada à preservação do meio ambiente. Apesar de ser administrado por duas prefeituras, o Mara tem um plano de manejo que o coloca na mesma categoria de preservação dos Parques Nacionais. E não se trata de simples figura de retórica. São cerca de 100 guarda-parques recrutados na região do entorno e treinados na academia ambiental mantida em Manyani pelo Kenya Wildlife Service – KWS (o Ibama do Quênia). Durante três meses, os novos fiscais recebem adestramento em manejo de flora e fauna, atendimento aos visitantes e (sobretudo) combate a caçadores.
Como explica Justin Bartenge, vice-reitor da academia, 70% da fauna do Quênia está fora das unidades de conservação nacionais, manejadas pelo KWS. Por isso é preciso treinar os funcionários das reservas provinciais e municipais, além dos técnicos de reservas particulares. “A fauna pertence a todos os quenianos. É nosso dever, portanto, desenvolver e repassar as doutrinas de conservação a todos os agentes envolvidos nessa tarefa”, diz.
Masai Mara está cercada de pequenas reservas particulares pertencentes aos Maasai. Ali paga-se para acampar e obter guias para caminhadas ecológicas. Os recursos, embora não sejam grandiosos, são suficientes para que os Maasai preservem a fauna existente em suas propriedades. Eles entendem que os animais silvestres são o que atrai a turistada. A escolha dos locais para os acampamentos, a provisão de água, a construção de latrinas sépticas e o próprio manejo do gado Maasai, de modo a não interferir com a rotina dos animais silvestres, são feitos com simplicidade e competência.
Para conseguir oferecer esses serviços básicos sem interferir demasiado no ecossistema, os Maasai têm recebido valorosa ajuda técnica do governo dos Estados Unidos. “A manutenção da grande fauna africana é um interesse mundial. Para que essa fauna sobreviva, contudo, não há soluções mágicas ou de força bruta. É imperioso que o ecossistema que a suporta mantenha-se saudável e contínuo. Isso só será possível se a população Maasai for capaz de obter mais emprego e renda, gerados diretamente pela fauna silvestre, do que com o gado e a agricultura que hoje disputam espaço de sobrevivência com os animais selvagens africanos”, explica Robert Buzzard, da agência de cooperação norte-americana USAID.
Tratamos de armar as barracas com rapidez, pois a escuridão já havia descido e estávamos com fome. O que era para ser uma noite pacata, com direito a céu estrelado e marulhar das águas do rio, tornou-se bastante conturbada por roncos assustadores. Ao checarmos a algazarra, descobrimos que o rio que beirávamos era moradia de dúzias de adiposos hipopótamos; herbívoros sim, mas nem por isso considerados inofensivos. Não foi uma das melhores noites, pois a cada ronco ouvido, imaginavámos um bichinho de aproximadamente uma tonelada deitando em cima da barraca. Na noite seguinte seria a vez das risadas das hienas, mas aí, já tínhamos visto a migração…
Por volta das seis horas da manhã, começamos a nos preparar para um longo dia de game drive. Foi a primeira vez que fomos ao Mara em um carro particular. A outra forma possível (e mais provável quando se é turista) é viajar em um furgão de agências de viagens. O pacote pago à agência geralmente inclui a viagem de ida e volta à Reserva, dois game drives por dia, de aproximadamente duas horas cada, motorista e gasolina. A vantagem de ter um motorista está no fato de eles conhecerem os caminhos e os hábitos dos animais, além de seus esconderijos, que se esmeram em mostrar aos vistantes para garantir a farta gorjeta após a viagem. Já o carro particular, além do preço mais módico, tem as vantagens da autonomia de escolher o caminho e admirar a fauna pelo tempo que se quiser.
O preço que o turista paga para visitar a Reseva Nacional Masai Mara equivale a US$ 30 diários, mas cidadãos quenianos e residentes têm um desconto considerável. Pagam cerca de US$ 8 pelo mesmo período. Há muita gente disposta a desembolsar a dinheirama. Centenas de carros esquadrinham diariamente os 1.510 km² da Reserva, cuja amplidão acaba dispersando os veículos.
Durante o período migratório, porém, toda a ação se dá no rio. Gnus e zebras aglomeram-se às suas margens, em busca de um ponto de fácil travessia. A até 30 quilômetros de distância, é possível ver o rolo de fumaça empoeirada levantado pelo tropel dos milhões de cascos batendo sobre o solo marrom. A marcha é lenta, um bando de cada vez. Dez, quinze em cada manada. À medida que o rio vai se aproximando, as manadas fundem-se e vão ganhando volume. Quando o primeiro gnu chega à beira d’água, já está à frente de três, às vezes quatro mil animais. Raramente os líderes atravessam imediatamente. Avaliam a correnteza e a profundidade das águas, perscrutam a superfície para evitar crocodilagens; analisam a outra margem do rio: Qual a melhor receita para cruzar a fronteira? Onde está o leão? Qual o melhor passaporte para o outro lado? Há hienas, chacais, alguém espreita? Enquanto os líderes conjecturam, a manada vai se achegando. Não pára, não pára, não pára. Os da frente, qual ônibus na hora do rush, são espremidos pelos de trás, adensando o ambiente, apertando a moçada. E continuam chegando. “Um passinho à frente por favor…”. Aos poucos o suor acre, cujo cheiro quem alguma vez já se apavorou sabe reconhecer de pronto, entorpece o ambiente. A tensão perpassa o ar, que de tão denso pode ser cortado por uma faca. Nervosos, os gnus parecem prontos para a travessia, mas o tempo está suspenso. O relógio não bate. O que falta? O que os impede?
