Um dos grandes trunfos do Protocolo de Kyoto está em franco descrédito. O chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) era considerado o ovo de Colombo para a solução dos problemas ocasionados pelas mudanças climáticas. Ele abriu a possibilidade de países em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, receberem investimentos de países ricos para a produção de energia limpa. No entanto, nesta semana em que ocorre em Montreal, no Canadá, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-11), uma dura constatação vem à tona: o MDL não está funcionando.
As razões são, basicamente, duas. A primeira é bastante imediata e, pode-se dizer, previsível. Tratam-se de problemas burocráticos. O comitê da ONU demora meses para aprovar a metodologia dos projetos, apenas o primeiro passo para aprová-los. Até hoje, sequer as regras do MDL estão bem definidas. O encontro de Montreal poderia ser uma oportunidade amarrar melhor este processo.
Contudo, a outra face do problema revela questionamentos mais sérios sobre a natureza de Kyoto. O MDL foi criado como uma forma de aumentar a ajuda dos países ricos aos países pobres. Gerar, como diz o próprio nome, desenvolvimento limpo. O que surgiu como um estímulo, agora é considerado um empecilho. “As regras, hoje, como estão, conspiram contra a natureza do MDL”, protesta Odin Knudsen, gerente-sênior do Banco Mundial para o mercado de carbono. Segundo ele, não há como projetos de pequena agricultura e exploração sustentável dos recursos naturais serem aprovados nos complicados requerimentos desenhados pela ONU. Nos próximos dias, organizações não-governamentais como a IETA (International Emissions Trading Association), que reúne diversas empresas envolvidas com o mercado de carbono, devem pedir mudanças nas regras do MDL.
Do jeito que caminha, diz Knudsen, o Protocolo de Kyoto está fadado a ter como participantes apenas grandes atores industriais. Exemplo desta tendência pode ser observado no mais bem-sucedido mercado de carbono hoje em funcionamento, o esquema de comércio de emissões da União Européia, iniciado em janeiro deste ano. O EU ETS (na sigla em inglês) só aceita projetos industriais e não tem nenhuma iniciativa africana em seu portfólio. Trata-se de uma grande contradição para o G-8, grupo dos países mais ricos do mundo, que em julho, na Escócia, escolheu mudanças climáticas e ajuda à África como suas prioridades, aponta o gerente do Banco Mundial.
A opinião de que o Protocolo de Kyoto deixou para trás a sua vertente de desenvolvimento tem sido compartilhada também pelas ONGs em Montreal. Christine Milne, vice-presidente da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN em inglês) diz que são poucos os projetos de redução de emissões que incluem a proteção de ecossistemas e da biodiversidade. “Nos dizem que há muitos na espera para serem aprovados. Queremos vê-los, então”, cobra a ambientalista.
Novo mecanismo
A crescente crítica às falhas do MDL pode abrir uma brecha para países como o Brasil e a Costa Rica avançarem suas pautas em Montreal. Eles querem que o Protocolo de Kyoto passe a considerar florestas preservadas como “depósitos de carbono”. Até agora os países desenvolvidos eram extremamente resistentes a tal proposta, temendo que ela se transformasse apenas numa transferência de recursos, sem muita garantia do sucesso da medida. Mas os ventos dessa polêmica começam a mudar.
Nesta terça-feira, dia 6, o Brasil obteve em Montreal um acordo favorável à sua proposta para o combate ao desmatamento. A delegação brasileira convenceu os 189 países membros da Convenção de Mudanças Climáticas da ONU (que inclui aqueles que não ratificaram o Protocolo de Kyoto) de que é preciso criar um novo mecanismo exclusivamente para incentivar a manutenção das florestas em pé.
Isso porque incluir a preservação das florestas tropicais nas regras de crédito de carbono já existentes acabaria desvalorizando as outras iniciativas do MDL. O potencial de seqüestro de carbono de uma floresta como a Amazônia traria tamanha oferta ao mercado que os créditos se tornariam muito baratos. Desta forma, todos os países desenvolvidos com obrigação de reduzir suas emissões até 2012 comprariam créditos das florestas e deixariam de investir em tecnologias limpas em seus próprios países.
As ONGs chegaram a acusar o Brasil de fazer o jogo dos Estados Unidos, que quer deliberadamente enfraquecer o Protocolo de Kyoto. Segundo elas, ao propor a retirada da preservação florestal do Protocolo, o Brasil estaria reduzindo as cobranças sobre os países desenvolvidos. Mas o diretor da Secretaria de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Rui Góes, pondera que o objetivo é exatamente o contrário: “Queremos preservar o Protocolo e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo”, defende.
Segundo ele, o novo instrumento será criado no âmbito da Convenção do Clima e ainda não tem estrutura definida. Mas deve se assemelhar a um fundo em que países terão que aportar recursos para a diminuição das emissões causadas pelo desmatamento. Até março de 2006, os membros da Convenção apresentarão contribuições de como será este novo mecanismo. É significativo o fato de Estados Unidos e Europa aceitaram a proposta discutida nesta terça-feira em Montreal, o que pode representar um novo caminho para negociar obrigações no combate às mudanças climáticas. Se isso entrará em um acordo pós-2012, quando termina o Protocolo de Kyoto, não se sabe.
Funciona?
Também não se tem certeza sobre a efetividade da proposta. O pesquisador Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisas da Amazônia (IPAM), considera a aprovação do debate sobre desmatamento uma conquista única desde o início das negociações sobre o aquecimento global. Ele pondera, no entanto, que é preciso montar um sistema de compensação financeira para atrair os países ricos. Neste caso, a comercialização dos créditos da floresta em pé caberia ao próprio governo brasileiro. “Sem um mecanismo de mercado, essa proposta não vai vingar”, alerta.
O físico Luiz Pinguelli Rosa, presidente do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, diz que o compromisso financeiro dos países ricos com a preservação das florestas terá de ser muito maior do que os já obtidos com programas de proteção da Amazônia como o ARPA e PPG-7. “Até agora recebemos migalhas. Para ser efetivo, o aporte tem que ser na casa das centenas de milhões”. Ele ressalva que isso não exime o Brasil de adotar políticas públicas ambientais. Pelo contrário, a preservação se tornará uma meta informal para o país. “A Amazônia preservada deveria se tornar um dos projetos nacionais do governo”, frisa Pinguelli.
A ministra Marina Silva, que chega hoje a Montreal, vai apresentar na Convenção os números da redução do desmatamento anunciados no dia 5 de dezembro. Será um discurso estratégico para abrir caminho a este novo mecanismo internacional de combate às emissões da floresta cortada e queimada.
* Gustavo Faleiros é jornalista e mestre em Política Ambiental no King’s College da Universidade de Londres. Está em Montreal acompanhando a Convenção de Mudanças Climáticas.
Leia também
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →
Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia
Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local →