Análises

Stephan Harding e seu legado mais que planetário

Harding nos deixou essa semana, mas não sem antes cumprir seu legado de tocar o coração de milhares de alunos de todas as partes do mundo com sua forma de ensinar sobre a vida de nosso planeta

Karina Miotto ·
5 de setembro de 2024

Minha primeira conversa com Stephan Harding foi na Inglaterra, apresentada a ele pelo monge, autor e ativista visionário Satish Kumar. É que ele tinha acabado de me convidar para estudar um mestrado chamado Ciência Holística, na Schumacher College, faculdade que fundou junto com o Stephan. Sentados de frente um para o outro no jardim, cheio de energia, confirma comigo: “então você quer fazer o mestrado?”. Sim! Daquela tarde de 2015 em diante, ele se tornou meu mentor, amigo, professor e o supervisor da minha dissertação com dez caminhos possíveis para despertar conexão emocional com a Amazônia.

Stephan Harding, há alguns dias, deixou seu corpo para sua alma voar até o infinito, mas antes de partir ele se plantou como semente nos corações e mentes de seus amigos, família, alunos e companheiros de trabalho. Também se espalhou pelo mundo das mais variadas formas. Se você se importa com este planeta, é justo que você o conheça – ou, o conheça melhor. Fico feliz em fazer esta ponte, seguindo o exemplo de Satish. Afinal, como sua aluna, eu não vou escrever um texto enaltecendo seu (incrível) currículo para que você possa (simplesmente) dar um Google. Não. É muito mais do que isso. Vem comigo.

Pela janela daquela salinha do segundo andar, os galhos das árvores balançavam suavemente, movidos pelo vento do outono. Lentamente, folhas flutuavam até o solo, indicando renovação e o início de um novo ciclo, a preparar a terra com mais nutrientes para os tempos vindouros. Diante do silêncio completo de um grupo de uns 14 alunos sentados em círculo dentro de uma sala confortável e encarpetada, passarinhos cantavam do lado de fora, em harmonia com o som emitido pelo sopro da brisa fria. No centro da sala, à nossa frente, estava Stephan. Não sabíamos o que esperar daquele silêncio. Fomos descobrindo aos poucos, curiosos, quando ele finalmente sorriu ao lentamente pegar seu violão. E ele nos disse: “Hoje vamos estudar a Teoria de Gaia, mas antes de começar, quero tocar uma música para ela”. Gaia é o nome da Terra, conforme a mitologia grega. Portanto, primeiro movimento da aula: uma canção ao planeta.

Stephan Harding e Karina Miotto. Foto: Arquivo pessoal.

A melodia, criada por ele inspirada em canções indianas, nos fez entrar em um incomum e raro estado de presença, através das notas musicais. Sua composição é de uma profundidade, daquelas que nos coloca para dentro quase de maneira automática. Após terminar, ele calmamente colocou de lado o seu violão e a sala permaneceu em silêncio mais alguns instantes. Que professor é esse? Nunca ninguém que conheci fez isso antes de dar uma aula! Uau. “Agora sim… vamos falar sobre a Teoria de Gaia”. Levantou-se e, de maneira lúdica, emocionante, divertida, científica e lógica, nos fez mergulhar nas descobertas de Lynn Margulis e James Lovelock, com quem colaborou e ao lado de quem promoveu intensivamente e de forma visionária desde a década de 70 o que apenas há alguns anos começou a ser aceito pela dita ciência moderna: o planeta Terra é um organismo vivo com a capacidade de se autorregular. Como eu e você.

Stephan era assim: o verbo ensinar caminhava junto com “sentir” (no sentido de sensações), “intuir”, “emocionar” (no sentido de sentimentos) e “pensar”. Ele queria que a gente experienciasse a vida e o conteúdo de suas aulas de forma plena, como ensinou o psicólogo Carl Gustav Jung, que muito o inspirava. Para Jung, estes são os verbos de um ser humano que vive em sua potência. Portanto, a cada aula, o mergulho era de mais uns metros para o fundo de nossos oceanos internos. Era como se Stephan nos pegasse pela mão e falasse, a cada vez: “ok, mais um pouco agora”. E, em tudo o que fazia, aplicava a Ecologia Profunda, filosofia e movimento que nos inspira ética planetária e que parte do princípio de que todos os seres têm direito à vida, o que nos coloca em lugar de humildade e autorresponsabilidade com nossas escolhas e modos de viver e sentir.