Tantos carros estacionados na margem oposta! Que visão aterradora. Esses bichos enormes de quatro rodas… são predadores? Talvez não, mas assim como os vigilantes gringos na fronteira do Arizona tão bem mostrados em “América”, inibem os caminhos naturais da migração. É triste. Certamente aqui temos um caso clássico em que a visitação (desenfreada?) impacta o meio ambiente. No futuro, talvez os animais se acostumem com os automóveis e percebam o quanto estes não são os seus predadores. Por enquanto, contudo, fica claro que os gnus não estão nem um pouco à vontade com o tráfego de metrópole, que terão de atravessar.
O debate é acalorado como a África. De um lado, os que defendem a proibição ou a redução drástica da visitação nos períodos migratórios. Do outro, aqueles que apóiam a fundamentação realíssima de que é o dinheiro dessa visitação que permite financiar o aparato fiscalizatório e administrativo, que garantem a sustentabilidade do Masai Mara. Somente graças aos recursos advindos da atividade turística, argumentam, foi possível reverter a matança que nas décadas de 70 e 80 dizimou 80% da fauna do Quênia em geral e do Mara em particular. Sem esse dinheiro, o Mara, como Reserva, provavelmente não existiria. Por outro lado, sem o Mara, a migração estaria fadada a proceder tal qual as filas do aeroporto de Miami: todos os indocumentados acabariam presa fácil das hienas e leões.
Resta-nos torcer para que o processo evolutivo dos gnus os leve a tratar os carros como se fossem apenas mais um grande mamífero a dividir com eles as planícies do Serengeti. Afinal, se podem conviver com manadas de elefantes e cruzam rios coalhados de hipopótamos, por que não se adaptariam à presença dos veículos da turistada que, afinal, tira fotos mas preserva-lhes a vida?
Enquanto não evoluem nessa direção, os gnus são tomados por uma indecisão nervosa que retarda sua travessia do rio. Em nossa visita, a relutância em ganhar as águas do Mara continuou por cerca de duas horas. Até que, sem razão aparente, o líder da manada se atirou às águas e, meio nadando meio vadeando, pois-se a buscar a margem queniana da fronteira. Não demorou mais que 30 segundos para atingir o eldorado, onde pastagens de tenra grama recém-regada por abundantes chuvas o esperavam. Foi o sinal para um frenesi impressionante. Atrás do pioneiro, centenas de gnus começaram a se atirar em direção à outra margem. A excitação era tanta que a maioria sequer escolhia o melhor ponto de travessia. Um grupo grande começou a se lançar em direção às águas por um barranco de 5 metros de altura. Os de trás empurrando os da frente, uns querendo ultrapassar os outros. Todos perigosamente embolados. Ao se atirarem freneticamente do íngreme precipício, diversos animais se machucaram, alguns seriamente. Não tardou para que um deles quebrasse a perna. Outro, ao saltar em direção ao rio, enganchou a pata em uma raiz, que o deixou dependurado agonizando. Mais abaixo, ainda outro gnu de pata partida, depois de em vão tentar diversas vezes se levantar, acabou por desistir e deitou-se com meio corpo imerso na água. Imobilizado pela fratura, só lhe restava esperar a mordida de misericórdia dos predadores que, mais ou cedo ou tarde, hão de aparecer para transformá-lo em banquete.
Muitos não precisam esperar tanto. Alguns metros rio abaixo, um jovem leão, de repente, revela-se ao sair de seu esconderijo por detrás das moitas. Já sai na certa. À sua frente um punhado de gnus, cuja travessia foi recém-completa, se dispersa. A maioria sai ilesa, menos o escolhido. A perseguição dura pouco. São umas dezenas de metros de carreira. Uma patada nas ancas e um bote certeiro sobre a jugular, seguidos por três ou quatro mordidas, terminam o serviço. Em três tempos, acabou o sonho de dias melhores para o gnu imigrante.
Nas dezenas de automóveis que coalham ambas as margens do rio Mara, todos assistem hipnotizados, apreciando essa corrida frenética pela sobrevivência. A sensação é a de guerreiros galopando para uma batalha. Apesar da beleza dos animais atuando em conjunto em tão grande número, é inevitável sentir uma mescla de aflição e impotência. Ao avistá-los em família, uns velhos, outros filhotes, e ficar atento ao seu martírio, fica a frustração de não poder ajudar. Nesses momentos, lembramos que a migração é só mais um espetáculo proporcionado pela natureza há anos, cuja balança entre os bem-sucedidos e aqueles que caem nas garras dos predadores, mantém o equilíbrio das espécies em seu habitat. Sempre foi assim, e de uma forma ou de outra, sempre será.
A garantia da perpetuidade do fenômeno está na atitude das autoridades fronteiriças de Tanzânia e Quênia, que tiveram o bom senso de manejar o Masai Mara e o Serengeti de forma integrada e coordenada. “A vida desses migrantes já é dura o suficiente apenas com os entraves que a natureza os impõe. Transpor rios, driblar crocodilos, enfrentar leões e leopardos, já é por si só um grande desafio. O KWS tem a missão de não aumentar em nada mais o controle fronteiriço. Pelo menos no que toca à fauna migratória, queremos um mundo mais globalizado e com menos barreiras”, diz Paul Gathitu, diretor-assistente do Kenya Wildlife Service.
* Ana Leonor é psicóloga com mestrado na Austrália. Seu interesse por natureza e fotografia a tem levado aos quatro cantos do mundo. Vive atualmente no Quênia. É casada com Pedro da Cunha e Menezes, colunista de Eco.
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