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(in)justiça ambiental, para além de um conceito 

As populações mais vulnerabilizadas sofrem mais com os efeitos das mudanças climáticas, mas são as que menos contribuem para esse processo

Júlia Mendes · Daniella Mendes ·
15 de outubro de 2024

(in)justiça ambiental, para além de um conceito 

As populações mais vulnerabilizadas sofrem mais com os efeitos das mudanças climáticas, mas são as que menos contribuem para esse processo

Em agosto de 2010, os moradores do Bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, começaram a observar uma espécie de ‘poeira brilhante’ caindo do céu. O que pensavam ser uma espécie de purpurina era, na verdade, um tipo de resíduo de grafite e carbono expelido por uma usina da Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), recém-inaugurada na época. 

O fenômeno da “chuva de prata”, como passou a ser chamado pelos moradores, é resultado de um momento extremo de poluição do ar com partículas de minerais, que violam os padrões de qualidade do ar previstos pela Organização da Saúde (OMS). A “chuva de prata” chegou a ocorrer duas vezes em 2010 e uma vez em 2012, o que rendeu multas de até R$10,5 milhões à empresa.

Santa Cruz é um dos 43 bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro, região que abrange cerca de 70% do território da cidade e engloba 41% da população carioca, segundo dados do Censo de 2022.  O que a região tem de abundância em extensão, tem também de desigualdade. De acordo com o Censo 2010, último com dados municipais, enquanto a Zona Sul da cidade tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) registrado em 0,9, o da Zona Oeste é um pouco mais de 0,7. Próximo ao Porto de Itaguaí, na Baía de Sepetiba, e com uma linha de trem disponível, Santa Cruz passou a ser um local promissor para a instalação de indústrias, que visavam cada vez mais a exploração de recursos naturais. Não à toa, nos anos 70, o bairro passou a ser considerado um distrito industrial. 

Arte: Gabriela Güllich

A ausência do poder público nessas regiões colabora para a fragilização das suas populações, que se encaixam no mesmo padrão de classe, gênero e raça. Nessa lógica, a segregação espacial também colabora para enfraquecer e inviabilizar a luta contra a instalação de empreendimentos poluidores. Esse fenômeno é conhecido na literatura acadêmica como a formação de “zonas de sacrifício”.

Essas áreas são uma consequência do que entende-se como injustiça ambiental, que é um tipo de injustiça social, segundo o professor e pesquisador de geografia da UERJ, Thiago Roniere. Ele explica como o racismo ambiental entra na manutenção dessas injustiças. “Os problemas ambientais, frutos do modelo de desenvolvimento econômico, vão recair com mais força sobre aquelas populações que historicamente foram tratadas de forma desigual e que ocupam as áreas de risco, como lugares periféricos ou com menos serviços do Estado, que é exatamente essa população racializada”, disse Roniere, que também compõe o Observatório UFRJ-UERJ de Injustiça Ambiental.

O uso do termo “Injustiça Ambiental” se iniciou por volta de 1970, quando pesquisadores e movimentos sociais dos EUA perceberam que as comunidades constituídas por minorias sociais sofriam mais com os problemas ambientais, que representam risco à saúde. Thiago Roniere explica que a injustiça social provoca a injustiça ambiental, e por isso, não podem ser vistas de formas separadas. Sendo assim, entender a diversidade de uma população é o primeiro passo no combate ao racismo ambiental, já que o nível de acesso a recursos e os impactos causados pelos desastres ambientais diferem de acordo com a camada social do indivíduo.

O Laboratório de Estudos da Interação Sociedade-atmosfera da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Lisa/UERJ) direciona seus estudos à tal diversidade populacional do RJ, com o objetivo de entender como cada grupo da população é afetado pelas mudanças climáticas no meio urbano. Atualmente o Lisa trabalha com doenças, principalmente arboviroses, ilhas de calor e impacto das chuvas em diferentes grupos populacionais, como moradores de rua, a população que mora em favelas ou residências de infraestrutura precária, entre outros. De acordo com o geógrafo e coordenador do Laboratório, Antonio Oscar, é preciso enxergar o território a partir dessa lente da diversidade para que seja possível pensar em políticas públicas adequadas à adaptação climática de cada grupo populacional. 