Com Stephan, fizemos o que ele nomeou de Deep Time Walk (Caminhada ao Longo do Tempo). Juntos, andamos 4,5 km pela costa de Devon, sobre montanhas e abismos beirando o mar, para que nosso corpo sentisse, soubesse e integrasse o que os 4 bilhões e 500 milhões de anos do planeta significam. Stephan nos pedia para pensarmos “500 mil anos” a cada passo e parava, ao longo da caminhada, para nos explicar cientificamente os momentos mais marcantes da evolução da Terra até ela chegar ao ano atual. Ao final, nos lembrava com uma régua, quando já estávamos todos maravilhados, que a humanidade só surgiu nos últimos 30 centímetros restantes e que o futuro daqui para a frente dependeria imensamente de nossas decisões dentro deste organismo gigante que flutua no espaço e do qual somos parte. Deu para captar como era aprender com ele?

Professor fora da curva, disruptivo, apaixonado pelo planeta, criativo, irreverente, gênio. E, além disso, amigo, paciente e generoso. Ele sempre me incentivou a me desenvolver dentro das áreas de maior desafio para mim, falou do quanto sou capaz, incentivou a me reinventar dentro da nova Karina que me tornava – e continuo me tornando. As últimas palavras que trocamos foram apenas uma semana antes de sua partida e ele me encorajou a continuar trabalhando pelo planeta com força e alegria.

Stephan tocou o coração de milhares de alunos de todas as partes do mundo com sua forma de ensinar. Manifestou diferentes aspectos, tão necessários, para tornar a ciência que estuda a natureza mais acessível, responsável, conectada, respeitosa, lúdica e filosófica e uma de suas ações para ensinar o “como” foi desenvolver um mestrado em Ciência Holística, algo jamais arriscado por ninguém até então.

Para este texto não ficar apenas com minhas palavras, insuficientes para homenagear este professor, compartilho a fala de outros alunos. Azul Thomé confessou que sua maneira de ver e estar no mundo foi radicalmente transformada por Stephan. Vanessa Sancho Morales compartilhou que com ele aprendeu que a gravidade da Terra é uma forma de amor, o que a faz sentir segura e saber-se parte de “algo muito maior”. Agi Berec disse ter chorado em suas aulas e que, desde então, o planeta vivo segue com ele todos os dias. Até mesmo o físico Fritjof Capra publicou, nesta terça-feira, algumas palavras sobre Stephan: “Durante vinte anos, ele contribuiu significativamente para todos os meus cursos no Schumacher College, com palestras sobre Ecologia Profunda e a Teoria de Gaia. Seu estilo de ensino único combinava explicações brilhantes dos conceitos-chave da ecologia com um senso de humor contagiante e inesquecível”.

No final de uma de nossas Deep Time Walk (participei de muitas), quando ele me falou que o sol deve explodir em 500 milhões de anos, fiz as contas e entendi, trazendo a métrica de cada passo equivalente a 500 mil anos, que daqui 500 passos, fazendo uma analogia em comparação com a idade da Terra, não apenas o sol vai morrer, como nosso planeta também vai. E, então, 500 milhões de anos me pareceram um nada, um logo ali. Fiquei muito surpresa e até assustada quando percebi. “Stephan, qual o propósito disso tudo, então? Temos tanto trabalho para cuidar do planeta e no final da história ele vai morrer?”. No que ele me respondeu, com sua sempre sabedoria: “Karina, o que quer que a gente faça na Terra vai ressoar para sempre pelo universo inteiro”. Ok, Stephan… sorri, enxuguei minhas lágrimas e compreendi o que o mestre falou, através da lente ampliada e combinada de um coração gigante com Ecologia Profunda, Teoria da Complexidade, ciência e cosmologia. Esse era o Stephan.

Querido professor, tudo o que você fez pelo planeta e por nós ressoará para sempre pelo universo inteiro.

Está firmado o seu legado.

Notas

Para aprender com o eterno Stephan Harding:

Livros:

Gaia Alchemy: The Reuniting of Science, Psyche, and Soul 

Animate Earth: Science, Intuition and Gaia – A New Scientific Story (English Edition)

Vídeos:

Aula Aberta: Teoria Gaia, Jung e Alquimia com Dr Stephan Harding

Stephan Harding | Deep Ecology and the Healing of the Earth | Holistic Science Public Lecture

“Deep Time Walk” with Dr. Stephan Harding

Podcasts:

Todos buscamos la conexión más allá de lo humano – charla con Stephan Harding – Existo Radio

Stephan Harding on Gaia Alchemy and animate Earth – Frontiers of Commoning, with David Bollier

The Deep Time Walk with Stephan Harding – Outrage + Optmism

Gaia, Deep Ecology and the Ecological Self – Dr. Stephan Harding – Science and Windom LIVE

Dr Stephan Harding – Gaia, a Kingdom Beyond Measurement – The Spaceship Earth Podcast

Stephan Harding em Gaia – Ciência e Mito – para uma participação consciente no vir-a-ser do mundo (em inglês) – Escola Schumacher Brasil

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