“Não existe uma solução única que vai atender a todo mundo, precisamos pensar que esses fenômenos atingem o espaço de forma desigual. Por isso, uma política pública precisa ser setorizada de acordo com a exigência daquela pessoa que vai sofrer com o impacto do calor, da chuva ou da arbovirose, por exemplo. Cada grupo de pessoas têm uma demanda específica”, completou o professor. 

Indústria do desastre

Quando trata-se de desastres, naturais ou não, os mais afetados e com maiores perdas são as pessoas mais vulnerabilizadas, seja pelo local onde moram, seja pela condição financeira. Isso porque, esses indivíduos, não têm acesso adequado sobretudo à saúde, a seguros e à infraestrutura digna. Por outro lado, segundo Antonio Oscar, enquanto uma camada da população sofre com perdas durante extremos climáticos, outra parcela lucra em cima dos desastres, como as grandes corporações e alguns políticos. Isso é o que se conhece como “indústria do desastre”, já que há uma acumulação de capital por trás dos desastres sofridos pela população.

O professor explica que a lógica do conceito funciona sob uma  ideia de reparação, no lugar da necessidade de prevenção. Por exemplo, construir uma represa é muito mais lucrativo do que investir na regeneração de um mangue, além de não garantir que algum desastre possa vir a acontecer no futuro. Sem contar que a população não consegue visualizar tão claramente a regeneração de um mangue quanto a construção de uma represa. Portanto, grandes empresas e políticos preferem investir naquilo que vai mais favorecê-los a curto prazo, segundo Oscar. “Isso é perpetuar uma lógica de crise e de exposição de grupos sociais a esses impactos. Na indústria do desastre, algumas pessoas vão necessariamente lucrar com o sofrimento de outras porque aproveita-se da situação de crise para acumular dinheiro, vender obras e ter capital político também”, disse o geógrafo. 

Algo semelhante ao explicado pelo professor pôde ser observado nos desastres no Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Após o prefeito Sebastião Melo anunciar a contratação da consultoria Alvarez & Marsal para a reestruturação da cidade, o cenário representou um caso notável da “indústria do desastre”, que já tinha sido estudada em episódios como o do furacão Katrina em Nova Orleans, no ano de 2005, o furacão Mitch na América Central em 1998 e  a tsunami no Sri Lanka em 2004. Segundo Tatiana Dias, do Intercept Brasil, o autor Naomi Klein no seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre” mostra que, em todos esses casos, o estado foi reduzido a partir de privatizações, enquanto as corporações ganharam mais liberdade por meio de desregulamentação. 

A jornalista cita, ainda, o episódio ocorrido em Mariana (MG), em 2015, que foi estudado em uma tese de doutorado da UFMG. A autora Claudia Rojas explica em seu texto que a primeira etapa do processo de “lucro” veio com o rompimento abrupto e violento. Já a segunda, foi um programa econômico neoliberal e impopular para reparar os danos, que “permitiu às corporações responsáveis inaugurar um novo mercado e conquistar os últimos bastiões do estado”, como mostrou a tese. De acordo com a coluna do Intercept, essa a economia de recuperação de desastres tem um lado sombrio e é a partir dele que o capitalismo se reestabelece. “É a tempestade perfeita para os urubus da crise criarem novas fronteiras de acumulação de capital – e implantarem as reformas e medidas antipopulares que tanto desejam”, escreve Tatiana. A indústria do desastre, portanto, se retroalimenta das próprias ações emergenciais, que a longo prazo, não se sustentam. “É na falta de uma prevenção eficaz e a vinda de um novo desastre, que o capitalismo cresce em obras e faturamentos”, explica o professor Oscar. “O Rio Grande do Sul é o novo laboratório da crise”, como termina o texto da jornalista.

*Foto da capa: Guillermo Giansanti / UOL / Folhapress

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

  • Daniella Mendes

    Jornalista pela Unicarioca, estudante de Geografia na UERJ e apaixonada pelas geociências e pela biodiversidade brasileira.

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